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Processo Constitucional Brasileiro

Processo Constitucional Brasileiro

3. Controle Abstrato de Constitucionalidade

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3.1.Do processo constitucional

Importante destacar a distinção entre Direito Constitucional Processual e Direito Processual Constitucional. O primeiro consistiria nas disposições processuais que se encontram na Constituição Federal, enquanto o segundo seria a reunião dos princípios que regulam a denominada jurisdição constitucional. 1 Ambos compõem a justiça constitucional que se consubstancia na forma e instrumentos de garantia para a atuação da Constituição. 2

3.1.1.Conceito de Processo Constitucional

O processo constitucional, de forma sintética, pode ser definido como o subsistema processual responsável por assegurar a solução de conflitos jurídicos de ordem constitucional do Estado, bem como o lócus privilegiado para a proteção e implementação dos direitos fundamentais. 3

Eduardo Ferrer Mac-Gregor conceitua o direito processual constitucional como a disciplina jurídica encarregada do estudo sistemático da jurisdição, magistratura, órgãos e garantias constitucionais, compreendendo as últimas como instrumentos preponderantemente processuais dirigidos à proteção e defesa dos valores, princípios e normas de caráter fundamental. 4

3.1.2.Natureza jurídica e objeto do Processo Constitucional

No Brasil, o controle abstrato de constitucionalidade é atribuído ao STF (CF 102 I a). Os entes legitimados a dar início a esse processo estão contidos na CF 103.

O processo de controle abstrato de constitucionalidade:

consiste num tipo de controle abstrato de validade de normas exercido por via direta ou principal e que tem por finalidade essencial a eliminação do ordenamento, quer de normas jurídicas já publicadas que sejam julgadas inconstitucionais ou ilegais, quer de efeitos que as mesmas hajam produzido. 5

Trata-se de controle abstrato, porque seu objeto é um ato normativo, tendo produzido efeitos jurídicos ou não, de modo que poderá a lei até mesmo ser questionada durante sua vacatio legis. Sua função é retirar do ordenamento o ato normativo considerado inconstitucional, algo que não pode ser feito nem pelo controle difuso de constitucionalidade. No modelo misto nacional, o Senado participa do controle difuso e sua atuação pode resultar na retirada total da eficácia do ato inconstitucional do ordenamento jurídico. 6

Desse modo, a decisão no controle abstrato produz efeito vinculante e erga omnes, algo inexistente no controle difuso, no qual o ato normativo poderá ser suspenso com eficácia geral apenas quando o Senado emitir resolução nos termos da CF 52 X. 7

No ordenamento português, existe dispositivo semelhante. Trata-se do art. 281, n. 3, da Constituição da Republica Portuguesa, que prevê que, no caso de uma norma vir a ser julgada inconstitucional em três casos concretos, torna-se possível desencadear, por iniciativa dos juízes do Tribunal Constitucional ou Ministério Público, o controle de constitucionalidade para que possa ser removida do ordenamento. 8

Já no controle concentrado, não existem legitimados passivos nos termos do processo civil comum. Na medida em que também não existe contraditório nesse processo, não há uma lide no sentido carnelluttiano, porquanto não existem direitos subjetivos a amparar pretensões em conflito. 9 Essa nossa assertiva refere-se às hipóteses em que a lei tem sua constitucionalidade objetada por meio de ADIn ou ADPF. Ocorre que a APDF é ação de cariz híbrido; em diversas hipóteses, ela se assemelha à ação coletiva, porque subjacente a ela, existe uma pluralidade composta de diversos direitos subjetivos individuais. Por exemplo, a ADPF para realização de aborto de fetos anencefálicos ou para o reconhecimento de uniões homoafetivas.

O processo de controle abstrato de normas não é um processo em contraditório, não existem direitos subjetivos em litígio. Cuida-se de um processo objetivo, sem contraditores, ainda que os autores do ato normativo sub iudice possam ser ouvidos no processo. Também não é um processo inquisitivo, pois não pode o órgão responsável por seu controle iniciá-lo ex officio. 10 Nesse processo não há sucumbência porque não existe “perdedor”, isto é, não há sujeito passivo que deverá sofrer os efeitos da sentença. Esse ponto é importante para evidenciar a não vinculação do legislador no controle abstrato de constitucionalidade – que será tratado adiante.

Tal ressalva é fundamental, uma vez que é necessário distinguir e evidenciar a peculiaridade que possui o processo constitucional, porque, em razão de sua natureza objetiva, as decisões oriundas dele podem conseguir alcance inexistente no controle difuso. A especificidade do processo constitucional objetivo implica que a sentença e a coisa julgada dele provenientes também devem ser tratadas com total particularidade. Principalmente no que diz respeito à coisa julgada: sobre este instituto, trataremos em seguida. Não é possível conferir à coisa julgada existente em ADIn o mesmo tratamento conferido à coisa julgada do processo civil comum, porque não existem direitos subjetivos tutelados e acobertados pela coisa julgada.

No processo abstrato, como não existem direitos subjetivos, a coisa julgada não exerce sua clássica função de assegurar segurança jurídica e promover a pacificação social, substituindo a vontade das partes, até porque partes não há.

No que diz respeito ao seu conteúdo, Eduardo Ferrer Mac-Gregor, em obra sobre o tema, divide em quatro setores principais o processo constitucional.

O primeiro seria o processo constitucional da liberdade, que compreende o estudo dos instrumentos consagrados na Constituição para proteção dos direitos fundamentais e dos direitos humanos previstos nos instrumentos internacionais devidamente reconhecidos pelos Estados, v.g., habeas data, habeas corpus. 11

O segundo seria o processo constitucional orgânico, referente às disposições constitucionais estabelecidas para dirimir conflitos acerca das competências e atribuições dos distintos órgãos de poder. 12

O terceiro é o processo constitucional local, referente aos instrumentos protetivos dos entes que compõem a federação, estados, municípios etc. 13

Por fim, o quarto conteúdo refere-se ao processo constitucional supranacional, referente à proteção de direitos a partir dos pactos, instrumentos e tribunais internacionais, mormente os relacionados à proteção dos direitos humanos, e.g., o Tribunal Europeu (França – Estrasburgo) e a Corte Interamericana (Costa Rica – San Jose).

3.1.3.Processo constitucional e sua autonomia

Cada vez mais, o processo constitucional é estudado no âmbito doutrinário, tendo sido lançado ao ramo jurídico, que possui bases científicas autônomas. 14

Conforme ensina Peter Häberle, o processo constitucional tem autonomia, é responsável por instrumentalizar e possibilitar a abertura da Constituição aos seus intérpretes. Essa autonomia relaciona-se com a tese de Häberle de que a Constituição deve ser interpretada como um contrato, de modo que todos os cidadãos sejam incluídos, de forma que não sejam excessivamente onerados e nem surja cisão entre eles. Ou seja, o contrato constitucional não pode perder nenhum grupo de cidadãos ou alguma geração em particular. 15

Daí o cuidado em não se transformar a jurisdição constitucional em espaço para todo tipo de ativismo, porque a judicialização de pautas políticas ativistas transformaria a jurisdição constitucional em palco de batalhas políticas, mediante o qual o Judiciário deixaria de ser julgador de conflitos e se converteria em impositor de derrotas políticas para grupos. Ou seja, verão que, ao invés de atividade integrativa dos cidadãos, a jurisdição se transformaria em elemento segregador da sociedade. Esse alerta é imprescindível para dimensionarmos corretamente os limites de atuação do STF.

De acordo com Mac-Gregor, a ciência do Direito Processual Constitucional adquiriu relevância com a criação dos Tribunais Constitucionais, principalmente após o surgimento da Corte Constitucional austríaca e da publicação da obra de Hans Kelsen. 16

Contemporaneamente, o direito processual constitucional compreende duas realidades: análise histórico-social e estudo científico. O estudo científico, conforme aponta Mac-Gregor, pode ser estruturado em quatro etapas. 17 (1) Precursora (1928-1942): essa fase tem início com as obras de Kelsen 18 relativas às garantias constitucionais e a partir do debate estabelecido com Schmitt acerca de quem deveria ser o guardião da Constituição; 19 (2) Descobrimento processual (1944-1947): deve-se a Alcalá-Zamora Y Castillo a advertência sobre o direito processual constitucional figurar como ramo científico autônomo; (3) Desenvolvimento dogmático processual (1946-1955): nessa etapa, o processo passa a ser desenvolvido juntamente com as tendências do constitucionalismo da época. Há uma correlação entre constitucionalismo e processo. Nesse período, as principais contribuições doutrinárias são de Couture, 20 em razão de seus estudos sobre garantias constitucionais, e os estudos dogmáticos sobre jurisdição e processo constitucional efetuados por Calamandrei 21 e Cappelletti; 22 4) Definição conceitual e sistemática (1955-1956): é a última etapa científica do processo constitucional. O teórico responsável por esse estágio é Héctor Fix-Zamudio, 23 que, por meio de sua obra, 24 lançou as premissas teóricas fundamentais para caracterizar o direito processual constitucional como disciplina processual autônoma. 25

Por fim, do ponto de vista histórico 26 e social, o direito processual constitucional refere-se aos instrumentos jurídicos de proteção dos direitos humanos 27 e também da proteção do próprio direito, na medida em que é na jurisdição constitucional, seja por meio de processos subjetivos ou de controle concentrado de constitucionalidade, que os direitos fundamentais são resguardados em última instância. Assim, o Tribunal Constitucional, quando assegura a preservação dos direitos fundamentais e da Constituição Federal, está conferindo coerência e integridade ao ordenamento.

3.2.Hans Kelsen e o controle de constitucionalidade

Deve-se a Hans Kelsen 28 a teorização acerca do Tribunal Constitucional como legislador negativo. A partir de seu conceito de legislador negativo e do direito como sistema de estrutura escalonada, Hans Kelsen lança as premissas teóricas fundamentais para a sistematização do controle de constitucionalidade e da respectiva jurisdição constitucional.

Com o advento da segunda edição de sua obra mais afamada, a Teoria Pura do Direito, Kelsen, no terceiro capítulo, 29 dedica-se ao sentido do estudo do direito enquanto ciência jurídica e retorna à noção a que anteriormente se referiu sobre a retribuição e a causalidade, ambas agora implementadas pelo conceito jurídico da imputação. Nesse ponto, surgem elementos importantíssimos para a compreensão do tema. São apresentadas as considerações sobre o sentido da ciência jurídica, as teorias, estática e dinâmica, e os conceitos de norma e proposição jurídica, para, depois, retornar ao campo de distinção de uma ciência causal e de uma ciência normativa.

Por trás da afirmação de que o objeto da ciência jurídica é o direito (norma), de maneira menos evidente está a de que normas jurídicas são o objeto do direito e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou seja, na medida em que constitui conteúdo das normas jurídicas.

Para Kelsen, a ciência jurídica relaciona-se com normas, não é uma ciência da natureza. 30 Em conformidade com o desenvolvimento desse posicionamento, isto é, da ciência jurídica enquanto reguladora da conduta humana, Kelsen apresenta duas teorias: uma estática, em que o direito é entendido com um sistema de normas em vigor; e uma dinâmica, que tem por objeto o processo jurídico em que o direito é produzido e aplicado, isto é, o direito em seu movimento. Em relação ao sistema estático, a norma fundamental fornece não só o fundamento de validade, como o conteúdo de validade das normas dela deduzidas por meio de uma operação lógica.

Para o desenvolvimento da relação da obra de Kelsen com o controle de constitucionalidade, restringiremos nossa análise ao sistema estático, por meio do qual o citado jurista nos apresenta sua estrutura escalonada da ordem jurídica.

A Teoria Pura de Kelsen 31 relaciona-se diretamente com o dever jurídico, que não deve ser confundido com valor ético, posto que consiste em estrutura lógica. Tal como explica o próprio autor, sua teoria é pura porque ela almeja assegurar o conhecimento do direito, excluindo de seu conhecimento tudo o que não pertença ao objeto determinado precisamente como direito.

Assim, a normatividade do Direito é o problema central da Teoria do Direito. Essa normatividade é desenvolvida sob três premissas fundamentais, a saber: i) a definição da norma em termos lógico-semânticos, como conteúdo de sentido; ii) o conceito normativo de validade como força obrigatória geral; e iii) a elaboração da norma fundamental.

Desse modo, a Teoria Pura do Direito busca libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. É com Kelsen que a ciência jurídica adquire seu objeto e métodos precisamente definidos. É mister destacar que, a partir da estática kelseniana, o direito passa a estruturar-se de maneira escalonada e lógica. Nesse sistema, o fundamento de validade de determinada norma passa a ser outra norma de grau hierárquico superior, a norma passa a buscar sua validade exclusivamente na própria positividade e não mais em valores, sejam eles éticos, morais, religiosos etc. 32

Apesar da pureza pretendida, Kelsen descreve o Direito 33 como sistema de normas, com fundamento no argumento de Kant, 34 denominado de dedução objetiva das categorias. Em consonância com a doutrina de Kant sobre a teoria do conhecimento, Kelsen pontua que é a ciência jurídica que constitui o Direito como objeto, a partir de procedimentos de sistematização categorial.

A ordem jurídica, por sua vez, é validada na norma fundamental. A norma fundamental não é posta, mas pressuposta, haja vista que seu conteúdo não pode ser imediatamente evidente, não se trata de um produto de descoberta livre, sua validade é objetiva e não pode ser posta em questão.

Desse modo, a noção de validade em Kelsen 35 tem, simultaneamente, uma dimensão descritiva, como indicação da pertença da norma a um sistema normativo particular, e uma dimensão normativa, como força obrigatória. 36 Tal concepção faz com que a norma fundamental, em última instância, confunda-se com o próprio conceito de soberania. 37

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que, na teoria normativa de Kelsen, a norma fundamental é um conceito exatamente simétrico ao de poder soberano. Dessa forma, estes são dois conceitos sinônimos, porque possuem praticamente a mesma função, qual seja, a de fechar o sistema jurídico, que é escalonado, hierárquico e cuja validade somente pode ser buscada na própria positividade/normatividade. 38

A relação entre a norma fundamental e o poder soberano tem também como pano de fundo uma reflexão possível a partir de algumas ideias do pensamento de Carl Schmitt. Em Schmitt, a decisão não é um elemento extra ou metajurídico, externo ao direito, de significado apenas sociológico, mas ao contrário, é um elemento formal especificamente jurídico. A decisão soberana é, assim, o elemento formal que dá fechamento ao sistema jurídico e desempenha, nesse sentido, a função análoga àquela desempenhada pela norma fundamental no sistema kelseniano. 39

Daí a afirmação de Bobbio 40 de que tanto a soberania quanto a norma fundamental kelseniana ocupam o mesmo lugar do ponto de vista lógico da fundamentação do direito. Por conseguinte, pode-se afirmar que o tema do fechamento do sistema kelseniano, estofado pela norma fundamental e a decisão soberana, é um dos temas centrais que atualmente é revisitado em termos de uma teoria política do direito. Sua análise, com amparo na capacidade inventiva e concreta de Kelsen – cuidadoso até mesmo com o conceito antropológico de Poder – permite, hodiernamente, uma reflexão diferenciada no processo de formação e desenvolvimento do Direito, do Poder e da Religião. 41

Demais disso, diante do sistema estático elaborado por Kelsen, a norma fundamental confere validade para todo o ordenamento jurídico, bem como para a própria atuação do Poder Público. Assim, uma teoria do direito e do Estado, que parte da primazia da norma sobre o poder, implica na impossibilidade de existir poder que não seja jurídico, vale dizer, regulado pelo direito – e por regulado deve-se entender autorizado por norma superior que, por sua vez, lhe atribui poderes.

