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28 de Maio de 2024
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    Ainda nos perguntam Os Donos do Poder: "Você sabe com quem está falando?"

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    “Você sabe com quem está falando?"

    A arrogância da pergunta - título desse texto, mais do que uma recorrência cotidiana ainda muito atual, tornou-se uma categoria clássica da análise antropológica pelo olhar de Roberto da Matta, que em seu livro “Carnavais, malandros e herois” dedica-se longamente à análise da expressão, na tentativa de compreender uma certa mentalidade tipicamente brasileira, que sustenta o hábito de colocar-se em uma posição de superioridade perante o próximo, posição esta que assegura toda sorte de privilégios ao mesmo tempo em que alija o outro de direitos (já falei nesta coluna o quanto esse apego a privilégios e estranhamento a direitos nos caracteriza).

    A nossa habitualidade a esse tipo de indagação certamente guarda relação com nossos muitos regimes autoritários. Na coluna de hoje, dando continuidade à série “A herança legal das ditaduras: nossas cicatrizes jurídicas”, iniciamos a análise das leis produzidas durante a ditadura militar que ainda se encontram em vigor. Não obstante algumas das normas jurídicas editadas no período tenham sido expressamente revogadas (caso do Código de Menores de 1979, revogado pelo ECA em 1990), declaradas expressamente inconstitucionais (como a Lei de Imprensa [1]) ou simplesmente não recepcionadas pela Constituição de 1988 pela absoluta incompatibilidade de sua gênese em um Estado de exceção com uma nova ordem democrática (como os Atos Institucionais), várias outras continuam a produzir efeitos, apesar de seus resquícios autoritários.

    Começaremos nosso percurso pelo período da ditadura militar pela Lei de Abuso de Autoridade (4898/1965), tema que, aliás, voltou à discussão nos últimos dias por conta da insistência do senador Renan Calheiros em votar em medida de urgência um dos muitos projetos de lei que propõem alterar o texto de 1965.

    Mas chegaremos às vontades de Renan logo mais. Por ora, voltemos ao ano de 1964 e examinemos brevemente o contexto histórico, social e político do início do período de mais grave retrocesso e supressão de direitos civis da História brasileira.

    Esse ápice de autoritarismo não se deu de forma repentina. É preciso lembrar que em 1961 o presidente Jânio Quadros havia renunciado após apenas sete meses de mandato, catalisando um processo de muita instabilidade política e turbulência que culminará com a deposição de seu vice João Goulart em 1º de abril de 1964 (embora a narrativa dos auto-intitulados “revolucionários” prefira marcar seu termo inicial nas últimas horas da noite da véspera, 31 de março, pois, sabe-se lá se tomar o poder no Dia da Mentira poderia tirar-lhes a credibilidade), ato que ficaria posteriormente conhecido como Golpe Militar de 1964.

    Entre os estudiosos da História Política brasileira recente, não há consenso sobre os fatores preponderantes que possibilitaram o golpe - se a crise econômica, se o apoio da sociedade civil conservadora e dos setores empresariais, ou ainda o contexto global da Guerra Fria e uma certa “simpatia”, digamos, do governo norte-americano para com o alinhamento à extrema-direita no Cone Sul da América Latina [2]. Porém, é consenso que esse período ficou marcado por graves violações de direitos humanos, reconhecidas inclusive no plano internacional [3], e pela supressão paulatina de direitos civis, disfarçada por uma aparência de legalidade assegurada pelo funcionamento formal do Congresso Nacional - diferentemente do que fizera Vargas, que fechara o Congresso e passara a legislar por Decreto-Lei (falei sobre isso nas colunas sobre o Código Penal e o Código de Processo Penal), os novos ditadores pareciam ter aprendido que seria mais fácil manterem-se no poder cultivando um certo verniz institucional, o que já é perceptível no texto do Ato Institucional nº 1 de 09 de abril de 1964, o primeiro dos dezessete textos elaborados pelos comandantes das Forças Armadas durante os 21 anos da ditadura militar. O 1º Ato Institucional dos militares assegura em seu artigo que será mantida a Constituição de 1946 - "ufa, sem susto, ninguém está rasgando a Constituição”, talvez tenham pensado os incautos com certo alívio. Todavia, o preâmbulo dessa norma trazia o seguinte:

    (…)

    A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma.

