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16 de Junho de 2024
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    Na pós-democracia, até mesmo o cumprimento da lei é negociado

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    O questionamento, que é realizado por parcela da comunidade jurídica verdadeiramente vinculado ao Estado Constitucional, à chamada revista íntima – ou vexatória – em unidades prisionais não é novo. O respeito à integridade psicofísica, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, sempre foi um dos argumentos esgrimidos por quem censurou a comum prática realizada por agentes penitenciários. É certo que a desproporcionalidade da medida, ainda mais considerando a existência de tecnologia menos invasiva, constitui uma outra, e válida, forma de abordar a questão.

    O agachamento forçado de mulheres diante de servidores públicos, desnuda (va) ainda a falácia da intranscendência da pena. Sim, a condenação criminal, a partir desse vergonhoso expediente, se mostra capaz de sancionar, humilhar e estigmatizar parentes e pessoas próximas daquele que teve a responsabilidade penal declarada pelo Estado.

    No âmbito do estado do Rio de Janeiro, muito embora não versasse sobre a aplicação em ambientes prisionais e sim nos locais de trabalho, é possível verificar uma longeva insurgência jurídica e legal, tanto que, no já distante ano de 1997, foi sancionada a Lei Estadual nº 2.749, que proibia a realização de revistas íntimas, conforme expressa previsão contida em seu artigo 1º:

    Art. 1º. Fica proibida, em todos os estabelecimentos industriais, comerciais e de serviços com sede ou filiais no Estado do Rio de Janeiro, a prática de revistas íntimas nos funcionários.

    Parágrafo único – A revista de que trata o ‘caput’ deste artigo engloba, além do despimento coercitivo, todo e qualquer ato de molestamento físico que exponha o corpo de funcionários.”

    Em razão de provocação do Procurador-Geral da República, o que foi materializado na ADI nº 2.947/RJ, o STF entendeu que a lei estadual mencionada se encontrava em descompasso com o Texto Constitucional, já que teria ocorrido usurpação de competência legislativa privativa da União; logo, a Lei Estadual nº 2.749, de 23 de junho de 1997, foi declarada inconstitucional.

    Após o transcurso de alguns anos, e ainda contado com o repúdio de parcela da sociedade contra a revista íntima, deputados estaduais fluminenses, por meio do Projeto de Lei nº 77/2015, voltaram a debater o tema, sendo certo que, nesse caso, a questão se voltou exclusivamente para a proibição de degradante comportamento nas unidades prisionais.

    Ao apreciar a proposta legislativa aprovada, o Chefe do Executivo a vetou integralmente; todavia, a Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro – ALERJ derrubou o veto, o que gerou a Lei Estadual nº 7.010, de 25 de maio de 2015, que assim disciplinou o tema em comento:

    Art. 3º. Fica proibida, no âmbito das unidades prisionais do Estado do Rio de Janeiro, a revista íntima.

    Parágrafo único. Considera-se revista íntima toda e qualquer inspeção corporal que obrigue o visitante a despir-se parcial ou totalmente, efetuada visual ou manualmente, inclusive com auxílio de instrumentos.

    (…)

    Art. 5º. Após a visita, o preso poderá ser submetido, excepcionalmente à busca pessoal.

    A despeito de existirem representações de inconstitucionalidade que questionam a Lei Estadual nº 7.010/15 no TJRJ, até o presente momento, não há declaração de inconstitucionalidade, sendo certo que, em razão da presunção de constitucionalidade de que goza todo o ato legal, o seu cumprimento é a medida que se impõe.

    E mesmo que seja reconhecida a inconstitucionalidade do ato normativo estadual mencionado, com o advento da Lei Federal nº 13.271, de 15 de abril de 2016, seriam soterrados quaisquer questionamentos quanto à proibição de violentador comportamento imposto às visitantes de estabelecimentos prisionais por parte do Poder Público, pois assim foi disciplinada a proibição:

    “Art. 1o. As empresas privadas, os órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, ficam proibidos de adotar qualquer prática de revista íntima de suas funcionárias e de clientes do sexo feminino.”

    E que não se despreze o contido no artigo , Lei Federal nº 10.792/03:

    Art. 3º. Os estabelecimentos penitenciários disporão de aparelho detector de metais, aos quais devem se submeter todos que queiram ter acesso ao referido estabelecimento, ainda que exerçam qualquer cargo ou função pública.”

    Afirma-se, assim, que qualquer pessoa, incluindo, portanto, as visitantes de presos, que adentre em unidade prisional somente poderá ser revistada por detector de metais, não sendo mais possível a realização da humilhante revista íntima.

    Dois outros aspectos necessitam ser pontuados e vão além da mera análise epidérmica que é constituída pela demonstração de preceitos legais vigentes e válidos.