A partir das premissas desenvolvidas em seu sistema estático, Hans Kelsen sistematizou o controle abstrato de constitucionalidade, no qual o Tribunal Constitucional é o protagonista. A teoria de Kelsen a respeito da fiscalização abstrata de constitucionalidade tem relação com seu conceito de Constituição, que seria formada pelos preceitos que regulam a criação de normas jurídicas gerais e, especialmente, a criação de leis.

Em síntese, para Kelsen, a Constituição contém a regulação do processo legislativo. Todavia, Kelsen enfoca o controle de constitucionalidade em seu aspecto formal. Ademais, por meio da teoria kelseniana, são lançadas as premissas para sistematização de uma teoria da legislação e, por consequência, do controle da constitucionalidade.

Desse modo, é Kelsen quem confere limites normativos ao Poder Público, que, em última instância, será limitado pela própria norma fundamental. Por consequência, pode-se depreender que é a partir do sistema normativo kelseniano que o poder encontra seu nascedouro e limite no próprio direito. Isso ocorre porque, nesse sistema, não há atuação de qualquer poder sem que a ele corresponda norma jurídica autorizadora. Tal limitação jurídica elaborada por Kelsen atinge todos os poderes, inclusive o Legislativo. Tanto é assim que foi o próprio Kelsen quem sistematizou e lançou as premissas para limitação do Poder Legislativo, mediante o controle concentrado de constitucionalidade.

Hans Kelsen sistematiza o controle abstrato de constitucionalidade, no qual o Tribunal Constitucional é o protagonista. A teoria de Kelsen acerca da fiscalização abstrata de constitucionalidade tem relação com seu conceito de Constituição, que seria constituída pelos preceitos que regulam a criação de normas jurídicas gerais e, especialmente, a criação de leis; em síntese, no essencial, a Constituição possui a regulação do processo legislativo. 42

Kelsen reduz o controle substancial de constitucionalidade a um aspecto também formal. A Constituição não é apenas uma regra de procedimento, mas também de fundo; assim, uma lei pode ser inconstitucional em razão de uma irregularidade de procedimento ou em razão de uma contrariedade de seu conteúdo a princípios formulados na Constituição. Por isso, pode-se distinguir a inconstitucionalidade material da formal; contudo, Kelsen entende que a inconstitucionalidade material, em última análise, consiste em inconstitucionalidade formal, na medida em que uma lei, cujo conteúdo está em contradição com a Constituição, deixaria de ser inconstitucional se fosse aprovada como lei constitucional. 43

Kelsen equipara a atividade jurisdicional à legislativa: enquanto essa consiste na criação de normas gerais, aquela cria normas individuais. Assim, anular uma lei é estabelecer “uma norma geral porque a anulação de uma lei tem o mesmo caráter de generalidade que sua elaboração, nada mais sendo, por assim dizer, que a elaboração com sinal negativo e, portanto, ela própria uma função legislativa”. 44

3.2.1.A necessidade de superação da acepção dos Tribunais Constitucionais como simples legisladores negativos

A doutrina kelseniana do Tribunal Constitucional como legislador negativo possui grande coerência interna 45 em relação à função conferida à jurisdição constitucional pelo autor. Na complementação deste tópico, não trataremos de criticar a concepção de Kelsen, mas tão somente evidenciar alguns pontos que demonstram a defasagem dessa doutrina perante as atividades e os novos provimentos jurisdicionais provenientes da Corte Constitucional.

Na realidade, a defasagem não é direcionada ao conceito contido na obra de Kelsen, afinal, conforme expusemos, ele confere coerência interna à teoria. A crítica é destinada à utilização descontextualizada do conceito de legislador negativo na atividade interpretativa de realização do controle de constitucionalidade. 46 Desse modo, passaremos a refutar as principais conclusões oriundas da utilização descontextualizada do conceito de legislador negativo, formulado por Kelsen.

Diante do conceito kelseniano de Constituição (lei regulamentadora do processo legislativo), a primeira conclusão a ser extraída é que a Constituição contém apenas normas dirigidas ao Legislador, não possuindo, assim, normas aplicáveis diretamente pelos órgãos judiciais, uma vez que a Constituição não teria a pretensão de regulamentar a relação entre os cidadãos e os poderes públicos. 47

Essa concepção, se interpretada literalmente e sem qualquer contextualização, radicaliza-se e acaba por excluir o juiz ordinário de qualquer competência referente à aplicação e interpretação da Constituição em favor de uma nova jurisdição criada a esse fim. 48 Tal posicionamento conflita com nosso sistema difuso de controle de constitucionalidade, primeiramente porque não permitiria a judicial review, que, consiste em direito fundamental do cidadão. Essa concepção também impossibilitaria a aplicação direta da Constituição pelos juízes singulares, algo que impediria a concretização dos direitos fundamentais na ausência de uma interpositivo legislatoris, o que tornaria impossível o pronunciamento de decisões aditivas e substitutivas.

A aplicação pura e descontextualizada da teorização kelseniana também reduz o controle substancial das leis a um controle formal, fazendo com que, mesmo quando a inconstitucionalidade atinja dispositivos substanciais da Constituição (e.g., direitos fundamentais), a inconstitucionalidade também será formal; o vício será processual porque, para Kelsen, essa inconstitucionalidade decorreu por não se ter respeitado o procedimento de revisão que permitiria modificar ou derrogar o princípio constitucional desatendido. 49

Assim, para Kelsen, a jurisdição constitucional teria seu interlocutor natural na figura do legislador, em que a sentença que declarasse a inconstitucionalidade seria apenas um ato normativo geral, típico ato de órgão legislativo com sinal trocado.

Desse modo, o controle de constitucionalidade fica restrito a um aspecto formal, tendo como único objeto a legislação, algo defasado diante do que deve desempenhar a justiça constitucional no Estado Constitucional Democrático, que, nas palavras de Peter Häberle, consiste na limitação, racionalização (regulação) e controle do poder estatal e social, na proteção das minorias e na reparação dos novos perigos para a dignidade humana. 50

Do ponto de vista processual, a jurisdição constitucional é definida por Pablo Lucas Verdu como a atividade jurisdicional que tem por objeto decidir de modo imparcial, com base no direito objetivo e mediante procedimentos e órgãos especiais preestabelecidos, o cumprimento, tutela e aplicação das normas jurídicas constitucionais (escritas e consuetudinárias). 51

Obviamente, essa nova função da jurisdição constitucional é demandada em razão de uma nova concepção sobre a própria Constituição, que deve ser entendida como a ordem jurídica fundamental do governo e da sociedade. A Constituição, em um Estado Democrático, não estrutura apenas o Estado em sentido estrito, mas também o espaço público e o privado, constituindo, assim, a sociedade. 52

Nos tempos atuais, o legislador não deve mais ser considerado o único interlocutor da jurisdição constitucional, sob pena de haver risco para a própria força normativa da Constituição. Cabe à jurisdição constitucional eliminar e corrigir as inconstitucionalidades provenientes dos demais Poderes, a fim de salvaguardar o Estado Constitucional, controlando a constitucionalidade dos atos executivos, legislativos e jurídicos, bem como adquirindo uma competência específica em matéria penal/constitucional (CF 102 I, a e b,). 53

O Legislativo não é mais o único interlocutor da justiça constitucional. A atividade da jurisdição constitucional, tal como ensina Pablo Lucas Verdu, não é mecânica, não se reduz à expressão la bouche qui prononce les paroles de laloi, porque a função da jurisdição constitucional, ainda dentro de seus limites, é também função criadora, ainda que não deva substituir a função legislativa. 54 Outrossim, a própria expressão "juiz boca fria da lei", conforme demonstrado no capítulo anterior, em regra, é usada de forma equívoca.

Nesse contexto, o controle de constitucionalidade não mais se restringe a uma atividade de um legislador negativo, visto que não se limita apenas ao aspecto formal, adquirindo também dimensão material, o que justifica uma atuação com maior espectro em relação aos demais poderes. Consoante ensina Claude Goyard, atualmente, a jurisdição constitucional surge como a guardiã da ordem constitucional diante da intromissão do político. 55 A justiça constitucional significa a autoconsciência que a Constituição possui de sua própria eficácia e dinamismo. 56

Em suma, a jurisdição constitucional por meio do seu processo estabelecerá as ferramentas necessárias para blindar o direito do político. Para tanto, a jurisdição precisará enfrentar um de seus maiores dilemas contemporâneos, consistente em encontrar equilíbrio entre agir corrigindo os desvios dos demais Poderes protegendo direitos fundamentais e assegurando a força normativa da Constituição sem incorrer em ativismo judicial consistente numa incursão não permitida pelo texto constitucional na esfera de ação dos demais Poderes.

3.2.2.A incompatibilidade da fórmula do legislador negativo com as decisões que aplicam o efeito aditivo

Por fim, um último argumento pode ser sustentado sobre a incoerência de se situar o Supremo como legislador negativo no controle de constitucionalidade; isso decorre do fato de Kelsen, ao elaborar o conceito de legislador negativo, estar preocupado diretamente com a coerência lógica dos enunciados que compõem a ciência do direito; a interpretação desenvolvida no nível da sentença não lhe aparece como um verdadeiro problema, deixando para um segundo plano o verdadeiro resultado que deveria por ela ser produzido. Isso fica muito evidente na crítica de Friedrich Müller:

a teoria pura do direito não pode dar nenhuma contribuição para uma teoria aproveitável da interpretação. Kelsen deixa expressamente em aberto como a "vontade da norma" deve ser concretamente determinada no caso de um sentido da norma linguisticamente não unívoco. 57

Essa crítica que Friedrich Müller aponta na obra de Kelsen a respeito da impossibilidade de se utilizar a doutrina kelseniana na atividade interpretativa – fundamentação da sentença – ressalta a necessidade de superação da visão do STF como legislador negativo no controle de constitucionalidade. Isso ocorre porque a atividade do Supremo não mais consiste em anular de forma geral um ato legislativo. Posicionar o Pretório Excelso como um legislador negativo retirar-lhe-ia todas as possibilidades de proferir as sentenças interpretativas (v. item 3.2.1) como aquelas que versariam sobre a possibilidade hermenêutica da lei e não sobre o texto da lei em si, algo irrealizável se o controle de constitucionalidade se restringir a um aspecto formal.

Essa inadequação é principalmente demonstrável nas sentenças manipulativas, (v. item 3.24), ou seja, aquelas em que o Supremo se comporta como um legislador, corrigindo o ordenamento jurídico e adequando-o à Constituição, seja adicionando um sentido constitucionalmente adequado ao texto não contemplado pelo enunciado legislativo (sentenças aditivas), ou substituindo parcela do enunciado legislativo por outro (sentenças substitutivas) proferido pelo STF, com o objetivo de conformá-lo à Constituição. 58 Perante a ordenança nacional, essa inadequação é mais evidente em razão do mandado de injunção, que permite ao Supremo proferir a normatividade essencial para corrigir a ausência legislativa, podendo adquirir efeitos ultra partes quando o mandamus for impetrado na modalidade coletiva.

Nesse sentido, o Supremo, quando realiza o controle de constitucionalidade, deve ser encarado como um órgão jurisdicional. A sentença proveniente do controle abstrato de constitucionalidade é um ato jurídico-processual, não um ato legislativo precedido do sinal negativo, 59 devendo ser fundamentado nos termos da CF 93 IX. Logo, deve ser abandonada a dicotomia nulidade (common law)/anulabilidade (Kelsen), 60 em que a primeira teria necessariamente efeitos ex tunc e a segunda efeitos ex nunc. O esquema nulidade/anulabilidade é insuficiente para explicar e embasar os diversos provimentos possíveis atualmente no controle de constitucionalidade; afinal, podem existir provimentos nos quais a inconstitucionalidade é declarada, porém a nulidade não é pronunciada.

Por conseguinte, o texto jurídico (lei), ainda que inconstitucional, se promulgado atendendo a requisitos mínimos do processo legislativo, produzirá efeitos ao entrar em vigência; assim, ainda que a lei possa ser considerada inconstitucional desde seu nascedouro, não se pode lhe negar a produção de efeitos na vida prática, o que a impede de ser considerada simplesmente inexistente. Imagine-se, por exemplo, que uma lei estivesse em vigor por alguns anos, tendo sido aplicada no deslinde de conflitos, e, de repente, descobriu-se que, ao ser promulgada, ela possuía vícios formais, ocasionando a anulação; impossível negar os efeitos provenientes dessa lei, ou, ainda tentar-se eliminá-los em razão do efeito ex tunc quando essa lei permitiu a formação da coisa julgada, por exemplo. Ainda que a lei não apresente vícios formais ou materiais evidentes, nada impede que, em algum momento, ela passe a ser interpretada/aplicada de maneira inconstitucional pela jurisdição ordinária, permitindo que seja objeto de arguição de nulidade sem redução de texto, por exemplo.

Portanto, independentemente da consideração acerca da nulidade ou anulabilidade da norma, é o exame de sua eficácia que mais interessa; afinal, o Supremo pode considerar uma lei inconstitucional e nada dispor; desse modo, em regra, poderá dizer que: a) é nula e seus efeitos são ex tunc, preservando a coisa julgada, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito; pode ainda, b) limitar os efeitos a partir de sua decisão a ex nunc; c) declarar a inconstitucionalidade, contudo, com eficácia pro futuro; ou, ainda, d) declarar a inconstitucionalidade sem pronunciar nulidade, ou seja, manter a eficácia da lei considerada inconstitucional.

Em síntese, o que se deve destacar é que, independentemente de se averiguar se a nulidade em razão da inconstitucionalidade é ab initio, porque geralmente o será, o que interessa é como a sentença constitucional declarará a inconstitucionalidade do enunciado legislativo, determinando assim sua ineficácia; com razão, Carmen Blasco Soto ensina que é a sentença constitucional que conecta invalidez com ineficácia. 61

Portanto, se declarada a inconstitucionalidade, ainda que a lei possa ser considerada nula (plano da validade) ab initio, os efeitos da ineficácia dessa lei são consequência processual plasmada na sentença constitucional. 62 É a sentença constitucional que realizará o elo entre a inconstitucionalidade (nulidade) e a eficácia da lei. A fixação dos efeitos temporais da lei considerada inconstitucional será delimitada pela sentença constitucional. Por conseguinte, ainda que a nulidade seja o resultado da declaração da inconstitucionalidade, ela não pode ser o critério lógico para estabelecer a eficácia cronológica da sentença. 63

Convém ressaltar que a fixação da eficácia não é ato discricionário do Supremo, tal como presente ao longo da obra; em verdade, a fixação dos efeitos da ineficácia da lei em razão da inconstitucionalidade deve ser realizada com intensa fundamentação e não possuir caráter discricionário, existindo hipóteses em que a limitação deve obrigatoriamente ser feita, enquanto em outras serão expressamente proibidas (v. item 3.29.2.6).

