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16 de Junho de 2024
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    12 de junho de 2016: a naturalização do ódio pelo discurso da fé

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    A cultura do ódio à identidade de gênero e à orientação sexual é, ao mesmo tempo, estimulada pelo discurso religioso e alimentada pela negação estatal. As políticas públicas brasileiras, nelas incluídas as pautas legislativas, preferem negar a sua existência, não criminalizando condutas e se omitindo na desconstrução pedagógica da naturalização do ódio.

    O assassinato de meia centena de pessoas que dançavam em uma boate LGBT na cidade nos EUA, no dia 12 de junho de 2016, será lembrado como um triste marco no cometimento de crimes advindos dessa cultura do ódio.

    Justamente por isso, a redução de tal conduta a uma motivação de cunho extremista muçulmano deve ser rechaçada de plano, pois apenas reforça discursos de demonização do Islã, esquecendo­-se convenientemente da perversidade de diversos outros ramos religiosos que, da mesma forma, possuem integrantes que disseminam ódio direcionado à orientação sexual e à identidade de gênero das pessoas.

    Já no dia seguinte ao crime, o pastor cristão Steve Anderson chamou o assassinato de “boa notícia” e elogiou a conduta, pois “homossexuais são pervertidos, nojentos e pedófilos”. Em outros momentos, o mesmo líder religioso do Arizona pregara a execução pública de gays e lésbicas e, fazendo uso da bíblia, explicara aos seus fiéis porque a mulher não deveria votar, trabalhar fora de casa ou se divorciar.

    O apelo de se trocar um ódio por outro é prática corrente, tendo sido energicamente adotada no Brasil pelo parlamentar Marco Feliciano. Naquele dia 12 e nos dois dias que se seguiram, o congressista brasileiro, declaradamente cristão, postou dezenas de mensagens acerca do tema em sua conta de twitter. Disse, por exemplo, que o ocorrido deveria ser atribuído ao terrorismo do Estado Islâmico, não se tratando de crime de ódio à orientação sexual e que visava atacar “o símbolo da CULTURA americana progressista”. Fez ainda uma referência ao PL 1780/11, destacando que em tal projeto há previsão de se tornar “obrigatório o ensino sobre a cultura árabe e a tradição islâmica”, numa clara insinuação de que todos os muçulmanos seriam terroristas.

    Aliás, é de se destacar o estranho casamento entre líderes religiosos e legisladores brasileiro, tanto em matéria de educação como em matéria de criminalização das condutas de ódio. Cita­-se aqui o exemplo do Padre Paulo Ricardo que denominava o arquivado PL 122/2006 (criminalização da homofobia) de “projeto de destruição da família”, gravando uma “aula” para explicar “sobre os perigos deste projeto”.

    Os rebentos nascidos do estranho enlace é o surgimento, nos últimos tempos, de pautas nas várias casas legislativas do país com projetos de lei, estaduais e municipais, cujo intuito é proibir o que o se apelidou de “ideologia de gênero”, quando no campo teórico e acadêmico se chama de estudos da “teoria de gênero”. Tais projetos, alguns em tramitação e outros já aprovados, em lugar de romper com a cultura do ódio, criminalizam a conduta de professores que porventura proponham debates ou distribuam materiais tratando da dita “ideologia de gênero”. Em Campo Grande (MS), desde abril de 2016 já é lei municipal a iniciativa do vereador Paulo Siufi (PMDB), que declarou: “o projeto recebeu crítica de pessoas ligadas ao movimento LGBT. As pessoas que respeitam a família deram apoio”.

    No âmbito nacional, destaca-­se o PL 2731/2015, do deputado federal Eros Biondini (PROS/­MG), cantor de música gospel e autodeclarado cristão da renovação carismática, que propõe a alteração do Plano Nacional de Educação para que se torne expressa a vedação à discussão de gênero dentro das escolas. Se aprovado o projeto, o professor que infringir tal rega cometerá crime de constrangimento nos termos do art. 232 do ECA.