    O primeiro deles consiste no fato de que em razão da legalidade administrativa, tal como apontado, existe expressa proibição das revistas íntimas em unidades prisionais. Dessa forma, ao menos, desde 25 de maio de 2015, caso observado o parâmetro legal fluminense, ou de 15 de abril de 2016, na hipótese de observância do preceito normativo federal, toda e qualquer revista íntima – vexatória – se mostra vedada.

    Não se está aqui a defender uma irrestrita e cega aplicação da lei, mas sim o respeito ao Estado Constitucional. Em outras palavras, os dispositivos legais citados, enquanto não revogados ou declarados inconstitucionais, deverão ser necessariamente cumpridos.

    Em um cenário sociopolítico que aponta para a dificuldade de efetividade das normas legais, a começar por diversos preceitos constitucionais, afastar-se da legalidade não pode depender dos humores dos agentes públicos, pois, assim, seria mantida a lógica de que o ordenamento jurídico funcionaria da mesma forma que uma vacina, isto é, pode ou não pegar.

    Aliás, Lenio Streck, ao apontar para a responsabilidade política dos magistrados, leciona que o afastamento de um preceito legal somente pode ser admitido quando uma das seis situações excepcionais for observada:

    Em suma: não podemos cumprir a lei só quando nos interessa. Explicitando isso de outra maneira, quero dizer que o acentuado grau de autonomia alcançado pelo direito e o respeito à produção democrática das normas faz com que se possa afirmar que o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei nas seguintes hipóteses: a) quando se tratar de inconstitucionalidade; b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias; c) quando aplicar a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung); d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung); e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto; f) quando for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, entendidos estes não como ‘standards’ retóricos ou enunciados performativos.”

    Ora, se àquele legitimado para interpretar o ordenamento jurídico é imposto limites rigorosos para apartar-se da legalidade, ao aplicador da lei, no caso os agentes públicos lotados em unidades prisionais, não seria possível adotar qualquer postura voluntarista, sendo certo que o afastamento de um preceito legal acarretaria, no mínimo, um exercício argumentativo profundo, o que não era observado quando da realização das revistas íntimas.

    Há, ainda, outra possibilidade analítica sobre o tema em questão e que ultrapassa do âmbito jurídico, permitindo-se o exame sobre a própria configuração atual do Estado e os reflexos da presente faceta do modo de produção capitalista.

    Esse outro viés de apreciação deve levar em consideração o fato de que no ano de 2014, a Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro ajuizou ação civil pública (ACP) em face do estado do Rio de Janeiro – autos nº 0310125-58.2014.8.19.0001 – cujo pedido era condenar o Estado na obrigação de não-fazer consistente na não realização na revista manual naqueles que visitam seus familiares e amigos no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, somente permitindo-se a realização da revista mecânica.

    Quando do ajuizamento da ação coletiva, não existia expressa previsão legal contrária à revista íntima, subsistindo tão-somente a Recomendação nº 05, Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que em seu artigo 2º dispunha:

    Art. 2º. São vedadas quaisquer formas de revista vexatória, desumana ou degradante.

    Parágrafo único. Consideram-se, dentre outras, formas de revista vexatória, desumana ou degradante:

    I – desnudamento parcial ou total;

    II – qualquer conduta que implique a introdução de objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada;

    III – uso de cães ou animais farejadores, ainda que treinados para esse fim;

    IV – agachamento ou saltos.”

    Destarte, a atuação da DPRJ se mostrou importante e consentânea com a sua missão constitucional de promoção dos direitos humanos de grupos vulneráveis. A despeito de ter ocorrido o advento das leis mencionadas, implicando na superação do silêncio normativo sobre o tema, a discussão judicial perdurou por mais de 3 anos, sendo certo que o término do processo se realizou de maneira negociada, isto é, por acordo judicial firmado pelas partes da ACP, isto é, a Defensoria Pública e o estado do Rio de Janeiro.

    Não resta dúvida de que a forma como se obteve a extinção do litígio permite, ao menos por um viés prático e utilitarista, a sua comemoração, até mesmo porque pôs fim a um processo que, no mínimo, tangenciava violação à razoável duração do processo, como ainda indica a observância para o contido no artigo , Código de Processo Civil que estabelece o dever de cooperação das partes do processo.

    Todavia, o fenômeno pode, e deve, ser observado por outro prisma e que se relaciona com a superação do Estado Constitucional.

    Mesmo diante do risco de transparecer simplório o exame, é oportuno frisar que no capitalismo é conferida importância até então desconhecida à mercadoria. Em razão de ser ela quem media as relações sociais, afirma-se existir um fetichismo da mercadoria.