3.3.A “corte constitucional à brasileira”: composição e funções do Supremo Tribunal Federal

Grande parte dos apontamentos realizados acerca da função e da importância da jurisdição constitucional, juntamente com o conceito de Kelsen acerca do controle abstrato de constitucionalidade, possui, enquanto ponto em comum, a figura de um Tribunal Constitucional.

No Brasil, a Constituição Federal atribui ao Supremo Tribunal Federal as funções de um legítimo Tribunal Constitucional, possibilitando-lhe a realização do controle abstrato de constitucionalidade, nos termos da CF 102, I, a.

De acordo com a CF 92, I, o STF integra o ápice do organograma do Poder Judiciário brasileiro e a forma de composição dos seus ministros é realizada mediante nomeação do Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal ( CF 101, parágrafo único). O Supremo é formado por 11 ministros escolhidos entre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada ( CF 101).

Constata-se, portanto, que o STF adquiriu os poderes atribuídos a um Tribunal Constitucional, contudo, diferentemente desses tribunais, ele integra o próprio organograma do Judiciário, tendo sua forma de composição similar a dos EUA, onde inexiste controle abstrato de constitucionalidade.

3.3.1.O problema da legitimidade do Supremo Tribunal Federal ao exercer função de Tribunal Constitucional

O fato de o STF, dotado dos poderes e funções próprias de um Tribunal Constitucional, integrar o organograma do Judiciário é objeto das críticas formuladas por Nelson Nery Junior, quem alerta para a inadequação de um órgão do próprio Judiciário apreciar, em último e definitivo grau, e de forma abstrata, as questões constitucionais que lhe são submetidas, sem que sua composição seja formada pela representatividade dos demais Poderes (Legislativo e Judiciário). 64 - 65

No que se refere à representatividade na composição do STF, Nelson Nery Junior ensina que,

em países que possuem tribunais constitucionais, como a Alemanha, esse tribunal é o órgão constitucional de todos os poderes, situando-se no organograma do Estado ao lado do Executivo, Legislativo e Judiciário, não sendo, portanto, órgão do Poder Judiciário, nem se situando acima dos Poderes Executivo e Legislativo. É formado por pessoas indicadas pelos três Poderes, com mandato certo e transitório, vedada a contínua ou posterior recondução. O tribunal constitucional é, pois, suprapartidário. 66

A composição do Supremo Tribunal Federal, tal qual prevista hoje, ocasiona um problema de legitimidade, cuja solução depende da adoção de três medidas fundamentais: i) a retirada do STF do organograma do Judiciário, de modo a torná-lo um órgão suprapoderes; ii) aumento de representatividade na sua composição mediante indicação por parte dos demais Poderes, e não apenas por parte do Executivo; iii) criação de mandatos para o exercício do cargo de Ministro do STF, em substituição ao atual regime de vitaliciedade.

Obviamente que os três apontamentos mencionados deverão ser trazidos via emenda constitucional, visto que a composição e as atribuições do STF foram fixadas pela Constituição, devendo ser aplicadas plenamente até que modificadas via procedimento constitucionalmente previsto. Contudo, as críticas devem ser feitas e principalmente compreendidas como propostas para aumentar a legitimidade da composição do STF e, respectivamente, de suas decisões.

Ainda sobre o tema, é importante destacar que não há o modelo ideal de nomeação de Ministros, o que efetivamente deve haver é a criação de elementos teórico-normativos que assegurem, a um só tempo, a independência judicial e a redução de ativismo judicial. Vale dizer, mais do que a forma para nomeação de Ministros é fundamental compreendermos que devemos alterar profundamente diversas formas de decidir na jurisdição constitucional (cf. Cap. 1 e 10).

Com efeito, é possível afirmar que, talvez, nenhum tribunal do mundo (referência feita sempre a países formalmente democráticos) possui a gama de poderes que o STF possui. Exemplo desse excesso de poderes está na possibilidade de julgar com efeito vinculante a ação declaratória de constitucionalidade, determinar cautelares monocráticas e proferir súmulas vinculantes.

Vale lembrar que o STF, da forma como se estruturou, adquiriu alta concentração de poderes. Além de realizar controles difuso e abstrato (inclusive podendo julgar ação declaratória de constitucionalidade), o STF possui diversos processos de competência originária e pode, ainda, produzir diversos provimentos vinculantes com eficácia erga omnes, como decisões sobre repercussão geral, súmula vinculante e as cautelares monocráticas que, não raras vezes, suspendem, na integralidade, leis democraticamente aprovadas.

Se fizermos análise mais detida, não seria nenhum exagero afirmar que o Supremo Tribunal Federal brasileiro concentra mais poderes do que o Tribunal Constitucional Alemão e a Suprema Corte dos EUA, possivelmente os dois Tribunais mais influentes no cenário mundial.

Nessa linha, Canotilho, em mais de uma oportunidade, já destacou que o STF seria o Tribunal Supremo mais poderoso do mundo 67 em razão do acúmulo de funções e competências que lhe foram conferidas. Carlos Blanco de Morais, outro professor português, compartilha da visão de Canotilho, e considera que o STF é uma corte constitucional sem paralelo entre as demais, tendo em vista que, na opinião do jurista, a corte não tem hesitado em derrogar tacitamente a Constituição por meio de mutações constitucionais de natureza jurisprudencial. 68

Por conta do poder exacerbado atribuído ao STF é que pontuamos a necessidade de adequarmos, via emenda constitucional, diversos aspectos de sua conformação aos de um Tribunal Constitucional.

3.3.2.Conclusões principais

1. Enquadrar o Pretório Excelso como um legislador negativo retirar-lhe-ia todas as possibilidades de proferir as sentenças interpretativas como aquelas que versariam sobre a possibilidade hermenêutica da lei e não sobre o texto da lei em si, algo irrealizável se o controle de constitucionalidade se restringir a um aspecto formal. Essa inadequação é principalmente demonstrável nas sentenças manipulativas, ou seja, aquelas em que o Supremo se comporta como um legislador corrigindo o ordenamento jurídico e adequando-o à Constituição, seja adicionando um sentido constitucionalmente adequado ao texto não contemplado pelo enunciado legislativo (sentenças aditivas), ou substituindo parcela do enunciado legislativo por outro (sentenças substitutivas) proferido pelo STF, a fim de conformá-lo à Constituição. Perante a ordenança nacional, essa inadequação é mais expressiva em razão do mandado de injunção, que permite ao Supremo proferir a normatividade essencial para corrigir a ausência legislativa, podendo adquirir efeitos ultra partes quando o mandamus for impetrado na modalidade coletiva.

2. O Supremo, quando realiza o controle de constitucionalidade, deve ser encarado como um órgão jurisdicional. A sentença proveniente do controle abstrato de constitucionalidade é um ato jurídico-processual, não um ato legislativo precedido do sinal negativo, devendo ser fundamentado nos termos da CF 93, IX. Por conseguinte, o texto jurídico (lei), ainda que inconstitucional, se promulgado atendendo a requisitos mínimos do processo legislativo, ao entrar em vigência, produzirá efeitos; assim, ainda que ela possa ser considerada inconstitucional desde seu nascedouro, não se pode negar-lhe a produção de efeitos na vida prática, o que a impede de ser considerada simplesmente inexistente.

3. O esquema nulidade/anulabilidade é insuficiente para explicar e embasar os diversos provimentos possíveis atualmente no controle de constitucionalidade. Se sua insuficiência já decorria, ao menos em parte, da possibilidade de modulação no controle abstrato (objeto do item 3.29, infra), as alterações promovidas pela L 13655/2018 na LINDB (de que tratamos com vagar no Cap. 1), tornaram o referido esquema ainda mais obsoleto em nossa ordenança. Em síntese, o que se deve destacar é que, independentemente de se averiguar se a nulidade em razão da inconstitucionalidade é ab initio, porque geralmente o será, o que interessa é como a sentença constitucional declarará a inconstitucionalidade do enunciado legislativo, determinando, assim, sua ineficácia.

4. A Constituição brasileira atribuiu ao STF, o qual integra o Poder Judiciário, a competência de Tribunal Constitucional ( CF 102), imputando-lhe a função de controle, em abstrato, da constitucionalidade das leis. Parte da doutrina critica a atribuição do controle constitucional a órgão integrante do Poder Judiciário, posto que os demais Poderes ficam alijados ou em desvantagem no que concerne ao processo de apreciação da inconstitucionalidade em abstrato.

5. A composição do Supremo Tribunal Federal, tal qual prevista hoje, ocasiona um problema de legitimidade, cuja solução depende da adoção de três medidas fundamentais, a serem promovidas via emenda constitucional: i) a retirada do STF do organograma do Judiciário, de modo a torná-lo um órgão suprapoderes; ii) aumento de representatividade na sua composição mediante indicação por parte dos demais Poderes, e não apenas por parte do Executivo; iii) criação de mandatos para o exercício do cargo de Ministro do STF, em substituição ao atual regime de vitaliciedade.

3.4.Ação direta de inconstitucionalidade

A ação direta de inconstitucionalidade é o principal mecanismo para dar início e realizar o controle abstrato de constitucionalidade.

A ADIn é ação que visa a declarar inconstitucional, lei ou ato normativo federal ou estadual (no todo ou em parte), que tenha sido editado posteriormente à entrada em vigor da CF e, em face dessa, contestado.

Do mesmo modo, tendo em vista o parágrafo único da L 9868/1999 28, a ADIn também pode ser usada para se extirpar, em abstrato, uma variante jurisprudencial interpretativa de uma lei por meio da arguição de nulidade sem redução de texto, ou, então, estabelecer como constitucionalmente adequada uma variante interpretativa mediante a interpretação conforme à Constituição.

Após a publicação da decisão na imprensa oficial, depois do trânsito em julgado do acórdão do STF, em regra, são agregados à decisão os efeitos erga omnes e vinculante (sobre tema, v. item 3.20.12).

A regulamentação do julgamento da ADIn ocorreu pela L 9868, que consiste no texto normativo mais importante para o controle abstrato de constitucionalidade, disciplinando tanto a ADIn quanto a ADC.

3.4.1.Competência

O inc. I da CF 102, na alínea a, estabelece a competência do STF para processar e julgar a ADIn e a ADC. Se a competência do STF for usurpada, como quando se ajuíza ação cujo pedido seja a declaração, em abstrato, da inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, cabe reclamação ao STF para que seja preservada sua competência (CF 102, I, l, e RISTF XXXXX-162). Verificada a procedência da reclamação, o STF tranca o andamento da ação. 69

Apesar de o controle de constitucionalidade se caracterizar por um processo objetivo, os Ministros julgadores precisam atender ao requisito da imparcialidade. Nesse contexto, os aspectos concernentes à suspeição do magistrado referentes à presunção relativa ( CPC/1973 135 e CPC 145) não são causas para a quebra da imparcialidade do magistrado. Entretanto, as causas de impedimento ( CPC/1973 134 e 136 ou CPC 144 e 147), por possuírem um caráter objetivo, se forem configuradas, descaracterizam a imparcialidade do ministro. Por exemplo, o ministro que tenha participado da confecção da lei que tem sua constitucionalidade analisada em sede de ADIn não pode participar do julgamento da própria lei que emitiu. 70

O STF entendeu, ao julgar o Agravo Regimental na Rcl. 26512 , 71 que a instauração de Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade em tribunais, a respeito de matéria que já está sendo alvo de discussão em controle abstrato de constitucionalidade, não configura usurpação de competência. A Corte entendeu, em conformidade com o voto do Min. relator Ricardo Lewandowski, que, ao colocar em julgamento o Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade, o tribunal nada mais faz que exercer o controle difuso de constitucionalidade, razão pela qual não se usurpa competência do STF que julga, de forma simultânea, Ação Declaratória de Inconstitucionalidade.

Trata-se de decisão acertada que prestigia a convivência entre os dois modelos de realização de controle de constitucionalidade, uma vez que, tanto a legitimidade do STF para realização do controle abstrato quanto a legitimidade do Tribunal de Justiça para efetuar o controle difuso, são garantidas pelo texto constitucional. Ademais, é possível que a mesma lei, a depender da particularidade do caso concreto, seja submetida à decisão interpretativa que em nada conflitaria com o julgamento do STF, caso esse julgamento não seja pela anulação completa da lei. Caso o STF, mediante julgamento de ADIn, declare a lei plenamente inconstitucional, o trânsito em julgado dessa decisão tornaria sem objeto o incidente de arguição de inconstitucionalidade do Tribunal ainda não julgado. Caso já tivesse havido o julgamento, o seu resultado perderia eficácia a partir do trânsito em julgado da ADIn.

3.4.2.Objeto

Somente as leis e atos normativos federais ou estaduais contestados em face da CF é que podem ser objeto de controle abstrato pelo STF, por intermédio da ADIn.

As leis e atos normativos municipais contestados em face da CF não podem ser controlados abstratamente, mas somente no caso concreto, mediante o controle difuso da constitucionalidade.

As leis e atos normativos municipais podem ser objeto de arguição de descumprimento de preceito constitucional fundamental ( CF 102, § 1º), conforme previsão expressa da LADPF 1º, par. ún., I. Os atos passíveis de controle pela via da ADIn devem ser normativos abstratos, revestidos dos atributos da generalidade, abstração e impessoalidade. Atos administrativos e/ou de efeitos concretos não podem sofrer o controle pela via concentrada.

São passíveis de controle abstrato da constitucionalidade, por exemplo: a) emendas constitucionais (poder constituinte derivado); b) leis complementares; c) leis ordinárias; d) decretos legislativos; e) medidas provisórias; f) decretos; g) resoluções de tribunais; h) regimentos internos de tribunais; i) regimentos internos do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional; j) súmula vinculante do STF. 72

Assim que promulgada, a EC passa a fazer parte da CF. Ela se transforma em texto constitucional. Ainda que não seja exato se falar em hierarquia dentro do texto constitucional, fato é que as cláusulas pétreas, os direitos e os preceitos fundamentais, justamente por não poderem ser suprimidos, podem ser a causa da inconstitucionalidade de emendas à Constituição. 73

Sendo assim, a EC pode ser formalmente inconstitucional, porque não respeitou as regras do processo legislativo previstas na CF, ou materialmente inconstitucional, por trazer conteúdo que conflite com cláusulas pétreas, os direitos e os preceitos fundamentais.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de A. Nery entendem que os legitimados da CF 103 podem propor a edição, a revisão e o cancelamento da súmula de efeito vinculante ( CF § 2º do 103-A); nada obsta que o verbete vinculante seja objeto também de controle abstrato pela via da ADIn. 74

No que se refere ao objeto da ADIn, há, ainda, dois pontos que merecem uma breve análise: o controle de constitucionalidade de atos interna corporis e aquele realizado sobre as leis de efeito concreto.