    (…)

    A “justificativa"para dizer-se “autolegitimada por si mesma” residia nos objetivos da “revolução”: no Ato Institucional constavam "os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil”, bem como"cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas”. Assim como no golpe do Estado Novo de Vargas em 1937, a cantilena do combate ao comunismo continuava a fazer muito sucesso nas paradas do autoritarismo (e, vale dizer, parece não ter saído de moda: salvar a nação do perigo bolchevique continua a ser tendência para muito fashionista político querendo surfar na onda retrô).

    Ainda, “no interesse da paz e da honra nacional”, o artigo 10 do AI nº 1 afastava as limitações constitucionais e permitia aos comandantes-em-chefe a cassação e a suspensão dos direitos políticos de seus opositores por até 10 anos, vedando a possibilidade de reexame judicial da decisão, medida que se mostrou bastante eficaz para controlar um Congresso que, embora mantido aberto, poderia ver retirados da cena política quaisquer de seus membros que não colaborassem com o regime.

    Em 27 de outubro de 1965, é editado o Ato Institucional nº 2, que, além de continuar a ampliar os poderes dos presidentes ditatoriais, extingue os partidos políticos e estabelece prazo em 31 de dezembro de 1966 para realização de novas eleições. Neste ínterim é publicado o texto legal tema da coluna de hoje, a Lei 4898/65, destinada a regular"o Direito de Representação e o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade”.

    Não deixa de ser curioso pensar que, diferentemente das outras normas que comentamos até aqui (o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Contravencoes Penais), a Lei de Abuso de Autoridade tem como destinatários não os cidadãos comuns e suas liberdades civis, mas sim as autoridades que exacerbarem suas atribuições legais e, com isso, violarem direitos. Mas o que terá a nos revelar uma lei para conter abusos de autoridade editada bem no início de uma ditadura militar que se revelaria cada vez mais violenta?

    O projeto pretendia regular o direito de petição, previsto na Constituição de 1946 (bem como na de 1967 e na de 1988), consistente no direito individual fundamental de dirigir-se às autoridades para pleitear um direito violado. É de 1956, de autoria do deputado Olavo Bilac Pinto, filiado à UDN (União Democrática Nacional), de tendência conservadora [4], e que foi apoiador do golpe militar. Chama a atenção a justificação do projeto, que menciona “as violências policiais como as formas mais graves, e infelizmente mais generalizadas, sobretudo no interior do país”, prática que o legislador pretende combater por meio da responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes públicos, via um processo descrito como “célere"e que “privilegia a oralidade”, vedando “recursos protelatórios”.

    O texto somente é aprovado pelo Congresso já com o golpe militar em curso, em 09 de dezembro de 1965 (ou seja, quando já expedidos os AI 1 e 2, iniciando-se a progressiva limitação do Poder Legislativo pelo Poder Executivo ilegal). A julgar pelos desdobramentos históricos que se seguiram (e que serão comentados nos próximos textos), não é demais supor que a aprovação da lei tenha mais a intenção de reforçar a aparência artificial de legalidade perseguida pelo regime do que de realmente conter os abusos praticados pelas autoridades: é sabido que a mentalidade jurídica brasileira cultiva forte apego a normas penais com sanções severas como forma de manifestar seu repúdio a determinadas condutas. Sendo assim, o que pensar de uma lei que prevê penas que variam de 10 dias a 06 meses como sanção penal para autoridades que violem direitos de cidadãos?

    Mas não é só: a Lei de Abuso de Autoridade é construída em formato absolutamente estranho aos já vigentes Código Penal e de Processo Penal. Não há descrição precisa das condutas incriminadas - como seria exigido pelo princípio da legalidade - , mas apenas um rol de “atentados” a liberdades civis no artigo 3º, sem que se cominem penas mínima e máxima a cada uma delas (a detenção de 10 dias a 6 meses é genericamente prevista no § 3º do artigo 6º, que trata das sanções). Já no tocante aos aspectos processuais, a Lei 4898/65 denota seu típico caráter de legislação de período autoritário, com diversas restrições ao direito de defesa, em nome da celeridade necessária ao “combate à impunidade”.

    Todos os crimes previstos na Lei 4898/65 são de ação penal pública incondicionada e, no ordenamento jurídico atual, consistem em infração de menor potencial ofensivo. É raro encontrar sentenças condenatórias ou absolutórias sobre o tema, pois dado o curto tempo das penas, grande parte dos fatos imputados acaba atingida pela prescrição no prazo de 2 anos.