    Durante um determinado período, a exploração do ser humano, que é ínsita ao modo de produção capitalista, apresentava-se dentro de certos limites, sendo certo que situações extremas, tal como o experimentado pelos judeus explorados em campos de concentração nazista, eram consideradas como medidas excepcionais e desconformes à lógica hegemônica. Esse cenário veio a ser alterado com o surgimento do neoliberalismo, pois a ausência de qualquer limite, desde que justificado para a obtenção do máximo de lucro, se torna o “normal”.

    A atuação estatal mínima, que vai além da privatização, é uma medida que desagrada os eleitores, uma vez que traz consigo uma impopularidade enorme. Não foi por outra razão que as primeiras experiências neoliberais se efetivaram em contextos de tomada do poder por meio de rupturas da ordem jurídica então vigente, vide o exemplo chileno de 11 de setembro de 1973. Aliás, uma das personagens políticas que mais se destacou na defesa e adoção de uma política neoliberal, Margaret Thatcher, confessou a dificuldade da efetivação desse ideário em um contexto democrático:

    Em fevereiro de 1982, a primeira-ministra explicou o problema numa carta particular a seu guru intelectual [Friedrich Hayek]: ‘Tenho certeza de que você vai concordar que, na Grã-Bretanha, com nossas instituições democráticas e a necessidade de alto grau de consenso, as medidas adotadas no Chile são completamente inaceitáveis. Nossa reforma deve ser alinhada com nossas tradições e nossa Constituição. Em alguns momentos, o processo pode parecer dolorosamente lento’[i].

    Ora, se mesmo em cenários democráticos, vide a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, e com toda a impopularidade que ele traz consigo, foi possível a implementação do ideário neoliberal, as periferias do mundo global não conseguiram oferecer duradoura e efetiva resistência às imposições oriundas dos centros hegemônicos e que representavam os interesses das grandes corporações. Enfim, estava aberta a temporada de implementação do neoliberalismo, não tendo o Brasil passado imune a essa “caça” provocada pelo capital.

    Diversos reflexos, portanto, podem ser percebidos em outras searas, o que inclui o político. Não foi por outra razão que Rubens Casara aborda a associação existente entre o Estado Pós-Democrático e o neoliberalismo.

    Impregnado da razão neoliberal, o funcionamento do Estado não pode ser democrático. Da mesma maneira que o Estado de Direito (Rechtsaat; regido pela lei) mostrou-se útil ao Estado Liberal e o Estado Democrático de Direito (com limites rígidos ao exercício do poder) funcional à superação do Estado Fascista e às tentativas de resgate do Welfare State, o Estado Pós-Democrático, que se caracteriza pela ausência de limites ao exercício do poder, é um efeito do neoliberalismo.”[ii]

    Para essa concepção de mundo, o neoliberalismo, tudo aquilo que não pode ser transformado em mercadoria não interessa, assim como quem não pode participar da dinâmica do consumo.

    O fato de o litígio, que versava sobre a proibição de revista íntima, ter se encerrado por meio de um acordo traz um simbolismo próprio do Estado Pós-Democrático e do foco exclusivo na possibilidade de negociar. A partir do exposto neste texto, no desenvolvimento da mencionada ACP já existia arcabouço normativo mais do que suficiente para impedir esse expediente; porém, somente quando as partes negociaram é que o cumprimento da lei se mostrou possível.

    De um lado, o estado do Rio de Janeiro se comprometeu a não realizar o censurável comportamento, sob pena de incidir multa pecuniária:

    Cláusula Primeira – Do objeto

    (…)

    Parágrafo terceiro. Por força do acordado no parágrafo anterior, fica proibido ao Estado realizar, por qualquer de seus agentes ou terceirizados, revista íntima vexatória nos visitantes de unidades prisionais do Estado, sob pena de pagamento de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por dia de descumprimento, sem prejuízo da responsabilização pessoal daquele que, por sua ação ou omissão, venha a violar a proibição aqui especificada.”

    De outra banda, a Defensoria, mesmo diante de violações legais anteriores à celebração do acordo, concedida parcial anistia ao Poder Público infrator:

    “Cláusula Quarta – Da quitação

    A DEFENSORIA dá plena, geral, integral e irrevogável quitação ao ESTADO, não podendo mais reclamar, em juízo ou fora dele, a qualquer título, em relação ao objeto da demanda, ressalvados os casos puramente individuais de qualquer de seus assistidos.”

    A possibilidade de negociar o cumprimento da lei, pois é esse o objeto do acordo que acabou pondo fim a uma ação judicial, demonstra o ápice da mercantilização do mundo da vida.

    É, então, chegado o tempo de reconhecer o avanço do Estado Pós-democrático e se insurgir contra esse movimento, o que necessariamente implica em repudiar o neoliberalismo.

    Eduardo Januário Newton é mestre em Direito pela UNESA. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010).

    [i] KLEIN, Naomi. A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 159.

    [ii] CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático. Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. p. 56.

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