O STF consolidou entendimento no sentido de ser impossível o controle judicial do ato normativo que dispõe sobre assunto interna corporis, exceção feita aos casos em que há violação de direito subjetivo. Essa discussão é frequente durante determinados trâmites legislativos. 75

Insta destacar, entretanto, que o Min. Marco Aurélio figura como voto vencido nos julgamentos que abordam este tema, alegando, em síntese, que o princípio da legalidade vincula a todos, inclusive os membros das Casas Legislativas que também se submetem ao devido processo legal e ao controle do judiciário. 76

Acerca do tema, dois pontos merecem destaque. Não há justificativa constitucional para se admitir o controle de atos interna corporis apenas quando houver violação a direito subjetivo. Esse discrímen não é constitucionalmente autorizado. Assim, se houver caracterização da institucionalidade em ato normativo geral e abstrato, ainda que interna corporis, deverá ser autorizada sua cassação. 77

Necessário registrar que o STF, em boa parcela dos julgados, estabeleceu essa jurisprudência para impedir que fossem cassados atos do Legislativo referentes ao processo de feitura das leis, porque se trataria de intromissão em atos interna corporis, cuja fiscalização acarretaria, inclusive, violação à separação de Poderes. 78

Em nosso entendimento, a forma correta de equacionar o risco da invasão de poderes está na correta compreensão da matéria referente ao controle preventivo de constitucionalidade das leis (v. item 3.11).

Nosso sistema constitucional não admite o controle prévio de constitucionalidade das leis pelo STF. Sempre que o julgamento da ADIn caracterizar controle prévio da constitucionalidade das leis, será defeso ao STF julgar seu mérito. O que é muito diferente de afirmar que há uma proibição em absoluto do STF realizar controle de constitucionalidade de atos interna corporis.

Portanto, se o ato interna corporis for geral e abstrato e apresentar inconstitucionalidade, o STF poderá fazer sua cassação, desde que não se afigure controle prévio de constitucionalidade das leis, sob pena de violação da separação de Poderes.

No que diz respeito às leis de efeito concreto, sabe-se que o STF adotava o entendimento de que não seriam passíveis de controle abstrato de constitucionalidade, pois a Constituição Federal teria elegido como objeto desse processo os atos tipicamente normativos, entendidos como aqueles dotados de um mínimo de generalidade ou abstração. 79

Não obstante a Jurisprudência do STF considerar inadmissível a propositura de ação direta de inconstitucionalidade contra atos de efeito concreto, houve significativa mudança nesse entendimento a partir do voto do Min. Gilmar Mendes na ADIn 4084. Nas razões de seu voto, o Min. Gilmar Mendes destacou que não era correta a concepção de que as leis de efeito concreto escapavam do controle abstrato de normas, entendendo que o constituinte não distinguiu entre leis dotadas de generalidade e abstração e aqueloutras, conformadas sem esses atributos. Essas leis formais decorrem ou da vontade do legislador ou do desiderato do próprio constituinte, que exige que determinados atos, ainda que de efeitos concretos, sejam editados sob a forma da lei, de maneira que, à semelhança de qualquer outro produto da legislatura, também estariam sujeitos ao controle abstrato. Ressalta, ainda, o voto do Ministro, que o abstrato haveria de ser o processo, e não o ato legislativo. 80

A mudança do posicionamento do STF, que passou a admitir o controle de constitucionalidade de leis de efeito concreto, não parece encontrar óbice constitucional. Entretanto, essa ampliação do objeto da ADIn não pode ser interpretada em desfavor do jurisdicionado no sentido de impedir, por exemplo, o ajuizamento de ações coletivas e do próprio mandado de segurança coletivo contra leis de efeito concreto.

Por conseguinte, a mudança do entendimento do STF no que se refere à possibilidade de admissão do controle de constitucionalidade abstrato de leis de efeito concreto não pode transformar a ADIn no único meio legítimo para se atacar judicialmente leis de efeito concreto. Obviamente, somente via ADIn, a lei de efeito concreto seria nadificada, todavia seus efeitos poderiam ser interrompidos e remediados mediante ação coletiva, e.g., a depender da especificidade do caso concreto.

3.4.3.Legitimados

Os legitimados para propositura da ADIn estão elencados na CF 103 e na LADIn 2º, segundo os quais, podem aforá-la: I – o Presidente da República; II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV – a Mesa de Assembleia Legislativa ou a Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal;2 V – o Governador de Estado ou o Governador do Distrito Federal; VI – o Procurador-Geral da República; VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII – partido político com representação no Congresso Nacional; IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

A CF, em seu art. 103, estabeleceu rol exaustivo de legitimados para ajuizar a ADIn. O STF tem entendimento consolidado a respeito do tema, e já o expressou em diversas ocasiões, como quando impediu o ingresso de ADIn por Município, ente que não está presente no rol. 81 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de A. Nery ensinam que se trata de legitimação em atendimento ao interesse público e social,

desvinculado do direito material objeto da ação. Quando há interesse público ou social em determinada matéria, a lei escolhe e legitima alguma entidade para defendê-lo em juízo. Enquanto para o direito subjetivo, em geral, a legitimidade é um prius e o interesse é um posterius – porque alguém é titular do direito (legitimidade) é que tem interesse em defendê-lo em juízo –, nos direitos difusos, públicos e sociais, como é o caso do exame abstrato da constitucionalidade de lei ou de ato normativo por meio de ADIn ou ADC, o interesse é um prius e a legitimação um posterius – porque a lei reconheceu a existência de um interesse público é que, posteriormente, legitima alguém ou alguma entidade para defendê-lo em juízo. 82

É o caso da ADIn e da ADC. O processo de controle concentrado (abstrato) da constitucionalidade é objetivo, de forma que é do interesse de toda a sociedade brasileira (interesse difuso e social) a manutenção, no sistema do direito positivo, somente de normas que sejam constitucionais. A exigência da “pertinência temática” ou “pertinência subjetiva” de algum ou alguns dos colegitimados pela CF 103 e LADIn 2º para o ajuizamento da ação, contraria a natureza objetiva dos processos da ADIn e da ADC. Pertinência temática ou subjetiva é própria do processo subjetivo, ou seja, do sistema do processo civil tradicional, regulado pelo CPC.

A legitimação autônoma para a condução do processo da ADIn é dada ao partido político que tenha representação no Congresso Nacional no momento do ajuizamento da ação. Caso o partido perca essa representação, no curso da demanda, o processo deverá continuar, dada sua natureza objetiva. O que é necessário comprovar é que o partido autor da ADIn tenha pelo menos um deputado ou um senador em seus quadros no momento em que a agremiação política ajuíza a ação. Trata-se de legitimação autônoma para a condução do processo (selbständige Prozeßführungsbefugnis), de sorte que referida legitimação é absolutamente desvinculada do direito material que se discute na demanda. 83

O critério estabelecido para haver legitimidade na propositura de ação direta de inconstitucionalidade é objetivo e não subjetivo. Vale dizer, o legitimado precisa estar previsto na CF 103 e corresponder às exigências postas no Texto constitucional. Logo, no caso de entidade de classe ou confederação sindical, o que é necessário se verificar é a representatividade nacional delas, sendo defeso cogitar acerca de sua pertinência temática.

O STF conceitua a pertinência temática como o elo entre os objetivos sociais da confederação e o alcance da norma que se pretende ver fulminada. 84

Inicialmente, o STF exigia a pertinência temática apenas às entidades de classe nacional. 85 Entretanto, a partir do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1114, passou-se a exigir a pertinência das confederações sindicais que ajuizassem tal demanda. Com efeito, tornou-se imprescindível também para as entidades de classe a demonstração da pertinência temática ainda que inexista qualquer respaldo para essa exigência. 86

Nesse aspecto, em consonância com a melhor doutrina, consideramos equivocada a jurisprudência do STF que exige a denominada pertinência temática de referidas entidades com o tema objeto da ação direta que pretendem ajuizar. A restrição é descabida, porque distingue aspecto que o texto constitucional não distinguiu. Entendimento contrário, conduziria ao absurdo de se exigir que o governador do Estado demonstrasse que a lei ou norma questionada, caso declarada constitucional ou inconstitucional, interferiria na ordem jurídica de seu Estado, ou, ainda, o disparate de se exigir o porquê do ajuizamento da ADIn pelo Conselho Federal da OAB, já que deveria demonstrar o reflexo da constitucionalidade ou não da norma questionada para o interesse específico e corporativo da classe dos advogados. 87 Em 2007, o STF modificou seu entendimento (ADIn 3961) no sentido de ser desnecessária a pertinência temática, conforme passamos a expor.

A questão envolvendo a abrangência do conceito de entidade de classe, para fins de legitimação ativa ao ajuizamento de ações de controle de constitucionalidade ( CF 103, IX e LADPF 2º, IX) voltou à pauta do STF na ocasião do julgamento da Medida Cautelar na ADPF XXXXX/DF , de relatoria do Min. Luis Roberto Barroso, ajuizada pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros.

Referida ação tinha por objeto os arts. 3º, §§ 1º e 2º, e 4º, caput e par. ún., da Resolução Conjunta da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação 1, de 15 de abril de 2014. Em síntese, nela se arguiu que os dispositivos impugnados violariam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana e esbarravam na proibição ao tratamento degradante e/ou desumano, ao determinarem que travestis e transexuais deveriam ser mantidos em estabelecimentos prisionais masculinos, ou seja, em locais incompatíveis com sua orientação sexual, nos quais se encontrariam em condições de vulnerabilidade e seriam submetidos a diversas violações de direitos, notadamente do direito à saúde e à dignidade, em suas dimensões física e psicológica.

A Associação ajuizou a ADPF, valendo-se do seu suposto status de entidade de classe, conceito cuja abrangência tem sido objeto de discussão no STF desde os primeiros anos da CF. 88 Tradicionalmente, a jurisprudência do Supremo tem entendido como entidade representativa de classe aquela que tem por membros os integrantes de uma determinada categoria profissional ou econômica, afastando a legitimidade de entidades de fins puramente sociais. 89 Tal posicionamento perdurou, no Tribunal, em diversas ocasiões, nas mais variadas composições. 90

O Ministro Relator, ainda que reconhecendo a consolidada jurisprudência do STF sobre a matéria, houve por bem admitir o processamento da ação, objetivando superar os antigos julgados da Corte e realizar uma abertura do controle concentrado à sociedade civil, aos grupos minoritários e vulneráveis, propondo, para tanto, uma nova definição de classe, assentando que, para fins da CF 103 IX, considera-se classe o conjunto de pessoas ligadas por uma mesma atividade econômica, profissional ou pela defesa de interesses de grupos vulneráveis e/ou minoritários cujos membros as integrem.

Consideramos que a decisão representou, em suas intenções, um passo na direção correta. É necessário, de fato, modificar a jurisprudência sobre o tema, para que se avance em direção a uma postura mais democrática, que contribua para a concretização do acesso amplo à jurisdição constitucional.

Se a cada dia, a judicialização da política aumenta o nível de ação do STF em diversas esferas da sociedade, essa abertura a novos intérpretes passa a constituir condição de legitimidade da própria jurisdição constitucional.

Ocorre que há viés ativista na decisão ampliativa de legitimidade, não obstante a importância da mudança por ela trazida. O ativismo está atrelado a um fundamento no sentido de que o STF deveria agir como uma espécie de órgão representativo da sociedade, influindo nos rumos sociais do país, como também propõe um conceito de entidade de classe que é amplo e subjetivo demais, apto a gerar, a longo prazo, insegurança jurídica. Esse viés representativo pode ser altamente danoso ao próprio STF, uma vez que ele pode ser objetado sempre que o Supremo buscar exercer sua função contramajoritária.

Vale ainda ressaltar que essa decisão não é coerente com a adotada no bojo do julgamento da ADIn 3961, apensada à ADI 48. 91 Nessa ocasião, o STF flexibilizou o requisito de pertinência temática para a propositura de ações de controle de constitucionalidade, ao conhecer e processar ADIn ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), cujo objeto eram trechos da Lei que regulava o transporte rodoviário de cargas (L 11442/2007). O Relator, Min. Luis Roberto Barroso, à época, não havia conhecido da ação, por ausência de pertinência temática do objeto social das associações com a questão a ser analisada.

Ora, se o que se busca é uma prestação jurisdicional-constitucional democrática, dentro dos limites do texto da Constituição, parece-nos incoerente admitir uma ampliação do conceito de entidade de classe e, simultaneamente, continuar a sustentar a aplicabilidade do requisito da pertinência temática que, como já tivemos a oportunidade de demonstrar supra, é uma restrição descabida. A superação desse entendimento, de nossa parte, constitui etapa indispensável à abertura do acesso à jurisdição constitucional.

A expressão pertinência temática não teve um delineamento objetivo na jurisprudência do STF. Consequentemente, seu uso dava margem a diversos subjetivismos no exame da legitimidade das ADIns. A manutenção da retirada da pertinência temática é imprescindível para a consolidação de uma jurisdição constitucional mais democrática e plural.

Outrossim, em função da relevância do papel desempenhado pela jurisdição constitucional, o primordial é que o STF possa se pronunciar acerca da (in) constitucionalidade da lei não se perdendo em filigranas processuais que sequer possuem respaldo no Texto constitucional vigente.

Cumpre ainda mencionar importante decisão, proferida em 2019, do Supremo Tribunal Federal (Informativo 929 – STF) acerca do CPC 183, reafirmando sua jurisprudência, no sentido de que o prazo em dobro para todas as manifestações processuais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, não seria aplicável aos processos objetivos. Trata-se de tema que ainda será enfrentado em outras oportunidades pelo STF, uma vez que, embora contrário ao entendimento, o Min. Toffoli propôs a edição de uma Súmula Vinculante sobre a questão. Acerca desse ponto, nos parece que seria uma oportunidade importante para o STF elaborar decisão interpretativa no sentido de verificar se faz sentido, em face da isonomia, essa vantagem processual aos entes públicos, principalmente no que diz respeito ao controle abstrato de constitucionalidade.

3.4.4.Medida cautelar e participação do Advogado-Geral da União

A LADin 10 permite ao STF conceder medida cautelar. Na realidade, admite-se a concessão de medida cautelar em ADIn, para garantir a eficácia do acórdão que decidir a respeito do mérito da ação direta.

A L 9868/1999, em seu art. 10, exige a maioria absoluta dos membros do Tribunal para concessão da liminar, observado o disposto no art. 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias. Somente no período de recesso é que se pode cogitar da concessão da liminar sem a observância da maioria absoluta dos Ministros. Nessa ocasião, a decisão deve ser dada pelo Presidente do STF (RISTF 13 VIII).

O § 1º da L 9868/1999 11 definiu como regra geral a eficácia ex nunc da decisão cautelar, sendo indispensável expressa manifestação do STF para concessão de efeito ex tunc. Obviamente que, na segunda hipótese, além de fundamentação que demonstre a presença dos requisitos para concessão da cautelar, deverá haver rigorosa motivação explicitando as razões pelas quais se optou por conferir o efeito retroativo à decisão da medida cautelar.

