44.1. Considerações Iniciais

Sumário: 44.1. Considerações iniciais 44.2. Objetividade jurídica 44.3. Sujeitos do delito 44.4. Tipicidade objetiva e subjetiva 44.5. Consumação e tentativa 44.6. Causas de aumento de pena 44.7. Pena e ação penal Charlatanismo Art. 283. Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. 44.1. Considerações iniciaisO crime de charlatanismo surgiu no ordenamento pátrio por meio do Código Penal Republicano (1890), em seu art. 157 1 , em face do silêncio do diploma anterior. O Código Penal de 1940, por sua vez, simplificou a construção típica no art. 283, cuja redação permanece a original. A figura em destaque detém a mesma índole da que envolve o crime de exercício ilegal da medicina 2 , no sentido de proteção antecipada da saúde pública de possíveis atos lesivos temerários. 44.2. Objetividade jurídicaO bem jurídico tutelado consiste na saúde pública . O sugestionamento de cura por meios inidôneos, aparentemente milagrosos, possui o condão de ludibriar pessoas ingênuas ou desesperadas, levando-as a não procurar ou a abandonar o tratamento científico necessário a seus males, resultando em riscos ou lesões à saúde ou à vida dos indivíduos. 44.3. Sujeitos do delitoQuanto ao sujeito ativo , o crime de charlatanismo pode ser cometido por qualquer pessoa, inclusive o médico, quando tem conhecimento do aspecto inócuo do tratamento de que anuncia. Cuida-se de crime comum , ou geral. Sujeito passivo é a coletividade (crime vago). Secundariamente, as pessoas que tenham sido atendidas pelo agente. 44.4. Tipicidade objetiva e subjetivaA figura incriminadora prevista no art. 283 do Código Penal estabelece: “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível ”. Trata-se de tipo misto alternativo , ou de conteúdo variado, revelador de dois núcleos, de modo que a prática de ambos, em face do mesmo objeto material, caracteriza crime único, apenas possibilitando tratamento mais rigoroso no momento de imposição da pena-base, consoante as circunstâncias judiciais (art. 59 do Código Penal). Inculcar significa recomendar, aconselhar, sugerir ou indicar. Anunciar é sinônimo de divulgar, noticiar, propagar, pelos mais variados meios, como cartazes, panfletos, anúncios na internet , mensagens de rádio, alto-falantes etc . Objeto material da infração é a propagação de cura por meio secreto ou infalível , ou seja, sua manifestação cura por meio secreto é a promessa de restabelecimento da saúde por intermédio de tratamento oculto, isto é, procedimentos desconhecidos da ciência. Cura infalível , a seu turno, consiste no compromisso de tratamento plenamente eficaz, infenso à falha. A palavra “charlatão ” – que vem do italiano “ciarlatano ” –, sinonímia de “falastrão ”, “embusteiro ”, “trapaceiro ”, denota uma pessoa que se apresenta como curador, aproveitando-se da boa-fé de pessoas, em geral, a troco de vantagens por suas falsas promessas. Todavia, o tipo penal brasileiro não exige a demonstração do intuito de obtenção de qualquer benefício, o que facilita sua punição. Não se faz necessário que qualquer pessoa se submeta à cura anunciada para caracterização do ilícito (o crime é de perigo comum e abstrato , ou presumido). Tampouco o delito em questão exige habitualidade, perfazendo-se com a perpetração de um único comportamento. De igual modo, é irrelevante que a recomendação ou anúncio não consiga convencer alguém, bastando a realização dessas práticas 3 . Não obstante, se o método for inalcançável, como na assertiva de que a cura para AIDS ou Covid-19 se encontra no estabelecimento de moradia na Lua ou no Sol, o crime será impossível , pois neste caso não há idoneidade para afetação da saúde pública. Elemento subjetivo do tipo é o dolo, independentemente de qualquer especial fim de agir (tipo congruente). Inexiste forma culposa. O sujeito ativo do charlatanismo deve ter ciência da ineficácia dos meios anunciados, sendo que essa é uma distinção desse crime da figura de exercício ilegal da medicina (art. 282) 4 , a qual, ademais, mostra-se como crime habitual . O delito de charlatanismo também não se confunde com o de curandeirismo (art. 284), figura mais grave em que o agente efetivamente atua de forma falsamente curativa, por exemplo, prescrevendo, ministrando ou aplicando substância falsamente medicamentosa. No charlatanismo há apenas a sugestão ou divulgação de meios de cura ilegítimos. Se o intuito do agente, ao praticar o charlatanismo, for o de lucro, haverá concurso formal impróprio entre o crime de charlatanismo e o de estelionato (art. 171) 5 . Neste caso, não se poderá falar em absorção daquela figura por esta última, tendo em vista que tutelam bens jurídicos distintos, havendo, nas circunstâncias, uma periclitação da saúde pública, além de um perecimento patrimonial de vítima concreta. De conseguinte, embora a fraude empreendida para se auferir a vantagem patrimonial tenha o caráter de charlatanismo, sua ofensividade trespassa a vítima despojada economicamente. O concurso é formal impróprio (art. 70, caput , in fine , do Código Penal) e não material vez que o comportamento é único, isto é, uma obtenção de vantagem, realizada mediante fraude, a qual também ofende a saúde pública. No mais das vezes, o sujeito intenciona com o charlatanismo a prática de um estelionato, mas o legislador houve por bem antecipar a tutela penal para se evitar a concreção de danos sociais. Dessa maneira, quando, no caso particular, não se puder demonstrar referido objetivo de lucro do agente, haverá punição exclusiva pelo crime previsto no art. 283. 