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16 de Junho de 2024
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    A cultura do mérito é possível?

    Publicado por Justificando
    há 9 anos

    O processo civil brasileiro viveu uma crise de identidade nas últimas décadas. Nas academias diziam e repetiam frases de elevado conteúdo dogmático, p. ex., processo é meio de realização do direito material ou processo não é um fim em si mesmo. Enquanto isso, nos Tribunais avolumavam-se decisões a representar justamente o contrário. Temas jurídicos envolvendo as mais intrigantes questões de direito material deixavam de ser analisados porque um carimbo estava ilegível ou faltava aquela cópia considerada fundamental pelo julgador, mas não expressamente exigida na lei. Tal como religiosos, propagávamos o dogma mesmo diante da realidade a desmenti-lo.

    Sendo um pouco mais franco comigo e com meu leitor, essa crise de identidade não era do processo civil, mas sim do processualista. Se fôssemos mais honestos como o Professor Arruda Alvim reconheceríamos que “a elaboração legislativa, as cogitações puramente acadêmicas, os livros de doutrina, os livros de comentários de leis, o ensino da disciplina, tudo, em suma, dirige-se ao processo como meio, quem diz a última palavra sobre tudo são os tribunais” (Manual de Direito Processual Civil, v. 1: parte geral, 7.ª ed. rev. atual. e ampl., São Paulo: RT, 2000, p. 156). Seríamos realistas lecionando que o processo civil é um fim em si mesmo cada vez que uma lide deixa de ser examinada por culpa de jurisprudência defensiva, essa desculpa pseudotécnica encontrada pelos Tribunais Superiores para comodamente promoverem a melhor operacionalidade de funcionamento daquelas Cortes engendrando todas as fórmulas possíveis para dificultar-lhes o acesso, mesmo que isso possa significar arbitrariedade judicial. Faltou-nos franqueza para assumir a deturpação da ciência que decidimos estudar com tanto afinco, o que ensinávamos era ignorado dia após dia por todas as Cortes brasileiras. Talvez tivéssemos fé de a repetição da oração operar milagres.

    Agora vem o legislador – tal como um profeta – e, com seis ou sete dispositivos do novo Código de Processo Civil (“nCPC”), torna lei posta as máximas outrora acadêmicas. Pouparei o tempo de quem não quer aqui ler todos os mandamentos (apesar de recomendar o estudo detido dos arts. 10, 76, 932, parágrafo único, e 1007, §§ 4.º e 7.º e 1.025), mas faço questão de transcrever o art. 6.º do nCPC:

    “Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”

    Apesar de a claridade das luzes da doutrina focar o artigo preferencialmente através do dever de cooperação, por alguns já galgado a princípio informativo do processo, é o direito à decisão de mérito, justa e efetiva, que me levou a escrever essas linhas. Peguei-me refletindo na utilidade e alcance do comando em questão, ponderando que se o nCPC trouxesse a cultura do mérito para o processo civil brasileiro, muito já seria feito. Foi quando descobri que a própria Teresa Arruda Alvim Wambier espera exatamente isso do nCPC, não apenas na fase conhecimento, como, sobretudo, nos recursos (O que se espera do Novo CPC? In Revista do Advogado n.º 126, ano XXXV, AASP: São Paulo, maio 2015, pp. 198-203).

    Esperançoso eu pergunto: a cultura do mérito é possível? A profecia operará o milagre prometido? A resposta cabe ao tempo. Porém algumas reflexões já são possíveis.

    A magistratura terá mais trabalho, sobretudo nos tribunais. Resolver sem exame de mérito é muito mais simples, basta uma passada de olhos nas centenas, quiçá milhares de decisões idênticas preparadas pela assessoria do gabinete. Muitas vezes é facultativo até ler os argumentos das partes, p. ex., quando se acha um protocolo borrado ou uma certidão de publicação ilegível. O hábito precisará ser superado, convertendo os formalistas repetidores de modelos em percucientes críticos dos argumentos das partes. Algo a tomar tempo e exigir paciência de todos nós.

    A advocacia, pública ou privada, precisará parar de gastar páginas de arrazoados em preliminares e enfrentar a lide, suas provas e o direito aplicado, diretamente, sem rodeios ou os famigerados exercícios de recorta e cola de doutrina e jurisprudência, tudo sem a fundamental preocupação em concatenar cada citação com o contexto da causa. Precisaremos citar e aplicar mais a legislação material que a instrumental. Vibrar menos quando ganharmos uma causa perdida através do lapso processual cometido pela parte contrária, identificando aí uma anomalia. Fundamental compreender a importância da estabilidade da jurisprudência, respeitando a posição sumulada ou decidida repetidamente.

    Resultado: todos trabalharemos mais. O comodismo coletivo identificado por Piero Calamandrei na lição abaixo precisa ser extirpado o cotidiano forense a partir da vigência do nCPC:

    “...o juiz desatento e preguiçoso induz o advogado à superficialidade e até mesmo ao mau vezo processual. Quantas exceções de incompetência, requerimento de provas testemunhas desnecessárias os advogados estariam dispostos a negligenciar, se a experiência lhe houvesse demostrado que, com o simples fim de não estudar profundamente o mérito da causa, certos juízes estão dispostos a acolher de olhos fechados qualquer exceção ou a aceitar de bom grado o meio instrutório que, para ser admitido, requer apenas o leve trabalho de um despacho de quatro linhas.

    Também os juízes, que são homens, tendem a seguir em seu trabalho a via minoris resitentiae; e o advogado experiente, para cultivar essa convidativa tendência à inércia mental, costuma semear suas defesas de vieses que estimulam o juiz a não se dirigir a via mestra.”

    (Elogio dei Giudici Scritto da un Avvocato, tradução Eduardo Brandão, Martins Fontes, São Paulo: 2000, pp. 55, 56)

    Advogar e julgar através do processo são preguiçosos pecados, indolente e vergonhoso meios de vida. Faz quem não tinha direito passar a ter. Cria injustiças, nutre fundada desconfiança do Poder Judiciário. É imperativo pararmos de viver assim e criticarmos, em alta voz, quem o faz. Uma reforma íntima intelectual precisa romper a barreira da academia e invadir os fóruns.

    Nessa reforma íntima que cada um de nós precisará passar, uma verdade é incontestável: sem cooperação entre os protagonistas da jurisdição o nCPC dificilmente alcançará seus objetivos. Mas tenho fé. Não no milagre ou na profecia, mas na boa vontade de todos que vivem o ambiente forense. Queremos uma vida melhor, para as partes, para nós, para o país. Quando identificarmos no nCPC a chance dessa melhoria, a boa vontade aparecerá. Parafraseando a operosa Teresa Arruda Alvim Wambier: “só a lei não faz milagres. Quem faz milagres é Deus, com a boa vontade dos homens” (ob. cit., p. 203).

    E falando em milagres. Alguém já leu no art. 6.º do CPC o germe de se permitir recursos fundados apenas na injustiça do julgamento? Inclusive aos Tribunais Superiores (ofensa à lei federal)? Ter-se-ia materializado também o fim social da jurisdição? Melhor parar por aqui. O CPC não quer destruir a lei ou os profetas; mas para dar-lhes cumprimento. Mas tudo a seu tempo, tudo a seu tempo...

    André Gustavo Salvador Kauffman é Advogado em São Paulo e no Rio de Janeiro. Professor e autor de artigos jurídicos. Membro efetivo do IBDP. Sócio do K.A Advogados
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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/a-cultura-do-merito-e-possivel/229878517

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