Em regra, os requisitos são os mesmos exigidos para toda e qualquer ação cautelar, notadamente o fumus boni juris e o periculum in mora. A aparência do direito se verifica quando a inconstitucionalidade é demonstrada prima facie, ainda que de forma superficial, mediante cognição sumária do STF. O perigo na demora caracteriza-se quando o autor da ADIn demonstrar que a demora no julgamento do mérito pode trazer consequências danosas para a ordem pública, razão pela qual a cautelar tem de ser concedida. 92

Antes de proferir decisão sobre a cautelar, a Lei impõe como regra geral a necessidade de se ouvir previamente a autoridade de quem emanou o ato atacado, a qual deverá se pronunciar no prazo de cinco dias (L 9868/1999 10). O relator, se julgar indispensável, poderá ouvir o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República no prazo de três dias (L 9868/1999 10 § 1º). Poderá também ser realizada sustentação oral pelos representantes judiciais que propuseram a ação bem como das autoridades ou órgãos responsáveis pela expedição do ato (L 9868/1999 10 § 2º).

Na hipótese de haver excepcional urgência, o Tribunal poderá deferir a medida cautelar sem a audiência dos órgãos ou das autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado.

A intervenção do Advogado-Geral da União é obrigatória nas ações diretas de inconstitucionalidade por força da CF 103 § 3º e LADIn 8. Ainda que a Constituição não faça menção expressa, entendemos necessária a manifestação do AGU nas ações declaratórias de constitucionalidade, em virtude dos efeitos que suas decisões definitivas de mérito produzem em nosso ordenamento.

Além disso, vale mencionar que o Advogado-Geral da União não está obrigado a defender o ato normativo impugnado, uma vez que o órgão possui autonomia para exercer sua subordinação direta à Constituição de 1988 e, consequentemente, concordar com a inconstitucionalidade do ato impugnado.

Nosso posicionamento se justifica pela natureza objetiva das ações de controle abstrato, em que inexistem interesses subjetivos contrapostos, mas, antes, interesse objetivo de proteção da ordem constitucional, de modo que o Advogado-Geral da União deve ser um partícipe dessa proteção, podendo, portanto, entender pela inconstitucionalidade do ato.

Essa autonomia de que dispõe o AGU, no entanto, não pode jamais ser lida como discricionária. Sua eventual manifestação favorável à procedência da ADIn ou improcedência da ADC deve ocorrer segundo as formalidades devidas e com a motivação que explicite aas razões daquele posicionamento.

Ou seja, nosso posicionamento favorável à atribuição de autonomia ao AGU é, antes de mais nada, concretizar uma garantia para ele possa exercer seu ofício tendo por norte a preservação da Constituição e não um agir pautado por critérios discricionários ou político. Nessa perspectiva, o AGU adquire uma democrática feição também se posicionando como guardião da Constituição.

Esse posicionamento encontra guarida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, ao julgar a ADIn XXXXX/DF 93 entendeu que uma leitura adequada do dispositivo constitucional deve remeter a um direito de manifestação do AGU, e não simples dever de defesa do ato impugnado.

Isso porque, como bem ressaltou o Min. Gilmar Mendes à época, ler o dispositivo no sentido de uma defesa necessária do ato poderia criar certos embaraços, no sentido de propor ao AGU defesa de algo há muito solidificado na jurisprudência do STF ou, ainda, nos casos em que a Advocacia-Geral da União propõe a ação em nome da Presidência da República para, depois, ter de defender o ato, no caso da a ADIn referida, estadual, impugnado, o que contrariaria, inclusive, o disposto na CF 131 que determina ser dever da AGU proteger os interesses da União, como bem ressaltou o Min. Lewandowski na ocasião. 94

Por fim, cumpre esclarecer que, em função de expressa previsão legal, a medida cautelar possui efeito repristinatório, logo, ela torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário (L 9868/1999 11 § 2º).

No que se refere aos efeitos, a decisão cautelar se impõe para todos. Entretanto, por se tratar de decisão provisória, ela não nadifica a lei, tão somente a torna sem efeitos até que o mérito da ADIn seja definitivamente analisado. Em outros termos, ainda que a medida cautelar seja oponível perante todos, ela não retira o ato normativo atacado do ordenamento jurídico. Essa aptidão somente é possível a partir do efeito vinculante oriundo da decisão definitiva de mérito do controle abstrato de constitucionalidade.

A depender da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, poderá ser adotado o procedimento abreviado 95 de julgamento da ADIn, disposto na LADIn 12. Havendo pedido expresso na medida cautelar, o relator verificará a matéria posta em julgamento e, após manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, submeterá o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação.

3.4.5.Rito abreviado

O rito abreviado prevê que o Plenário poderá julgar diretamente a ação em seu mérito, sem passar pela análise do pedido de medida cautelar. Esse rito foi adotado, por exemplo, pelo Min. Gilmar Mendes para a análise da ADIn 5756, 96 ajuizada pelo Partido Social Liberal (PSL), que questiona normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar sobre administradoras de benefícios. Em razão da relevância da matéria, o relator, ao apreciar a medida cautelar, já encaminhou a ação para o Pleno, para julgamento.

Se corretamente utilizado, o rito abreviado pode ser mecanismo salutar para impedir a monocratização da jurisdição constitucional. Ou seja, ele evitaria a proliferação de medidas cautelares monocráticas que suspendem eficácia de lei, a partir do julgamento de um único Ministro. Por meio de medida cautelar, diversas vezes o ato do Congresso fica suspenso por decisão singular precária (que não enfrenta o mérito da inconstitucionalidade) sem que sequer o colegiado do STF tenha se pronunciado.

De nossa parte, consideramos o rito abreviado por ser usado, inclusive, de forma mais sofisticada, permitindo, por exemplo, que o STF divida a análise do julgamento do mérito de uma ADIn em partes, fazendo verdadeira partição do mérito.

Nossa proposta é a de que o procedimento abreviado seja mecanismo para possibilitar o julgamento parcial do mérito da ADIn naquilo que for possível. Imaginemos que uma ADIn possui quatro pontos: A, B, C e D. Se o ponto A pode ser objeto de procedimento abreviado, entendemos pela viabilidade de seu julgamento antecipado mediante procedimento abreviado, continuando a ADIn em relação aos pontos B, C e D, que inadmitem referido rito.

Faz décadas que a doutrina processual civil já admite a decisão parcial de mérito. 97 Por exemplo, Adolf Schonke as definia como “aquellas que resuelven sobre cuestiones litigiosas que surgen aisladamente o reunidas em um proceso. Estas sentencias resuelven definitivamente las citadas cuestiones, antes de que se decisa sobre el proceso em su totalidade”. 98 Na visão de Alfredo Rocco: deciden una cuestión em el curso del procedimento”. 99 Vale dizer que

Alfredo Rocco, em sua monografia sobre a sentença civil, cuja primeira edição é de 1906, portanto anterior ao atual Código de Processo Civil italiano, defendia que a sentença deveria ser identificada pelo seu conteúdo, afastada qualquer condição extrínseca ao pronunciamento jurisdicional (...). 100

De forma mais sintética, Chiovenda as define como aquelas decisões que “no ponen fin a la relación procesal, sino que resuelven durante su curso una demanda o una excepción”. 101

O mérito não obrigatoriamente é julgado em um único ato decisório. Na precisa lição de Pontes de Miranda, “há tantas ações rescisórias quantas as decisões trânsitas em julgado em diferentes juízes”. 102

Atualmente, por força do que estabelece o CPC 356, 103 não deve haver mais dúvidas acerca da possibilidade de julgamento parcial do mérito. Os requisitos para decisão parcial de mérito são: a) pedido ser incontroverso; b) pedido estar em condições de imediato julgamento: b1) haver revelia e for o caso de poderem ser operados os efeitos da revelia; b2) as provas necessárias já estiverem produzidas.

Tendo em vista que o processo de controle de constitucionalidade abstrato, em regra, prescinde de dilação probatória, os requisitos do rito abreviado podem viabilizar a situação do CPC, de a ADIn estar, ainda que em parte, em condição de imediato julgamento.

Portanto, consideramos possível decisão parcial de mérito em controle abstrato. No exemplo dado, se determinada ADIn irá julgar questões A, B, C e D, caso as questões A e B estejam em condições de imediato julgamento, porque a verificação de sua inconstitucionalidade é mais simples ou porque dispensam colheita de informações via audiência pública ou por manifestação de amici curia, consideramos plenamente possível que o STF faça julgamento parcial de mérito dos pontos A e B, mediante procedimento abreviado somente para esses pontos.

O uso da decisão parcial de mérito é positivo por duas razões: a) ele imprime maior celeridade na resolução da questão de inconstitucionalidade. Mais precisamente, em vez de se esperar longo tempo até o STF se pronunciar acerca da validade de determinada lei, prestigia-se a celeridade a partir de rápida solução acerca dos pontos que demandam menor complexidade; b) resguarda a segurança jurídica, na medida em que, em vez de prolação de decisões cautelares monocráticas, logo temporárias, acerca da validade da lei, há manifestação colegiada em sede definitiva do STF acerca da lei, conferindo ao cidadão resposta jurisdicional de mérito que não corre o risco de ser alterada em futuro próximo porque já prolatada pelo colegiado mediante cognição plena.

3.4.6.ADIn estadual

No âmbito estadual, as Constituições dos Estados podem criar ações diretas de inconstitucionalidade, sendo-lhes vedado criar ADIn contra lei municipal em face da Constituição Federal, uma vez que o STF é o órgão competente máximo para declarar inconstitucionalidade em face da CF. Assim, no âmbito estadual, poderiam ser criadas ações diretas para verificar a inconstitucionalidade de atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição do Estado. A competência para julgamento dessa ação seria do Tribunal de Justiça do Estado. 104

Atualmente, a Jurisprudência do STF se consolidou no sentido de entender que os Tribunais de Justiça possuem legitimidade para a fiscalização abstrata da constitucionalidade de lei municipal impugnada em face de dispositivos da Constituição estadual que reproduzem literalmente regras de observância obrigatória da Carta da Republica. Do mesmo modo, essa jurisprudência admite a possibilidade de interposição de recurso extraordinário, se a interpretação da norma constitucional estadual que faz essa reprodução contrariar o sentido e o alcance da norma constitucional federal reproduzida. Ou seja, admite-se o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante tribunal de justiça estadual contra lei municipal frente a dispositivos da Constituição local ( CF 125 § 2º), ainda que esses dispositivos sejam de reprodução obrigatória de normas da Constituição Federal.

O caso paradigmático nesse sentido é a Rcl 383 . 105 O STF passou a admitir o controle abstrato em sede estadual, inclusive se a Constituição do Estado tão somente fizer referência a dispositivos federais. Logo, o STF passou a admitir que no bojo de ADIn estadual fossem utilizados como parâmetros de controle dispositivos da Constituição Federal, ainda que a Constituição do Estado não os reproduzisse, mas tão somente lhe fizessem referência. Essa referência remissiva faria com que as Constituições do Estado incorporassem os dispositivos da CF. 106

Todavia, ficará caracterizada a usurpação de competência do STF quando a norma violada da Constituição Estadual não for de reprodução obrigatória da Constituição Federal. 107

A jurisprudência do STF tem se estabilizado no sentido de admitir na fiscalização abstrata de constitucionalidade estadual a possibilidade de se utilizar o parâmetro da Constituição Federal, ainda que haja apenas referência a eles desde que sejam considerados de reprodução obrigatória na Constituição Estadual a partir do que estabelece a Constituição Federal. Do contrário, configurar-se-á usurpação de competência do STF.

3.5.Ação declaratória de constitucionalidade

A ADC não tinha previsão no texto constitucional originário. Ela foi introduzida pela EC 3/1993 e funciona como avocatória branca. Trata-se de verdadeira anomalia. O STF, ao julgá-la procedente, na verdade profere decisão normativa para os demais órgãos do Poder Judiciário. Não se verifica instituto similar à ADC no direito estrangeiro, justamente porque ela é desnecessária, absolutamente dispensável em um sistema jurídico que, como o nosso, possui controle concentrado de constitucionalidade e atribui à lei presunção iuris tantum de constitucionalidade.

A previsão de ADC confere ao STF poder que nenhum outro Tribunal Constitucional possui. Esse é um ponto nodal que criticamos da atribuição desmedida de efeito vinculante para os Tribunais Superiores. Isso porque, se aplicada ao pé da letra, a ADC permitiria ao STF fixar, em abstrato, o sentido interpretativo de um texto constitucional para o futuro, de forma imutável, criando grande risco de engessamento interpretativo, em dissonância com a historicidade que é ínsita à interpretação e aplicação das leis. Frise-se que esse mesmo risco existe nas súmulas vinculantes e nas repercussões gerais. Ocorre que, em função da estrutura e da regulamentação da súmula vinculante, ela se apresenta como o mecanismo mais adequado para fixar entendimentos. Nossa preferência se sustenta em dois pontos principais: a) para se produzir uma súmula vinculante deve haver diversas decisões prolatadas naquele sentido; e b) a regulamentação da súmula vinculante prevê procedimento para sua revisão e cancelamento (LSV e RISTF).

A ADC é consectária de uma visão em que a questão da segurança jurídica é pensada sob o ponto de vista do Judiciário e a crença de que os mecanismos vinculantes forjados para funcionar verticalmente assegurariam a concretização da segurança jurídica e acabariam com o fenômeno daquilo que se convencionou chamar de “jurisprudência lotérica”. Contudo, a existência da jurisprudência lotérica/aleatória não se deve à falta de mecanismos vinculantes, justamente porque, em nenhum lugar do mundo, são disponibilizadas às Cortes Superiores tantos institutos dotados de efeito vinculante, haja vista que somente no Brasil existem a súmula vinculante e a ação declaratória de constitucionalidade. Na realidade, a falta de segurança jurídica em nossa jurisprudência está relacionada à discricionariedade que levamos às últimas consequências, fazendo o julgador acreditar que poderia, inclusive, afastar-se da legalidade vigente, uma vez que, em seu imaginário, a lei estaria à disposição do intérprete que poderia deixar de aplicá-la por razões de conveniência e oportunidade. Nessa perspectiva, ADC deve ser, a cada dia, empregada como mecanismo protetivo de direitos fundamentais mediante a concretização do princípio constitucional da segurança jurídica.

Nada obstante nossas críticas com relação à natureza verdadeiramente avocatória de que dispõe a ADC, bem quanto aos riscos em se atribuir à referida ação caráter dúplice (vide item 3.6, infra), a ação declaratória de constitucionalidade integra o modelo brasileiro de fiscalização da constitucionalidade. Devemos, portanto, extrair dela suas potencialidades a partir de uma leitura que prestigie a separação de poderes.

É nessa linha de ideias que entendemos, por exemplo, pela necessidade de oitiva do Advogado-Geral da União no julgamento das declaratórias em defesa do ato impugnado.

