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15 de Junho de 2024
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    A curva temerária do STF

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    No dia 9 de setembro de 2015, estive presente, a convite da Comissão de Constituição e Justiça, a uma audiência pública no Senado Federal. Discutia-se, na oportunidade, o PLS 402/2015, apresentado pelo senador Roberto Requião, a pedido da Associação dos Juízes Federais (Ajufe). O centro do projeto era um mal-disfarçado esvaziamento da presunção de inocência para viabilizar a prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatória.

    Disfarçado, porque o projeto previa efeito suspensivo aos recursos excepcionais, mas ao mesmo tempo fragilizava, com expressões dúbias, a cautelaridade exigida para manter ou decretar a prisão. Invertia, por exemplo, o ônus, exigindo que o réu provasse ao juízo que não pretendia fugir nem voltar a praticar outros crimes. Escolhia aleatoriamente tipos penais para essa nova fórmula e estendia a prisão após julgamento ao tribunal de júri, que de tribunal só tem mesmo o nome.

    Na ocasião, junto a outros colegas, criticamos a pretensão inconstitucional do projeto, e ressaltamos o HC 84078, pelo qual o Plenário do STF, em 2009, concluíra pela inconstitucionalidade da execução antecipada da pena, limitando a prisão ao trânsito em julgado da condenação ou à existência de requisitos da preventiva.

    A audiência pública foi intensamente acompanhada pelos senadores e pela imprensa, em razão da presença do juiz Sérgio Moro, que defendia ardorosamente o projeto, alegando necessidade de tapar brechas legais e dar efetividade ao processo penal para estancar o que chamava de impunidade.

    Além dos vários equívocos lógicos no projeto, apontados por todos os seus críticos, entre os quais havia juízes, advogados, defensores e membros do Ministério Público, levantou-se a questão pragmática prejudicial: se o STF mantivesse sua jurisprudência, o projeto seria tido por inconstitucional; se o STF alterasse seu entendimento, o projeto seria, então, desnecessário.

    A resposta dos juízes federais proponentes pressupunha que o STF estava no caminho para mudar sua jurisprudência sobre o tema e a discussão e aprovação daquele projeto contribuiria para essa alteração. Lembro-me que, na época, reagi com certa incredulidade ao argumento, mas hoje constato a dose exagerada de otimismo.

    Dizíamos que o STF não havia apenas mudado a orientação anterior que durara duas décadas, como, enfim, se adequara à leitura constitucional, provocando com isso até a alteração de leis, de que é testemunha a redação atual do art. 283, do CPP (em vigor, embora ignorado). Estas mudanças de interpretação, como outras que o STF havia feito na mesma época, trouxeram o direito e o processo penal mais próximos de um patamar constitucional. Era, de certa forma, improvável, que o tribunal fizesse o caminho contrário a essa altura da evolução doutrinária e jurisprudencial, desconstitucionalizando-os.

    Mas eu estava solenemente enganado.

    Meses depois, o Supremo efetivamente alterou seu entendimento, dando um verdadeiro cavalo de pau hermenêutico, fulminado pela crítica, mas, como já se imaginava, com amplo sucesso de público. Em resumo, alterou o que nem o Congresso podia fazer, diante da cláusula pétrea, esvaziando um princípio, a presunção de inocência, cuja proteção lhe fora confiada pela Constituição cidadã.

    No dia da audiência no Senado, confesso que não entendi bem porque a alteração convinha tanto aos condutores da chamada Lava Jato, já que as dezenas de prisões decretadas pelo próprio Sérgio Moro, sem prolação de qualquer sentença, desdiziam a necessidade de mudança da lei para permitir a custódia antes do trânsito em julgado.

    Mas o que meu tirocínio não percebeu a tempo, as palavras já não tão ocultas de Romero Jucá puderam explicar melhor.

    A alteração da jurisprudência do STF intimidava os réus que estavam sendo condenados na Lava Jato e que poderiam ser presos mais rapidamente. Mais delações à vista, portanto. O medo da operação, como se soube, detonou um pacto de políticos envolvidos para conter a sangria, no qual a deposição da presidenta foi a peça de resistência.

    O STF até representou um importante papel na primeira década do século 21, como a Corte criminal que mais respeitou a visão garantista da Constituição. Discutiu a necessidade da presença da defesa pessoal no processo, vetando audiências por videoconferência; assentou a possibilidade de liberdade provisória nos casos de tráfico de entorpecentes; revogou a proibição de progressão de regime da Lei dos Crimes Hediondos, entre outras importantes decisões que culminaram com a proibição da execução antecipada da pena.

    Infelizmente, esse momento garantista se foi.

    O primeiro a percebê-lo, ou denunciá-lo, foi o então recém-indicado Luis Roberto Barroso que, em sua sabatina, chamou a rígida decisão do caso Mensalão como um ponto fora da curva da jurisprudência do tribunal.

    Soube-se, mais tarde, que Barroso havia sido demasiadamente tímido na sua avaliação: o caso Mensalão foi, na verdade, o início da curva. A partir dela, e, aliás, com a sua própria adesão, uma jurisprudência rigorosa vem sendo cuidadosamente forjada. As decisões garantistas ficaram mais espaçadas. Nota-se a prevalência da política sobre os princípios e do poder de cautela sobre as liberdades.

    O resultado é drástico, por dois importantes motivos.

    Se as decisões criminais políticas tiveram força suficiente para inverter a jurisprudência recente do STF, é sinal de que o primeiro fundamento do sistema penal do Estado democrático de direito se rompeu: a função contramajoritária do juiz.

    Quando o julgador não consegue impor-se sobre as demandas políticas de criminalização, na prática está se demitindo da função garantidora que a Constituição lhe reservou. Função essa que deve cumprir mesmo à custa de contrariar o senso comum, a opinião pública ou a decisão político-partidária da maioria. O que foi claramente sentido no processo do impeachment, em que a Corte abriu mão de analisar a tipicidade do crime de responsabilidade, sob a alegação de tratar-se de ato político.

    A segunda consideração, ainda mais temerária, é a de que o STF demorou cerca de uma década e meia para ingressar no espírito garantista da Constituição de 1988, amadurecendo conceitos que superaram jurisprudências consolidadas na ordem anterior. Mas está sendo muito mais rápido o período de depuração, já se amoldando a nova ordem, que conta com o tribunal para a desconstrução do modelo democrático.

    Quando nos próximos anos o STF tiver de decidir sobre redução da maioridade penal e cláusula pétrea ou acerca de nova lei que volte a amputar a progressão em crimes graves, como propôs o ministro da Justiça, quem aposta que ainda encontraremos no tribunal as garantias que a Constituição lhe reservou?

    Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.
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