    O que temos, portanto, é uma lei que a um só tempo, restringe inconstitucionalmente garantias processuais dos acusados de abuso de autoridade (pois é evidente que o fato de serem autoridades acusadas da prática de crime não lhes retira o direito constitucional de ampla defesa), e que, evidentemente, não teve qualquer efeito - nem mesmo simbólico - quanto aos muitos abusos praticados por autoridades de toda sorte desde 1965. Basta mencionar os muitos crimes graves praticados ao longo da ditadura militar e a persistência dos altos índices de violência policial.

    Tanto é assim que não faltam projetos de lei para alterar a Lei 4898/1965. Um desses é o Projeto de Lei 6518/2009, do deputado Raul Jungmann, desengavetado pelo Senador Renan Calheiros para “apreciação em regime de urgência” semana passada. A proposta corrige muitas das falhas aqui apontadas em relação à Lei 4898/65: descreve adequadamente condutas e prevê penas específicas, determina os sujeitos ativos possíveis, passa a exigir representação do ofendido para a ação penal e deixa de prever as muitas restrições ao direito de defesa.

    Mas o curioso é que, mesmo em outras palavras, tenha persistido o argumento central da justificação do projeto:

    "É preciso acabar – de parte a parte – com a cultura do “você sabe com quem está falando?” Uma disciplina como a que consta do projeto não se assimila de uma hora para outra. Ao contrário. Veja-se: tão-só a sua premência já aponta para estágio ainda discreto de civilidade. É preciso mudar a cultura. Para tanto, nos primeiros passos, uma legislação de escopo pedagógico é imprescindível, ainda que – insista-se – a sua necessidade deponha menos a favor do grau de civilidade da sociedade do que se poderia desejar“.

    Ou seja: mais de meio século depois, o legislador de então reafirma a necessidade de combater a impunidade para que se reprimam os abusos de autoridade. Mas é impossível não lançar a provocação: será que a intenção do legislador Renan Calheiros, em sua apressada ação de desengavetar um projeto de 2009, é, de fato, resguardar os direitos do cidadão contra o abuso das autoridades? Mesmo para aqueles que acalentam a esperança de resolver os conflitos do mundo pelo Direito Penal, deve ser desafiador encontrar uma nesga que seja que primazia do interesse público da limitação das autoridades pretendida pelo Presidente do Senado no atual cenário político.

    Por enquanto (falamos com você, leitor do futuro, diretamente de julho de 2016), a votação de projeto com o mesmo texto está adiada. Mas, caso seja aprovada, é importante nos lembrarmos de quais foram as mobilizações políticas para que tramitasse e fosse discutido. Não me parece que o motivo real seja, de fato, uma preocupação com as liberdades civis, como não parece ter sido em 1965. Ainda nos perguntam se sabemos com quem estamos falando.

    Maíra Zapater é graduada em Direito pela PUC-SP e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e doutoranda em Direitos Humanos pela FADUSP. Professora e pesquisadora, é autora do blog deunatv.
    [1] A Lei de Imprensa foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na decisão da ADPF 130, em 2009. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=107402 [2] Deixo aqui as dicas de leitura para quem quiser se aprofundar na análise político-histórica do período: FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. (1993). Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964. São Paulo: Paz e Terra; STEPAN, Alfred (1975). Os militares na política. Rio de Janeiro: Artenova, e CARVALHO, José Murilo (2001). Cidadania no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira. [3] A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por violações de direitos humanos no “caso Gomes Lund”. A esse respeito, sugiro o artigo: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=95 [4] Vale aqui mencionar o levantamento da ONG Transparência Brasil que concluiu que 49% dos deputados federais eleitos em 2014 tinham pais, avôs, mães, primos, irmãos ou cônjuges com atuação política – o maior índice das quatro últimas eleições.Dinastias na Câmara: http://apublica.org/2016/02/truco-as-dinastias-da-câmara/#.V4Tw9oE4HZo.email Olavo Bilac Pinto Neto é deputado federal atualmente:http://www.câmara.leg.br/internet/deputado/dep_Detalhe.asp?id=5830796. Raymundo Faoro escreveu o livro “Os donos do poder”, clássico da História Política do Brasil, em que esmiuça a formação do estado patrimonalista brasileiro.
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