Essa observação se deve ao fato de que, nada obstante a previsão Constitucional ( CF 103, § 3º) e infraconstitucional (LADIn 8 et seq) quanto à necessidade de oitiva do AGU nas ações diretas de inconstitucionalidade, a ausência de previsão expressa de sua participação também em sede de ADC, tem provocado certas peculiaridades procedimentais, como nos casos em que o AGU se manifesta na ação declaratória, mas defendendo a inconstitucionalidade do ato questionado, o que sempre constituiu exceção em sede de ações diretas de inconstitucionalidade. 108

Se a ADC já é uma anomalia por pretender confirmação judicial de ato que já dispõe de presunção de constitucionalidade, permitir que o AGU se manifeste contrariamente ao ato impugnado seria inverter por completo a lógica do sistema, uma vez que enfraqueceríamos o produto legislado e legitimaríamos a atuação do Judiciário como árbitro de uma disputa onde Legislativo e Executivo estão em campos opostos, movidos não pela defesa da ordem constitucional, mas, antes, pela conveniência política do ato em questão.

3.5.1.Competência

A competência da ação declaratória de constitucionalidade é do STF, nos termos da CF 102, I, a.

3.5.2.Objeto

Por expressa disposição constitucional (CF 102, I, a), o objeto da ADC é mais restrito que o da ADIn, porque se limita apenas à lei e ato normativo de caráter federal.

3.5.3.Legitimados

Os legitimados à propositura da ação declaratória de constitucionalidade são os mesmos da ação direta de inconstitucionalidade e estão previstos na CF 103, com a redação que lhe deu a EC 45/2004, secundado pela LADIn 13 que igualmente os elenca, a saber: I – o Presidente da República; II – a Mesa da Câmara dos Deputados; III – a Mesa do Senado Federal; e o IV – o Procurador-Geral da República.

3.5.4.Medida cautelar

Há previsão de medida cautelar na LADIn 21, que pode ser concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal.

3.5.5.Da natureza jurídica da ADIn e da ADC. O risco em se atribuir caráter dúplice

Questão polêmica que ainda persiste no cenário nacional diz respeito à possibilidade de o STF, ao apreciar uma ADIn e julgá-la improcedente, decidir pela constitucionalidade do ato normativo sub iudice. Parcela da doutrina 109 e da jurisprudência consideram a ADIn e a ADC como ação dúplice. 110

No entanto, entendemos que a ADIn e a ADC não podem ser consideradas a mesma ação com sinal trocado. O julgamento improcedente da ADIn não deve autorizar a declaração de constitucionalidade do ato normativo em questão. Isso porque, ainda que de maneira temperada, o princípio da congruência vige no processo constitucional; mesmo que a causa de pedir possa ser alterada, em nenhuma hipótese está autorizada a alteração do pedido; nesse sentido, o Tribunal Constitucional Português já decidiu que os seus poderes de cognição estão condicionados pelo pedido, mas não pela causa de pedir. 111

A ação é caracterizada pelo seu pedido e autorizar um tribunal a modificar o pedido é o mesmo que autorizá-lo a modificar a ação. Permitir-se essa teratologia é admitir que o tribunal, de forma transversa, inicie processo ex officio, porquanto pode alterar o pedido, ou seja, estabelecer nova ação.

É vedado ao STF modificar o pedido no controle abstrato de constitucionalidade, sem dizer do risco que é para a ordenança atribuir-se efeitos erga omnes e vinculante para as decisões declaratórias de constitucionalidade. O risco existe porque, se o STF decidir erroneamente sobre a constitucionalidade de determinado dispositivo legal, praticamente não haverá maneira de controlar suas decisões. Esse alerta é demonstrado por Rui Medeiros: as decisões do STF que declaram a constitucionalidade de determinado dispositivo legal dificilmente poderão ser corrigidas por outro órgão do Estado. Por consequência, surgiria o risco de dar azo do “poder incontrolável de decidir infalivelmente da constitucionalidade da lei, tornando-o num árbitro irresponsável da vida do Estado e em dono, em vez de servo da Constituição”. 112

Daí ser materialmente inconstitucional a L 9868/1999 24, 113 que atribui esse caráter ambivalente à ADIn. Essa naturalidade que o caráter ambivalente possui traz os riscos retroapontados. Não é pacífico ou lógico que o simples fato de um texto normativo não ser declarado inconstitucional conduza, necessariamente, à constitucionalidade do texto em questão, no sentido de impedir para sempre que sua inconstitucionalidade possa novamente ser examinada a partir de novos fundamentos fático-normativos. Essa ambivalência não tem respaldo no direito comparado, até porque, no direito estrangeiro, não há a figura da Ação Declaratória de Constitucionalidade. 114

Demais disso, o caráter dúplice pode gerar o risco de uma decisão surpresa. A jurisdição constitucional, quando opera o controle abstrato de constitucionalidade, não tutela direitos subjetivos de forma direta. Entretanto, é evidente que os particulares serão atingidos pelos efeitos de sua decisão. Nessa perspectiva, o caráter dúplice pode gerar resultados definitivos e com efeito vinculante que sequer foram debatidos ao longo do processo. Ou seja, o ente legitimado da ADIn é surpreendido por um resultado completamente distinto daquele buscado por meio da ADIn. Essa decisão surpresa no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade pode gerar diversos problemas de segurança jurídica ao impor uma decisão que sequer era esperada porque nunca havia sido debatida.

Por essas razões, consideramos que mais adequado do que a utilização indiscriminada do caráter dúplice seria a possibilidade de cumulação de pedidos, tanto a objetiva quanto a subjetiva, mediante a participação de outros entes nesse processo.

Assim, desde a terceira edição da obra, estamos mais preocupados com o caráter constitucional do processual da ambivalência das ações. Vale dizer, tendo em vista a fungibilidade entre as ações do controle abstrato, o mais relevante é impedir que o STF profira decisões sobre pedidos e fundamentos que não tenham sido devidamente debatidos no âmbito da jurisdição constitucional. Nesse aspecto é essencial a participação dos amici curiae e as audiências públicas.

Por fim, ainda que prevaleça o caráter dúplice, no mínimo, os fundamentos a serem usados pelo STF para declarar a constitucionalidade, bem como os respectivos efeitos dessa declaração, necessariamente precisam ser previamente debatidos pelos partícipes do processo (autor, demais legitimados e amici curiae).

3.5.6.A possibilidade de cumulação de pedidos

O STF já entendeu, também, pela possibilidade de se cumular, em uma única ação, pedidos típicos de ambas as ações, ou seja, o reconhecimento de constitucionalidade e inconstitucionalidade de dispositivos legais. Na ADIn 5316, 115 ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), questionava-se, inicialmente, a expressão “nas condições do artigo 52 da Constituição Federal”, contida no texto do ADCT 100, introduzido pela Emenda Constitucional 88/2015 2º, popularmente conhecida como PEC da Bengala. Dias depois, porém, aditou-se a inicial para incluir novo pedido, pelo qual se requeria que o STF conferisse interpretação ao ADCT 100, (a) seja para dizer que o disposto no referido artigo não pode ser estendido aos Desembargadores dos Tribunais, até que seja editada lei complementar; (b) seja para dizer que a lei complementar mencionada na EC 88, quanto à magistratura, é a lei complementar da iniciativa do STF, de sorte a poder obstar a série de ações propostas nos Estados, visando a ampliar indevidamente o limite de idade de aposentadoria de Desembargadores, antes da edição do novo Estatuto da Magistratura. Esse novo pedido, adicionado à petição via emenda, é típico de uma ADC. Por maioria de votos, o STF entendeu pela possibilidade da cumulação de pedidos.

A admissão da cumulação nos parece alternativa mais democrática do que a duplicidade, uma vez que a cumulação é feita pelo próprio autor da ação. Na prevalência da alternatividade, além da improcedência do pedido, se permite ao STF a modificação, por completo, do pedido do autor. Trata-se de ação oficiosa do STF, que não se coaduna com a inércia do desempenho jurisdicional.

É preciso consignar, a essa altura, que, ao entendermos inadmissível e arriscada a defesa do caráter dúplice entre essas duas ações, o mesmo não ocorre em relação às ações diretas de inconstitucionalidade por ação e as que tenham por objeto uma omissão inconstitucional, seja ela total ou parcial.

Isso porque, conforme explanamos em item subsequente, (3.8.1.), a fungibilidade entre essas duas figuras de procedimento de controle concentrado dá-se não pela ampliação dos limites objetivos do seu pedido, mas, antes, pela constatação de sua identidade e pelo aumento – lícito e, por vezes, necessário – das fronteiras das suas causas de pedir.

3.6.Arguição de descumprimento de preceito fundamental

A ADPF é prevista na CF 102 § 1º e foi regulamentada pela L 9882, de 03.12.1999, que dispôs, em seu art. 1º, que a arguição terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. André Ramos Tavares elenca como objetos da arguição tanto os atos normativos quanto os atos administrativos e jurisdicionais, até mesmo atos estatais materiais. 116

Trata-se de ação constitucional, sendo competente o STF para o processamento e julgamento da arguição de descumprimento de preceito constitucional fundamental ( CF 102 § 1º).

Os antecedentes do instituto remontam à Constituição do Reino da Baviera de 1808, reino que hoje corresponde ao estado da Baviera na república alemã. Atualmente, o agravo constitucional (Verfassungsbeschwerde) consta do art. 93-A da Constituição Federal alemã (GG). A importância do agravo constitucional alemão dá a característica de sua essência: proteger a todos contra os descumprimentos de preceitos constitucionais fundamentais perpetrados pelo poder público. Na Alemanha, portanto, é da essência do instituto ser utilizado por qualquer do povo. Esse instituto alemão inspirou a carta brasileira na criação da nossa ADPF. 117

3.6.1.Preceito fundamental

Não é todo e qualquer preceito constitucional que pode ser fiscalizado pelo STF por intermédio da arguição de descumprimento. Somente os preceitos que têm magnitude máxima na ordem constitucional é que se caracterizam como fundamentais para os efeitos previstos na CF 102, § 1º, e na LADPF.

Os preceitos fundamentais são valores jurídicos fundamentais dominantes na sociedade. São fundamentais, entre outros, os preceitos constitucionais relativos: I – aos fundamentos da República: a) Estado Democrático de Direito (CF 1º caput); b) soberania nacional ( CF 1º, I); c) cidadania ( CF 1º II); d) dignidade da pessoa humana ( CF 1º III); e) valores sociais do trabalho e da livre iniciativa ( CF 1º IV); f) pluralismo político ( CF 1º V); II – às cláusulas pétreas ( CF 60 § 4º): g) direitos e garantias fundamentais ( CF 5º); h) direitos sociais ( CF 6º a 11); i) forma federativa do Estado brasileiro; j) separação e independência entre os Poderes; l) voto universal, secreto, direto e periódico. 118

3.6.2.Objeto

O objeto da arguição é ato do Poder Público que possa ser lesivo ao preceito fundamental.

Esse ato do Poder Público pode ser normativo ou administrativo, comissivo ou omissivo. Todos esses ficam sujeitos à fiscalização por meio da arguição de descumprimento de preceito constitucional fundamental.

A expressão Poder Público compreende todas as autoridades públicas e todos os órgãos das Administrações Públicas direta e indireta. Nesse conceito, estão inclusas as pessoas jurídicas do direito público interno (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), seus respectivos órgãos (Ministérios, Secretarias e demais órgãos de decisão e execução), bem como as entidades da Administração indireta (autarquias, agências reguladoras, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas), em todos os níveis de governo (federal, estadual, distrital e municipal).

Por órgão do Poder Público, entende-se, também, o particular que se encontre no exercício de função pública ou delegada pelo Poder Público (serviços notariais e registrários, serviços públicos de transporte, ensino superior (universidades e faculdades), serviços de telefonia, rádio e televisão etc.). Atos de particulares que descumpram preceito constitucional fundamental, em detrimento de direito subjetivo, estão sujeitos ao controle jurisdicional comum. 119

O mecanismo da arguição de descumprimento de preceito fundamental é, hoje, um dos meios de controle abstrato da constitucionalidade das leis e atos normativos no direito brasileiro. Tendo em vista a extrema rigidez do sistema constitucional para a admissibilidade da ADIn, quando não couber a ADIn, será possível levar ao STF, por meio da arguição – questão relativa à inconstitucionalidade de lei federal, estadual, distrital ou municipal – para que se tenha decisão de caráter geral, com força de coisa julgada, relativamente à matéria controvertida.

Pela arguição de descumprimento de preceito fundamental, por exemplo, pode ser feito o controle concentrado da constitucionalidade de lei municipal, contestada em face da CF. Pelo sistema constitucional brasileiro admite-se a propositura de ADIn federal para o controle das leis e atos normativos federais e estaduais contestados em face da CF. O controle da constitucionalidade, em abstrato, das leis e atos normativos municipais, não pode ser feito por meio de ADIn no STF. Do mesmo modo, conforme demonstramos anteriormente, não pode haver previsão nas Constituições Estaduais de controle abstrato de constitucionalidade de lei municipal, tendo por parâmetro a Constituição Federal. Nessa hipótese, apenas a Constituição do Estado pode ser a parametricidade.

A jurisprudência do STF é firme no sentido da inadmissibilidade de controle abstrato, por meio de ADIn, da constitucionalidade de lei ou ato normativo editado anteriormente à CF. Isso porque não haveria, no caso, interesse processual, porquanto referidas normas, se estivessem em desconformidade com a nova ordem constitucional, não teriam sido recepcionadas (sobre controle de constitucionalidade de leis anteriores à CF, ver 3.10). Daí a desnecessidade de declará-las inconstitucionais. Entretanto, muito embora nesses casos não caiba a ADIn, esse controle pode ser exercido por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental, por expressa autorização da LADPF 1º, parágrafo único, I.

A amplitude do conceito de ato do Poder Público apto a ser objeto de ADPF torna-a importante via processual de controle democrático, uma vez que essa abertura permite que atos bastante atípicos sejam confrontados com a Constituição.

Na realidade, a ADPF que, na gênese da CF ficou relegada ao ostracismo, atualmente, exerce protagonismo fundamental no controle de constitucionalidade. A fluidez de seu objeto tem possibilitado o controle de diversos atos que, até então, eram praticamente blindados ao controle de constitucionalidade, por exemplo: decisões vinculantes e súmulas de outros Tribunais Superiores, linha jurisprudencial ilegal, toda a ordem de atos do poder Executivo, leis anteriores à Constituição, bem como atos homologatórios ou atos praticados pelo Ministério Público ou advocacia pública.

Nesse cenário, em 2018, foi julgada a ADPF 324 (Informativo XXXXX/STF), cujo ato do Poder Público impugnado consistiu em um conjunto de decisões do Tribunal Superior do Trabalho, também contemplado no Enunciado 331 do TST, que considerava ilícita a terceirização da atividade-fim. Nessa ocasião, pontuou o Min. Marco Aurélio que dificilmente um Recurso Extraordinário seria admitido pela Justiça Trabalhista por contrariar enunciado do seu próprio Tribunal de Cúpula. Esse aparte demonstra a importância de um instrumento de controle de constitucionalidade residual, que permita o enfrentamento dessa e de outras questões similares.

Em 2017, o STF já havia sinalizado a possibilidade de um conjunto de decisões de um Tribunal Estadual configurar ato do Poder Público, para fins de admissão e processamento de ADPF. Tal entendimento fora firmado no julgamento da Medida Cautelar na ADPF 405 /RJ, 120 cujo objeto era uma série de decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que

resultaram em bloqueio, arresto, penhora, sequestro e liberação de valores das contas administradas pelo Poder Executivo para atender: (i) determinação de imediato pagamento de salários de servidores estaduais ativos e inativos; (ii) satisfação imediata de créditos de prestadores de serviços; e (iii) cumprimento imediato de tutelas provisórias que estabelecem prioridades políticas para a aplicação de recursos públicos.

