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20 de Junho de 2024
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    25 segundos e 25 anos: cárcere e abolição

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    É impossível saber quantos são. Num apertado espaço de aproximadamente 5m x 2m, jazem pernas, braços, torsos desmembrados. A indicar que o local onde se encontravam os corpos não fora o mesmo das mortes, havia, no assoalho imundo, menos sangue do que se esperaria. Pequenas embalagens de isopor, popularmente conhecidas como “quentinhas”, jazem num canto, amontoadas. Restos de comida espalhados aqui e acolá. Close em um dos corpos: no tórax eviscerado, alguém forçou uma mão e uma perna.

    Corte rápido: numa calçada, estão enfileiradas seis cabeças decepadas, diante do que parece ser um escancarado portão gradeado. Apesar da sujeira generalizada, se identifica com facilidade o caminho percorrido por quem quer as tenha organizado: o gotejamento de sangue no piso indica uma rota inequívoca. O zumbido implacável das moscas segue num crescendo até fim abrupto do pequeno filme.

    Em 25 segundos, temos um quadro perfeito do resultado das Rebeliões Prisionais de Janeiro – até agora. A primeira delas se deu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Amazonas, no primeiro dia deste ano, e vitimou 56 detentos; a segunda, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, ocorreu seis dias depois e deixou 31 mortos.

    Surge assim, em menos de meio minuto, e em toda sua esplendorosa barbárie, a devassidão abjeta do Sistema Penitenciário Brasileiro. Sistema este que não pode ser compreendido, aliás, fora do seu adequado contexto: o cárcere integra aquilo que se convencionou chamar de Sistema de Justiça Criminal. Assim como não pode haver pena sem prévia cominação legal, não há presidiário sem prévia decisão judicial que ali o tenha colocado: seja ela Sentença Condenatória transitada ou não, seja ela decisão cautelar de prisão provisória.

    A explosão de violência dá visibilidade a um sistema falido, fracassado, obsoleto. A bem da verdade, estamos a falar de um sistema estrutural e inerentemente violento, caro e inadministrável. E que surge nas manchetes – e no debate público – apenas quando o sangue transborda.

    Haverá quem sustente o contrário? Que o sistema assegura, adequadamente, “o respeito à integridade física e moral” dos detidos (Art. , XLXIX da Constituição). Que a execução penal, tal como se encontra, efetivamente proporciona “condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (Artigo , caput, da Lei nº 7.210/84). Que é minimamente aceitável, a partir do texto constitucional e das obrigações assumidas internacionalmente pelo país, convivermos com um regime que desrespeita, de maneira sistemática e maciça, a dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias fundamentais de larga parcela de indivíduos? Que a manutenção deste status quo não dependa, largamente, da omissão reiterada, persistente e clara das autoridades constituídas?

    Anote-se, apesar de evidente, que boa parte do que estamos a dizer é mera repetição do decidido pelo Supremo Tribunal Federal em assentada de 09/09/2015, na famosa ADPF 347/DF, onde se declarou o “Estado de Coisas Inconstitucional” do Sistema Carcerário Nacional.

    Trata-se de um Sistema, em síntese, sem qualquer sustentação jurídica possível. Apenas a inércia parece mantê-lo.

    Se é verdade que uma sociedade pode ser medida de acordo com o tratamento que dá aos seus marginais – aqui entendidos não apenas como aqueles que violam a Lei, mas também como aqueles que se encontram à margem de um determinado modo de vida – andamos mal.

    O Sistema, além de não cumprir suas funções declaradas e oficiais – a ressocialização e a prevenção, seja geral, seja específica –, não tem cumprido sequer suas funções simbólicas. Dentre tais funções, destaca-se a de tornar e manter invisível determinada parcela da sociedade. O cárcere brasileiro, tal como foi pensado e gerido, sempre cumpriu esta missão de fazer “desaparecer”, cobrindo com um manto de invisibilidade determinados grupos de indivíduos, selecionados de maneira deliberada – deliberada, ainda que não explicita –, e por meio do uso de “técnicas” pretensamente neutras. À toda evidência, podemos afirmar que a prisão falhou até mesmo nesta missão.