    A pauta legislativa em trâmite revela o fosso abissal entre o discurso de inexistência da cultura de ódio e a prática que mata pessoas por conta de orientação sexual e identidade de gênero. Se nos EUA um massacre de meia centena de pessoas tenta ser maquiado pelo discurso de terrorismo muçulmano, não há justificativa para os números brasileiros, onde, segundo o Transgender Europe’s Trans Murder Monitoring Project, referidos pela advogada Juliana Cesar, uma pessoa trans é morta a cada 21 horas.

    E, com pesar, enquanto estas linhas eram redigidas, a população de Santaluz, no sertão baiano, ia as ruas para protestar contra a violência homofóbica que carbonizou dois professores gays, engrossando as lamentáveis estatísticas nacionais.

    O Brasil responde por mais de 40% dos assassinatos trans do mundo e é a naturalização desse discurso de ódio e o não enfrentamento da questão em nossas instituições que estimula a prática desses crimes.

    Mas, para além das violências reveladas, as veladas. Em todos os ambientes, públicos e privados, de trabalho ou em família, todos os dias somos rotulados por motivos de identidade de gênero e de orientação sexual. Os rótulos são as insígnias que nos estigmatizam, tornando-­nos alvos de todo tipo de agressão, que vão desde a mais “inocente” piada ao mais perverso assédio.

    Mas nossa luta não finda com a morte. O ódio que matou meia centena no dia 12 de junho de 2016 e nos mata a cada dia nos últimos séculos[1] não encontrará nossa trégua e renovará nosso afeto para combatermos o bom combate, desmascarando os que tentam naturalizar o ódio pela fé, utilizando­se das casas legislativas como extensões de seus Templos.

    E para os que pensam na família cristã, destaque­-se que Cristo foi um líder religioso que não disseminou práticas de ódio e de vingança. Os registros históricos de suas pregações revelam alguém que conquistou seus seguidores pelo discurso do amor e da aliança.

    Assim, sigamos unidas e unidos, em luta, pelo fim dos rótulos que nos estigmatizam e em defesa da diversidade que nos representa enquanto pessoas, até que vençamos o ódio e outros dias 12 de junho de 2016 não se repitam nunca mais.

    Renata Nóbrega é Juíza do Trabalho no TRT 6ª Região, Mestranda em História Social pela UFRPE e membra da Associação Juízes para a Democracia.
    [1] A involução ora vivida remete às ordenações portuguesas que regiam o Brasil Colônia e consideravam a homossexualidade, masculina e feminina, um “pecado nefando” passível de pena de morte por incineração: “Visto como um dos principais desvios morais a ser perseguido, o “pecado nefando” foi criminalizado pelas Ordenações Afonsinas (1476­1477), Manuelinas (1514­1521) e Filipinas (1603). Devido à intensa perniciosidade atribuída a esta prática, a Lei geral mandava que quem a cometesse fosse queimado e “feito por fogo em pó, por tal que já nunca de seu corpo, e sepultura possa ser ouvida memória”. Nas Ordenações Manuelinas, a regra valia também para a homossexualidade feminina, que a partir de então configurou­-se como um crime julgado pelas ordenações régias. As Ordenações Filipinas (1603) confirmaram a pena capital aos homossexuais – também incluindo as mulheres – mantiveram o confisco de bens e a infâmia de seus descendentes. Até mesmo as carícias tornaram­se alvo de censura e passíveis de punições graves, dependendo da contumácia e pertinácia do indivíduo. A tortura, um procedimento judiciário comum nos códigos legislativos europeus, foi introduzida no título referente à homossexualidade: sempre que houvesseculpados ou indícios de culpa, o acusado era torturado para que revelasse os parceiros e quaisquer outras pessoas envolvidas naquela devassidão” (GOMES, 2015, acessível em: http://www.revistadehistoria.com.br/seção/capa/as­leis­da­intolerancia).
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