Tramita, também, perante o STF, a ADPF 398-DF , de Relatoria do Min. Edson Fachin, ajuizada pela Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematógráficas Operadoras de Multiplex (ABRAPLEX), cujo objeto é a jurisprudência do STJ, que entende configurar venda casada e, portanto, ato ilícito, a proibição de entrada em cinemas com alimentos e bebidas adquiridas fora do estabelecimento.

Se a ADPF não for utilizada com essa ampliação de abrangência de seu objeto, decisões judiciais e correntes interpretativas inconstitucionais repercutirão diversos efeitos sem possuírem mecanismo efetivo de controle. Essa reconfiguração da ADPF é sadia do ponto de vista da higidez do sistema constitucional brasileiro.

Destacamos ainda a ADPF 568 /PR, de Relatoria do Min. Alexandre de Moraes, que questiona os efeitos e a homologação, pela 13ª Vara Federal de Curitiba, de acordo firmado entre Procuradores da República do Ministério Público do Paraná e a Petrobrás, bem como a ADPF XXXXX/DF , de Relatoria do Min. Edson Fachin, que tem por objeto anular inquérito aberto pelo Min. Dias Toffoli para a apuração de ameaças aos Ministros que integram o Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que o STF seria incompetente para a investigação, bem como que o Inquérito poderia representar alguma forma de censura.

Tais ações são ilustrativas do papel importante que a arguição de descumprimento de preceito fundamental exerce, atualmente, na jurisdição constitucional, permitindo o controle de atos atípicos e potencialmente lesivos à ordem constitucional, que, de outra maneira, poderiam ficar sem o devido controle pela ausência de um instrumento processual adequado.Cumpre mencionarmos que, na linha da jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal, que tem admitido ADPF que tenha como objeto a jurisprudência de um Tribunal como ato do Poder Público violador de preceito fundamental, vislumbramos a possibilidade de manejo da ação para impugnar também Súmulas do Superior Tribunal de Justiça, não só pelo fato de efetivamente representarem a posição consolidada do Tribunal sobre determinado assunto, como também pela eficácia erga omnes que os verbetes sumulares adquiriram com o advento do CPC 927 IV.

Assim, súmulas de Tribunais Superiores e decisões de recursos repetitivos (que não podem adequadamente serem atacados por recurso extraordinário) podem ter sua constitucionalidade controlada por meio do uso da ADPF. A ADPF, nesse caso, seria útil não apenas em relação ao texto desses provimentos judiciais vinculantes, mas também em relação às suas hipóteses interpretativas. Por exemplo, o STF poderia declarar inconstitucional uma forma de aplicação da súmula do STJ e não o texto da súmula em si. Ou, então, um dos efeitos do acórdão repetitivo do STJ, e.g., a pretexto de considerar abusiva uma prática negocial, o STJ deixa de examinar leis estaduais que regulamentam e possibilitam essa prática. O STF poderia, a partir da ADPF, preservar a competência legiferante dos Estados e evitar que o julgamento do REsp repetitivo faça surtir efeitos inconstitucionais.

Ainda sobre o tema, há um ponto fundamental para cabimento da ADPF. Trata-se da sua subsidiariedade. O caráter subsidiário da ADPF rege a instauração do processo objetivo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, condicionando o ajuizamento dessa especial ação de índole constitucional à ausência de qualquer outro meio processual apto a sanar, de modo eficaz, a situação de lesividade indicada pelo autor. 121

Ainda no que diz respeito ao objeto da ADPF, o Supremo Tribunal Federal entende que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, cujo ato lesivo seja o veto presidencial, carece de condições que viabilizem o seu ajuizamento e apreciação.

O veto presidencial, segundo o STF, é ato discricionário do Chefe do Poder Executivo e, caso fosse dado provimento à Arguição, caracterizar-se-ia afronta à tripartição dos Poderes. Portanto, é incabível o ajuizamento de ADPF em caso de veto a projeto de lei. 122

Entretanto, o Min. Celso de Mello proferiu decisão monocrática na ADPF 45 que pode alterar, ou pelo menos arejar, o entendimento do STF quanto ao tema, na medida em que sinalizou a possibilidade de a ADPF realizar controle do veto presidencial. Todavia, a ADPF, em seguida, perdeu o objeto. 123

Entendemos que o veto presidencial não é um ato puramente potestativo. Na realidade, ele constitui, inclusive, uma hipótese de controle de constitucionalidade pela Administração Pública, logo, é admissível vislumbrar hipóteses em que ele possa ser objeto de ADPF. Contudo, não poderá ser objeto de ações ajuizadas pelo cidadão, conforme entendimento exarado pelo STF, no julgamento do MS XXXXX/DF . 124

3.6.3.Formas

A arguição de descumprimento de preceito constitucional fundamental pode ser feita por ação (arguição autônoma), conforme caput da L 9882 1º, e por via de incidente (arguição incidental), na hipótese prevista no parágrafo único, I, da L 9882 1º.

O incidente criado estabelece uma preliminar de inconstitucionalidade, porquanto a Corte Constitucional (STF), quando “for relevante o fundamento da controvérsia constitucional”, poderá ser chamada a pronunciar-se a respeito da matéria, em decisão de caráter geral, com eficácia contra todos (erga omnes) e vinculante aos demais órgãos do Poder Público. A utilização da arguição pela via incidental faz com que seja antecipada a solução sobre a interpretação, pelo STF, de preceito constitucional fundamental quando o feito ainda se encontra sub judice na instância ordinária. Não se trata de “avocatória”, pela qual o STF requisitaria o processo e decidiria a lide, por inteiro, subtraindo do juiz natural o exame da causa. Ao contrário, o incidente funciona como uma espécie de juízo prévio acerca da interpretação, pelo STF, do preceito constitucional fundamental questionado no juízo ordinário. Assemelha-se mais ao incidente de inconstitucionalidade (ou prejudicial de inconstitucionalidade) dos países europeus que têm corte constitucional. Não fosse assim, o incidente seria inconstitucional, como inconstitucional nos afigura a avocatória. 125

Deve ser arguido o incidente por meio de petição inicial, nos termos da LADPF 3º, porque se assemelha à prejudicial de inconstitucionalidade. Ajuizada a arguição no STF pela via incidental (LADPF 1º parágrafo único, I), o processo em que se discute a controvérsia constitucional (que deu origem à arguição), em outro juízo ou tribunal, deverá ficar suspenso até que se resolva a arguição incidental (CPC 313, V, a).

Vale dizer, ocorre a suspensão até que o STF decida sobre a constitucionalidade do ato do Poder Público questionado no processo que tramita no juízo ordinário. Julgada a arguição, o STF deverá comunicar o resultado do julgamento ao juízo de origem, para que seja cumprida a decisão e aplicado o seu conteúdo ao caso concreto. O STF deverá pronunciar-se apenas sobre a constitucionalidade do ato impugnado, quer dizer, somente sobre o descumprimento ou não, pelo Poder Público, do preceito constitucional fundamental. No que se refere aos efeitos da decisão, pela via incidental, há efeitos no próprio processo e efeitos que se projetam para fora do processo. No processo, como a arguição versa sobre questão prejudicial constitucional, há verdadeira interferência do resultado do julgamento do STF na solução da lide, pois o juiz terá de aplicá-lo, necessariamente, para resolver o caso. É a questão prejudicial que atinge diretamente o resultado do mérito. Fora do processo, os efeitos da decisão do STF sobre o descumprimento do preceito constitucional fundamental atingem a todos (eficácia erga omnes) e vinculam os demais órgãos do Poder Público. 126

3.6.4.Legitimados

A L 9882/1999 2º, I, assegura aos legitimados para a propositura da ADIn a possibilidade de ajuizarem a ADPF.

Todavia, a referida lei continha inc. II que permitia ao cidadão a possibilidade de ajuizar a ADPF perante o STF. Esse inciso foi vetado de forma inconstitucional pela Presidência da República na época. 127

Como há duas vertentes para o uso da ADPF (interesse geral e interesse subjetivo), há que se fazer distinção quanto à legitimação para agir. Os legitimados da CF 103 têm, também, legitimação para ajuizar a arguição de descumprimento de preceito constitucional fundamental perante o STF, quer se trate da arguição autônoma (ação), quer da incidental. Inexigível a pertinência temática.

Com essa legitimação restrita, reduziu-se o instituto da CF 102 § 1º, de defesa do cidadão contra atos de descumprimento de preceitos constitucionais fundamentais, em sucedâneo de controle da constitucionalidade. Nessa medida, a restrição legal é inconstitucional por ausência de regulamentação. Para salvar-se o instituto da inconstitucionalidade, deve admitir-se o ajuizamento da medida por qualquer do povo (interpretação conforme a CF). 128

A despeito do veto ao inc. II, pelo princípio constitucional do direito de ação, que proíbe a lei de subtrair do controle jurisdicional ameaça ou lesão a direito, e tendo em vista a possibilidade de utilização do instituto contra descumprimento relativamente a direito subjetivo, qualquer pessoa pode deduzir demanda diretamente ao STF, pleiteando a defesa de preceito constitucional fundamental descumprido pela autoridade ou órgão do Poder Público ( CF 5º XXXV). O particular não pode deduzir a arguição em outro juízo ou tribunal porque o STF é a Corte Constitucional federal brasileira e nenhum outro órgão do Poder Judiciário está autorizado a decidir matéria constitucional com força de coisa julgada erga omnes.

O processo, aqui, é misto, dado que possui natureza objetiva e subjetiva. É objetivo porque a decisão do STF tem caráter geral, produzindo efeitos erga omnes e vinculando os demais órgãos do Poder Público; subjetivo porque evita ou repara a lesão a direito constitucional fundamental do autor da ação ocasionada em razão do descumprimento do preceito constitucional fundamental pela autoridade ou órgão do Poder Público.

Ademais, da forma como se encontra regida a legitimidade para a causa, na LADPF 2º, há inconstitucionalidade por falta de regulamentação, pois o instituto foi reduzido a uma outra forma de controle da constitucionalidade, pelos mesmos legitimados da CF 103. Qualquer do povo pode pedir ao STF, por meio da ADPF, que controle a constitucionalidade de lei ou de ato normativo (federal, estadual, distrital ou municipal), concedendo-lhe a tutela jurisdicional, inibindo a prática de ato quando houver ameaça ou exprobrando e desconstituindo o ato se o preceito constitucional fundamental já tiver sido violado. Quanto a outras ofensas constitucionais, que não sejam de preceitos fundamentais, para saná-las, o particular pode utilizar a via do mandado de segurança.

3.6.5. Medida cautelar em ADPF

No procedimento da ADPF é permitida a concessão de liminar nos termos já explicados para a ADIn. Nos tópicos subsequentes, passamos a indicar quais os critérios adequados para a concessão de liminares no controle abstrato de constitucionalidade. Contudo, dedicamos o presente item para tratar de alguns aspectos referentes à especificidade da ADPF.

Em relação à ADPF, o que merece destaque é a amplitude de pedidos a serem feitos que não se restringem, tão somente, à declaração de inconstitucionalidade de ato normativo, consequentemente, essa amplitude também abrange seus respectivos pedidos cautelares. Desse modo, a ADPF também pode ser utilizada como mecanismo de fixação de interpretações vinculantes sobre tema controverso, bem como a imposição de ordens mandamentais para o Poder Público, ainda que de forma liminar.

O Supremo Tribunal Federal tem nos rendido bons exemplos recentes de cautelares devidamente concedidas em sede de ADPF.

Destacamos aqui a cautelar concedida na ADPF 601, 129 onde foi determinado que as autoridades públicas competentes se abstivessem de praticar atos, visando à responsabilização do jornalista Glenn Greenwald como decorrência das informações veiculadas pelo The Intercept Brasil, com fundamento nos direitos fundamentais da liberdade de imprensa ( CF 5º XIV e 220), garantido o sigilo da fonte, bem como a liminar concedida nos autos da ADPF 444 , 130 onde restou vedada a condução coercitiva de investigados para comparecimento em interrogatórios, “sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”

Na mesma linha, em virtude da pandemia referente ao coronavírus, o Min. Marco Aurélio, no bojo da ADPF 347 , em decisao de 18.03.2020, concedeu tutela provisória para proteger a saúde da população prisional, impondo, de forma resumida as seguintes medidas: a liberdade condicional de presos com idade igual ou superior a sessenta anos, regime domiciliar para presos com doenças que os transformem em grupos de risco em relação ao coronavírus, regime domiciliar para gestantes e lactantes e regime domiciliar ou substituição de prisões provisórias para os presos que tenham cometido crime sem violência ou grave ameaça. 131

Na referida decisão, ao final, o Min. Marco Aurélio imediatamente sujeitou sua decisão monocrática ao referendo do Plenário, essa é uma das medidas que consideramos imprescindíveis para a utilização democrática das cautelares em controle abstrato.

Outra decisão digna de nota foi a liminar concedida pelo Min. Barroso em 31.3.2020, na ADPF 669 , para proibir a circulação, por qualquer meio, da campanha do Governo Federal “O Brasil Não Pode Parar”, em propaganda contrária às medidas de isolamento social adotadas por diversos Estados e Municípios. Além de determinar, após o cumprimento imediato da decisão, o retorno imediato dos autos à conclusão para que a cautelar possa ser analisada pelo Plenário, em postura muito salutar e por nós defendida já em edições anteriores.

Com base nos critérios que elencamos, identificamos que as cautelares foram concedidas com acerto. Com efeito, todas serviram para tutelar direitos fundamentais frontalmente ameaçados, foram exaustivamente fundamentadas a partir do direito e dos fatos do caso concreto, encerram ampla possibilidade de revisão pelo Plenário (com efeito, em julgamento definitivo, a ADPF 444 foi julgada procedente, declarando-se a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou réus para comparecimento em interrogatório, e com a pronúncia de não recepção da expressão “para o interrogatório” do CPP 260). 132

Outrossim, as posições que embasaram as liminares não inovaram em hipótese alguma. O embasamento delas estava conforme posicionamento sólido do Plenário a respeito dos direitos fundamentais em discussão, algo que fica sobremaneira evidente na ADPF 601, uma vez notória a jurisprudência protetiva do STF em relação à liberdade de imprensa. Em relação à ADPF 347 , igualmente, o Relator imediatamente sujeitou a manutenção da cautelar ao referendo do Plenário do STF.

Ainda sobre o tema, merece destaque no contexto da pandemia de coronavírus a ADin 6357 que provocou o Supremo Tribunal Federal a intervir no cenário público de forma inédita, demonstrando toda a importância e amplitude que a jurisdição constitucional assume nos dias de hoje.

A Presidência da República, por intermédio da Advocacia-Geral da União, ajuizou referida ADIn pretendendo que o STF desse a certos artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano de 2020 uma interpretação que permitisse ao governo aumentar despesas sem indicar a fonte imediata de custeio.