44.5. Consumação e tentativaO crime de consuma com a conduta de inculcar ou anunciar a cura por meio secreto ou infalível, independentemente de consequências lesivas a quem quer que seja. Cuida-se de crime formal , de consumação antecipada, ou de resultado cortado. O delito é instantâneo , e não habitual, como visto. Dessa maneira, é dispensável a reiteração de comportamentos para sua configuração. Em tese, a tentativa é possível, dado o caráter plurissubsistente da figura. 44.6. Causas de aumento de penaConsoante a regra inscrita no art. 285 do Código Penal, combinado com seu art. 258, se da prática do crime de charlatanismo resultar lesão corporal de natureza grave (ou gravíssima), a pena será aumentada em metade. Na hipótese de resultado morte , a sanção será duplicada. Essas situações são exclusivamente preterdolosas , ou seja, pressupõem dolo na conduta antecedente (o crime de charlatanismo) e culpa em face do consectário de lesão grave ou morte, e.g ., charlatão que ocasiona, de forma imprudente, lesão corporal grave em pessoa que se submete à cura secreta. Caso se verifique que o agente atuou com dolo (direto ou eventual) em relação ao evento danoso lesão grave ou morte, responderá pelo crime previsto no art. 283 em concurso material com lesão corporal grave ou homicídio . É o que ocorre, e.g , na inculcação de método infalível a pessoa que se sabe com grave câncer em estágio inicial e que podia ser salva caso buscasse a tempo o auxílio médico, que o agente anuncia desnecessário em prol de seu procedimento ilegítimo. 44.7. Pena e ação penal O crime de charlatanismo é sancionado com pena de detenção, de três meses a um ano, e multa (art. 283). Em decorrência do previsto no art. 285 do Código Penal, é possível aplicar a disciplina do art. 258 ao crime em destaque. São hipóteses de causas de aumento de pena , apesar de a lei referir-se a “formas qualificadas ”. Desta feita, se em razão delito decorrer o resultado de lesão corporal de natureza grave , a pena privativa de liberdade é aumentada em metade; se sobrevém o resultado morte , a pena é aplicada em dobro (art. 258, 1ª parte). A ação penal é pública incondicionada . O tipo em destaque é infração penal de menor potencial ofensivo , de modo que seu processo e julgamento competem ao Juizado Especial Criminal (art. 61 da Lei nº 9.099/1995). Admite-se a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/1995). Sendo admitida transação penal, é incabível o acordo de não persecução penal (art. 28-A, § 2º, I, do Código de Processo Penal). QUADRO ESQUEMÁTICO Nomen iuris Charlatanismo Objeto jurídico Incolumidade pública, em especial a saúde pública Objeto material Manifestação de cura secreta ou infalível Sujeito ativo Qualquer pessoa ( crime comum ) Sujeito passivo Coletividade e, secundariamente, a pessoa atendida Tipicidade objetiva Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível Tipicidade subjetiva Dolo Consumação Com a conduta de inculcar ou anunciar a cura por meio secreto ou infalível (crime formal) Tentativa Admite Pena •Tipo básico: detenção, de 3 meses a 1 ano, e multa •Causas de aumento de pena pelo resultado: pena aumentada de metade (lesão corporal grave); pena em dobro (morte) Ação penal Pública incondicionada Competência Juizado especial criminal Acordo de não persecução penal Não é possível “Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública: Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. § 1º Si por influencia, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas: Penas – de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000 ”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal : parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1986, v. II, p. 267. FARIA, Antônio Bento de. Código penal brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1961, v. VI, p. 275. Nesse sentido, HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal . Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. IX, p. 152. Em sentido oposto ao ora defendido, entendendo ser possível a absorção do crime de charlatanismo pelo delito de estelionato, e.g ., cf. TJSC, ApCrim XXXXX,23.2017.8.24.0014, 2.ª Câmara Criminal, rel. Des. Volnei Celso Tomazini j. 14/05/2019; TJSC, ApCrim XXXXX,71.2017.8.24.0067, 2.ª Câmara Criminal, rel. Des. Sérgio Antônio Rizelo, j. 14/11/2018.

44. Charlatanismo (Art. 283)

44.2. Objetividade jurídica

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