A primazia do julgamento do mérito e o efetivo acesso à justiça
Nos estados liberais “burgueses” o direito à proteção judicial significava essencialmente o direito formal ao indivíduo de propor ou contestar uma ação. O Estado permanecia passivo. Afastar a “pobreza em sentido legal” não era sua preocupação. A justiça só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade formal, mas não efetiva. [1]
À medida que as sociedades cresceram em tamanho e complexidade, o conceito de direitos humanos começou a sofrer transformação radical. As ações e relacionamentos assumiram caráter mais coletivo que individual. Passou-se a reconhecer direitos e deveres dos governos, das comunidades, associações e indivíduos. A atuação do Estado passou a ser positiva, necessária para assegurar o gozo dos direitos sociais básicos. [2]
Nesta fase, o acesso à justiça ganhou especial atenção, eis que se procurou armar os indivíduos com novos direitos substantivos e com mecanismos para sua efetiva reivindicação. [3]
Hoje, mais do que garantia de novos direitos substantivos e mecanismos de reivindicação, o acesso à justiça significa obtenção da justiça substancial. Não obtém a justiça substancial quem não consegue o exame de suas pretensões pelo Judiciário, quem as recebe atrasadas ou mal formuladas ou quem recebe solução que não lhe melhore efetivamente a vida em relação ao bem pretendido. [4]
Assim, o acesso à justiça não se limita à mera admissão ao processo ou à possibilidade de ingresso em juízo. Pelo contrário, ele deve ser interpretado de forma extensiva, compreendendo a noção ampla do acesso à ordem jurídica justa, que abrange: “i) O ingresso em juízo; ii) observância das garantias compreendidas na cláusula do devido processo legal; iii) a participação dialética na formação do convencimento ao juiz, que irá julgar a causa (efetividade do contraditório); iv) a adequada e tempestiva análise pelo juiz, natural e imparcial, das questões discutidas no processo (decisão justa e motivada); v) a construção de técnicas processuais adequadas à tutela dos direitos materiais (instrumentalidade do processo e efetividade dos direitos)”. [5]
O Ministro Marco Aurélio, em seu voto no Recurso Extraordinário nº 158655-9/PA [6], muito bem registrou que garantia de acesso à justiça tem alcance maior do que o simples recebimento, no setor de protocolo, de petição inicial; encerra, também, e nisso mostra-se harmônica com as noções do devido processo legal, a tramitação regular, atuando o Estado-juiz nos moldes previstos legislação instrumental.
A simples garantia formal de acesso à justiça não se mostra suficiente. A prestação jurisdicional deve ser rápida, efetiva, adequada, velando pela primazia do julgamento de mérito e o máximo aproveitamento da atividade processual.
O artigo 4º, do Novo Código de Processo Civil [7], estabelece como norma fundamental que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.
Do referido artigo extraem-se o princípio da primazia do julgamento do mérito e o da duração razoável do processo.
Quanto à duração razoável do processo, muito bem destacam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino que, no Brasil, a morosidade dos processos judiciais e a baixa efetividade de suas decisões, dentre outros males, retardam o desenvolvimento nacional, desestimulam investimentos, propiciam a inadimplência, geram impunidade e prejudicam a crença dos cidadãos no regime democrático. [8]
No que se refere ao princípio da primazia do julgamento de mérito, frise-se: é direito das partes a “solução integral do mérito”.
Ensina Leonardo Carneiro Cunha que, sempre que possível, o juiz deve superar os vícios, estimulando, viabilizando e permitindo sua correção ou sanação, a fim de que possa efetivamente examinar o mérito e resolver o conflito posto pelas partes. Prossegue defendendo que o princípio da primazia do exame do mérito abrange a instrumentalidade das formas, estimulando a correção ou sanação de vícios, bem como o aproveitamento dos atos processuais, com a colaboração mútua das partes e do juiz para que se viabilize a apreciação do mérito. [9]
Os óbices processuais somente podem ser invocados nas hipóteses em que seu acolhimento se faz necessário para a proteção de direitos fundamentais da parte, como o devido processo legal, a paridade de armas ou a ampla defesa. [10]
A renomada Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial nº 963.977 [11] – RS, muito bem destacou que o Direito Processual deve viabilizar, sempre que possível, a resolução de mérito e não pode ser utilizado como elemento surpresa, a cercear injustamente uma solução de mérito, prestando um enorme desserviço ao Estado Democrático de Direito.
Tais premissas têm sua aplicabilidade fundamentada no princípio da cooperação [12], dentro do qual se destaca o dever de prevenção do juiz, a fim de prevenir vícios e defeitos para possibilitar o julgamento do mérito.
Dessa forma, conclui-se que a primazia é a do julgamento do mérito. A extinção do processo sem resolução do mérito deve ser encarada como uma “manifestação de crise do processo” [13], somente admitida após, com base na instrumentalidade das formas e no dever do cooperação, tentar-se extrair o máximo aproveitamento da atividade processual, visando garantir o efetivo acesso à justiça.
Isabela Dechiche Libâneo de Souza Sorvos é Pós graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio; Pós graduada em Direito do Consumidor pela Faculdade Damásio; Pós Graduada em Direito Público pela UNIDERP; Pós graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Damásio. Defensora Pública Estadual em Imperatriz, Maranhão.
[1] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 9.
[2] Idem, p. 10-11
[3] Ibidem, p. 11-12.
[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. 1. 5ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 133-134.
[5] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panótica, ano 1, nº 6. Disponível em http://www.panoptica.org/seer/index.php/op/article/view/59. (Acesso em: 23 fev. 2016).
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 158655, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, Segunda Turma. DF, 20 de agosto de 1996.
[8] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Novo Código de Processo Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. (Acesso em: 27 fev. 2016).
[9] CUNHA, Leonardo Carneiro. Opinião 49 – Princípio da primazia do julgamento do mérito. Disponível em http://www.leonardocarneirodacunha.com.br/opiniao/opiniao-49-principio-da-primazia-do-julgamento-do-merito/. (Acesso em: 27 fev. 2016).
[10] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 746.524/SC, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA. DF, 16 de março de 2009.
[11] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 963.977/RS, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA. DF, 26 de agosto de 2008.
[12] Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
[13] DIDIER JUNIOR, Fredier. Editorial 53. Disponível em http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-53/. (Acesso em: 27 fev. 2016).
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