    Admitamos por hipótese determinada pessoa que, voltando ao país depois de uma longa ausência de 25 anos, decida comparar as manchetes de jornal dos anos 90 com as atuais: verá nelas tópicos muito semelhantes. Impeachment. Crise Econômica. Rebelião Sangrenta no Cárcere. Não pareceria ter havido grande evolução – na verdade, evolução alguma.

    Não por coincidência, as Rebeliões de Janeiro ocorrem algum tempo após decisão judicial do TJ/SP que, conforme amplamente noticiado pela imprensa, reabriu o debate sobre responsabilização pessoal dos agentes públicos envolvidos no episódio Carandiru. Relembre-se: o fato se deu há um quarto de século. Trata-se de algo muito significativo, principalmente quanto notamos que este mesmo episódio foi o pivô e a justificativa para a criação de uma das maiores organizações já vistas no ambiente prisional: o Primeiro Comando da Capital, cuja luta por poder está no centro do recente banho de sangue no norte do País.

    Diante desta crise, que como vimos nada tem de nova nem de inédita, as autoridades constituídas tiram do bolso clichês, lugares comuns, argumentos carcomidos. As ideias vergastadas e já espancadas pela experiência empírica, rejeitadas pela Academia e francamente absurdas surgem como soluções definitivas. Mais vagas em penitenciárias. Mais presídios. Mais verbas. Ou seja: mais Sistema. Como se a expansão e o incremento do Sistema não fosse apenas colaborar para tornar o problema ainda maior.

    A estupidez desta abordagem não pode ser demasiadamente criticada. Nós, enquanto sociedade – e especialmente aqueles dentre nós com alguma noção da estrutura da ordem jurídica e do funcionamento do Sistema Penitenciário – não podemos aceitar tal disparate calados.

    Soluções reais não são fáceis nem simples. E, nem de longe, populares. O debate sobre as condições do cárcere passa pela análise de nossa própria sociedade – cuja desigualdade, principalmente econômica (mas não unicamente) talvez não tenha comparações no mundo –; passa pelo necessário debate sobre a descriminalização das drogas; pela discussão premente sobre a redução do direito penal; e talvez até por um diálogo honesto sobre a obsolescência do cárcere enquanto instituição punitiva.

    Em tempos de Lava Jato e obsessão midiática generalizada pelo Direito Penal, sustentar tais teses é realmente pregar no deserto. Não importa: o fato é que não precisamos nem de um Direito Penal e nem de um cárcere melhores; precisamos é de algo melhor que o Direito Penal e o cárcere.

    É tola a esperança daqueles que depositam na Pena a potencialidade de encerramento da corrupção, de reforma da vida pública, do fim do sentimento de insegurança. Ora, o Direito Penal e o cárcere não conseguem sequer solucionar seus próprios problemas. Como poderiam solucionar os do Brasil?

    A extrema situação brasileira não faz do nosso cárcere extraordinário e diferente dos demais: ao contrário, ela apenas torna mais evidente aquilo que a prisão realmente é: uma instituição violenta, perversa, inútil.

    Pena é punição e dor; é terror e medo: na melhor das hipóteses, um mal necessário imposto a um mal anterior cometido, na expectativa de se evitar sua repetição. Todavia, o terror e a dor são, notoriamente, parcos promotores de qualquer virtude e moralidade.

    Nossa convicção é a de que a prisão, enquanto instituição, assemelha-se à escravidão. Tanto uma quanto outra foram consideradas “naturais”, imprescindíveis à manutenção da ordem econômica e da sociedade. Quem as defende sustenta que essa massa de homens – detentos ou escravos –, uma vez liberada, traria abaixo os fundamentos da vida civilizada. Esses argumentos já se demonstraram falsos outrora. Humanizar o cárcere talvez seja tão impossível e sem sentido quanto humanizar a escravidão.

    Crises como a presente vem e vão: irão se repetir, isso é certo. Porém, podem e devem ser aproveitadas como oportunidades para um debate amplo e profundo. Debate que já passa da hora. É necessário enfrentarmos a questão, e ponderarmos sobre a possibilidade desta “segunda Abolição”. Talvez, daqui a 25 anos, estes 25 segundos já tenham se encerrado, integrando definitivamente, como as senzalas, os grilhões e os navios negreiros, as páginas do passado.

    André Luiz Figueira Cardoso é advogado criminalista, Consultor Jurídico da Rádio Justiça e ex-membro da Comissão de Ciências Criminais e Segurança Pública da OAB/DF.

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