A razão para tanto é a seguinte: ainda que o Congresso Nacional tenha reconhecido o estado de calamidade pública, por meio do Decreto Legislativo 06/20, tal medida se voltou, de forma exclusiva, a viabilizar a tomada de ações de saúde emergenciais.

Ou seja, todas as demais exigências fiscais não foram suspensas, e ao governo não foi atribuída a “liberdade” orçamentária necessária para financiar outras espécies de políticas públicas contra a disseminação da COVID 19 e viabilizar a recuperação da economia com medidas assistenciais aos mais prejudicados pela crise.

Segundo a LRF e a LDO de 2020, caso a Presidência da República determine o aumento de despesas públicas com políticas públicas continuadas, é necessário indicar, previamente, as formas de compensação, sob pena de crime de responsabilidade.

Disso decorreu o pedido para que o STF interpretasse a imposição legal de indicar imediatamente as fontes de custeio como exigível, imediatamente, apenas em situações de normalidade.

A Presidência da República argumentou que, caso não pudesse agir de imediato, as circunstâncias impostas pela pandemia do novo coronavírus acabariam por levar ao sacrifício de certos direitos sociais e assistenciais previstos na Constituição Federal.

O pedido formulado pelo governo exprime uma realidade inescapável: o direito é, por si só, incapaz de absorver a crescente complexidade dos problemas sociais. É necessário um diálogo entre os Poderes da República, que permita dar a solução mais constitucionalmente adequada aos impasses atuais.

Caso contrário, correríamos o risco de soluções ilegítimas, insuficientes, ineficientes ou, no limite, de exceção pura e simples.

Nesse sentido, o fato de a Presidência da República ter se socorrido dos meios institucionais/constitucionais para dar à crise um encaminhamento que prestigie o diálogo entre os Poderes, é algo, nos dias atuais, raro e digno de celebrar.

Evita-se, assim, mal-estar institucional, especialmente entre o Executivo e o Legislativo, que, nos últimos tempos, só nos têm dado mostra da sua tumultuada relação.

O Ministro Alexandre de Moraes, a quem coube a relatoria da ação, deferiu a medida liminar, que deverá, ainda, ser confirmada pelo Plenário do STF. Com isso permitiu, desde já, a criação ou expansão de gastos públicos que busquem conter a crise, sem a necessidade de demonstrar, imediatamente, como se fará a compensação orçamentária. Até mesmo porque, se o governo precisasse fazê-lo agora, promoveria a criação de tributos novos ou a majoração de tributos já existentes, medidas essas que, neste momento, agravariam a já precária situação em nos encontramos.

A decisão concluiu, de forma acertada, muito embora entendamos ser necessário enfatizar que as exigências em questão foram tão somente postergadas e deverão ser cumpridas no futuro, sob pena, inclusive, de o Congresso Nacional não aprovar as leis orçamentárias para o próximo exercício ( CF 48 II). É justamente por isso que ela não pode ser interpretada como um “cheque em branco”, que eximiria totalmente o Executivo de indicar, no futuro, a fonte de custeio.

Talvez a urgência do momento não tenha permitido uma reflexão mais detida ao STF. Se a finalidade do pedido da Presidência da República é justamente promover o diálogo para superar a crise, a decisão poderia ter determinado, de maneira clara, algumas medidas de accountability ao Executivo, para que demonstrasse, desde logo, os gastos despendidos e como o dinheiro público está sendo utilizado. Ou ainda, deixar claro que a indicação da fonte de custeio foi postergada e não eliminada em definitivo.

Não podemos ignorar, nesse processo, o importante papel que pode ser exercido pelo Congresso Nacional como órgão fiscalizador da atuação excepcional do Executivo.

Tomemos de exemplo o que foi determinado pelo decreto legislativo que reconheceu o estado de calamidade pública, por meio do qual constituiu-se uma Comissão Mista para “acompanhar a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de saúde pública” (art. do decreto legislativo 06/20).

Perante a perspectiva jurídica, a liminar era a única alternativa para a flexibilização das regras de responsabilidade fiscal nas atuais circunstâncias, assegurando a dinamicidade necessária para implementação de políticas públicas que o presente requer. Trata-se de momentânea e circunstancial flexibilização de regras de responsabilidade fiscal para assegurar medidas protetitavas para direitos fundamentais e sociais.

É importante destacar que as cautelares concedidas poderiam ser, a qualquer momento, revistas pelo Plenário, ou até mesmo pelo próprio Relator, com o que fica preenchido critério da recorribilidade útil. Por fim, nas ADPFs 444 e 601 não seria cabível a modulação de efeitos, uma vez que a cautelar concedida na ADPF 601 tratava de medida preventiva, e aquela dos autos da ADPF 444 tratava de atos já plenamente esgotados (conduções já realizadas), de modo que os agentes que assim procederam, em tese, estavam tutelados pela previsão legal do CPP 260, até então, não declarado como não recepcionado pela ordem constitucional vigente.

Já a medida cautelar da ADin 6357, se revogada depois de um determinado lapso de tempo impõe a modulação de efeitos para não haver a punição do agente público que tenha agido – sob a sua égide – sem a observância de determinadas regras legais referentes à Lei de Responsabilidade Fiscal.

Portanto, as liminares mencionadas, em comum, têm o fato de sua utilização ter sido feita em prol da proteção de direitos fundamentais. Conforme detalhamos de forma mais analítica nos itens subsequentes, resguardar direitos fundamentais, do ponto de vista normativo e motivacional, é condição sine qua non para uso constitucionalmente legítimo das cautelares no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade. Ou seja, demonstrar como a medida cautelar irá proteger esses direitos é a chave-de-legitimidade para se admitir o uso desse tipo de decisão em sede de jurisdição constitucional.

3.7.Critérios para a concessão de medidas liminares pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ADIn, ADC e ADPF

A atuação monocratizada dos Tribunais Superiores, não obstante, ser um mecanismo para assegurar eficiência na gestão dos diversos recursos, tem apresentado problemas de diversas nuances, em especial no controle abstrato de constitucionalidade. Esses problemas aumentam em relação ao STF em virtude da influência e da importância máxima exercida pelo Supremo Tribunal Federal.

Não ignoramos o fato de que liminares são igualmente concedias pelo Plenário. Com efeito, essa deveria ser a regra, já que a LADIn 10 e 21 condiciona a concessão de cautelares à decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal. Destacamos as liminares monocráticas uma vez que são mais frequentes, já que são os recursos de eficiência na gestão por excelência.

Como ficará evidente nas linhas que seguem, alguns dos critérios que delimitamos serão aplicáveis somente às liminares monocráticas. Sem qualquer prejuízo, nossa intenção é a de que as considerações abaixo sirvam de guia para a concessão de quaisquer decisões liminares, singulares ou não, quando os critérios forem aplicáveis às decisões colegiadas.

3.7.1.A importância do estabelecimento de critérios como forma de legitimação da decisão liminar

Não são raras as vezes em que uma lei tem sua eficácia suspensa por decisão liminar que, para além da insegurança jurídica que perdura até o exame definitivo do mérito, acaba por gerar efeitos materiais de grande impacto, injustificáveis pela natureza provisória dessa espécie de pronunciamento judicial. Sem mencionar o risco de, na ocasião do julgamento pelo Plenário, a maioria se formar em sentido contrário ao da liminar, gerando assim, um hiato temporal cuja normatividade vigente foi exclusivamente uma decisão monocrática.

Ainda que não emitido em sede de controle abstrato de constitucionalidade, o quadro que se desenhou, durante o julgamento da Ação Ordinária XXXXX/DF, de relatoria do Min. Luiz Fux, foi particularmente ilustrativo acerca do tema. Nela, discutia-se o recebimento de valores a título de auxílio-moradia por membros do Poder Judiciário e de outros órgãos e entidades.

Em 2014, o STF concedeu liminar, autorizando o pagamento de verbas a título de auxílio-moradia a magistrados, por meio de uma decisão provisória, revogada em 2018, momento em que se reconheceu a impossibilidade do seu recebimento.

Outro exemplo elucidativo do ponto para o qual pretendemos chamar a atenção aqui ocorreu no bojo da ADIn XXXXX/DF. 133

Cuidou-se de ação proposta pelo Conselho Federal da OAB pretendendo a declaração de inconstitucionalidade do art. 1.º da MP XXXXX-43 nos pontos onde alteravam o DL 3365/1941. O artigo introduzido no Decreto-Lei fixava juros compensatórios anuais em até 6% nas desapropriações, além de especificar que os juros somente seriam devidos em caso de perda de renda comprovada pelo proprietário.

Em setembro de 2001, o Supremo Tribunal Federal entendeu por bem deferir pedido liminar para suspender ex nunc a expressão “de até seis por cento ao ano” prevista no caput do art. 15-A incluído pela MP impugnada, bem como o § 1º do mesmo dispositivo.

O STF, no entanto, só julgaria a ação em definitivo mais de 16 anos depois, em maio de 2018, ocasião em que, de forma diametralmente oposta à cautelar concedida, entendeu pela constitucionalidade dos atos impugnados.

Não se pretende com esse exemplo contrariar a possibilidade de julgamento de mérito oposto ao conteúdo da decisão liminar, mas, tão somente, alertar para os prejuízos que podem decorrer de uma liminar, sejam eles ao erário ou a direitos fundamentais.

O melhor exemplo recente da necessidade de critérios para a concessão de medidas liminares, no entanto, foi a suspensão da figura do juiz das garantias ( CPP 3-A, 3-B, 3-C, 3-D, 3-E e 3-F), incluído pelo "pacote anticrime" (L 13964/2019) em sede de ADIn proposta pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). 134

A inclusão da figura do juiz das garantias no Código de Processo Penal foi extremamente salutar por ao menos duas razões. Em primeiro lugar, por explicitar o papel coadjuvante (mas, imprescindível) do juiz na investigação criminal, bem como por tornar o processo penal brasileiro efetivamente acusatório, uma vez que é inconcebível, em uma democracia constitucional, que o mesmo juiz da fase pré-processual, e que, portanto, já atuou no mais das vezes de forma invasiva nos direitos do acusado, atue também na fase de instrução e julgamento. 135

As alterações que incluíam o juiz de garantias no Código de Processo Penal foram inicialmente suspensas pelo prazo de 180 dias, uma vez tendo entendido o STF à ocasião que a vacatio legis de 30 dias fixado pelo pacote anticrime seria insuficiente, dadas as adaptações administrativas necessárias.

Tal decisão nos pareceu acertada. Trata-se de uma inovação para utilizar o controle de constitucionalidade como ferramenta de adequação da vacatio legis. Conforme apresentaremos no item 3.7.3, abaixo, a concessão de liminares deve observar também as dificuldades reais da administração, conforme determina a LINDB 22. No entanto, em nova análise após o fim do regime de plantão no STF optou-se pela suspensão por prazo indeterminado dos referidos artigos.

Como ficará evidente no item seguinte, a decisão de suspender o juiz de garantias não atende a nenhum dos critérios que entendemos minimamente razoáveis à concessão de medidas liminares. Não há direito fundamental protegido pela suspensão. De modo diametralmente oposto, a suspensão manterá desprotegidos direitos fundamentais essenciais do acusado.

A suspensão por prazo indeterminado igualmente não permite a reanálise imediata pelo Plenário, não encontra similar na jurisprudência da Corte (ressaltemos que a suspensão por prazo indeterminado não respeita o produto legislado), além de ter sido essencialmente baseada em fundamentos ao estilo law and economics, onde o discurso jurídico é capturado pelo eficienticista. 136

O que se pretendeu demonstrar, com esses exemplos, é tão somente o quadro, frequente, em que uma liminar sustenta, por assim dizer, um estado de coisas de extrema relevância jurídica e orçamentária. Na realidade, ainda que não haja envolvimento de qualquer questão orçamentária direta, fato é que se trata de algo sensível, do ponto de vista democrático, se possibilitar a suspensão de atos do Congresso por meio de manifestações individuais dos membros do STF.

Conforme destacamos no item 3.4.1, o modelo de julgamento dos nossos Tribunais, feito pela soma de diversos votos individuais, torna excessivamente difícil haver consenso acerca de quais seriam as razões ao redor das quais a Corte formou sua convicção para decidir em determinado sentido. A monocratização, portanto, agrava esse cenário de pulverização das posições individuais e torna ainda mais difícil a tarefa de identificar posições institucionais do STF, gerando os efeitos sistêmicos mais diversos. Perante a monocratização, torna-se extremamente dificultosa a criação de um cenário de unidade ao direito.

Obviamente, não temos a pretensão de esgotar as hipóteses em que o STF deve, ou não, conceder monocraticamente uma liminar. O que buscamos é tentar desenvolver uma criteriologia mínima para essa matéria no sentido de submeter essa atuação monocrática aos fins institucionais do STF, ou seja, um dever de deferência ao Plenário, proporcionando assim, unidade e coerência ao direito constitucional brasileiro.

Nesse aspecto, enumeraremos a seguir algumas formas de minorar os efeitos da monocratização do Supremo, como a utilização mais proveitosa do rito abreviado e a adoção do julgamento antecipado parcial de mérito em sede de controle abstrato. Nada obstante, entendemos ser necessária a fixação de alguns critérios mínimos que devem ser observados para se autorizar a concessão de medidas liminares pelo Supremo Tribunal Federal.

3.7.2.Criteriologia mínima para a concessão de liminares pelo Supremo Tribunal Federal

Entendemos que a legitimação da concessão de medidas liminares depende da observância de, ao menos, seis requisitos fundamentais: (i) exaustiva fundamentação quanto à necessidade da medida liminar; (ii) ser uma forma efetiva de tutela de direitos fundamentais; (iii) dever de deferência ao plenário, ou seja, estar em consonância com o posicionamento do Pleno sobre a matéria, se houver; (iv) encerrar possibilidade de ampla revisão; (v) via de regra, submeter a ADIn imediatamente ao rito abreviado; e (vi) inexistência de indícios pela necessidade de modulação dos efeitos da decisão de mérito.

Com relação ao primeiro requisito, o Relator deverá fundamentar, exaustivamente, as razões pelas quais entende que a concessão da liminar é necessária, ou seja, por quais motivos a tutela imediata daquela situação, à revelia do Pleno ou da Turma, é imprescindível e não pode aguardar até o julgamento definitivo. Ou ainda, por qual motivo não é possível aguardar que o Plenário se manifeste pela sua concessão ou não. Conforme já afirmamos, em toda liminar no controle abstrato deve, antes de sua concessão, haver por parte do Relator, uma deferência ao colegiado.

Nessa mesma linha, a medida liminar deve, via de regra, servir para tutelar direitos fundamentais, uma vez que sua posição de destaque na ordem constitucional faz com que sua proteção dê à medida, a legitimidade necessária para sua concessão. Questões que não envolvam direitos fundamentais, em regra, podem aguardar julgamento definitivo, ou no mínimo, a manifestação do Pleno, além do mais, não possui aptidão para justificar os efeitos negativos de insegurança jurídica que advém de uma decisão provisória. O que buscamos demonstrar é que a tutela de …

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28 de Maio de 2024
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