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24 de Maio de 2024
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    Nascido do cárcere, o estranho juiz da execução penal

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Foto: Luís Carlos Valois na Corte Suprema do Chile/Facebook

    “Bom dia a todos. Saúdo o presidente presidente da Corte Suprema do Chile, o Ministro Haroldo Brito Cruz, o Ministro Carlos Künsemüller, e agradeço ao Professor Jose Luis Guzman pelo convite e na sua pessoa agradeço também aos demais presentes. Obrigado professor. Um agradecimento especial à Professora Fabíola Girão Monteconrado, que me ajudou no espanhol, desde já pedindo desculpas pelo que o sotaque brasileiro atrapalhar.

    Bem, vou iniciar confessando algo. Para mim não seria nada agradável falar da existência, da importância, de um juiz de direito em uma sociedade em que o Estado de Direito está estruturado como está, mantido como é mantido. Em outras palavras, não é fácil falar da importância de mais um juiz de direito em um Estado que cada vez mais tem se demonstrado como estrutura de resistência às mudanças, como estrutura que dá suporte a tanta desigualdade, violência e morte.

    Há muito que tenho chegado à conclusão que um Judiciário próximo da elite, um judiciário que trabalha em cortes e palácios, não é o melhor Judiciário para uma população que está na rua, nos ônibus, nas calçadas, nas periferias e favelas das cidades. A dificuldade de diálogo é sempre proporcional à distância dos interlocutores, e esse Judiciário, distante, de linguajar difícil, não me parece o ideal de quem possa ter como ideal uma sociedade com mais justiça e menos desigualdade.

    Mas não estou aqui para falar do Judiciário, de seus princípios e de sua política. Estou aqui para falar de um juiz específico, do Juiz da Execução Penal, e de minha experiência como juiz da execução, uma experiência de 20 anos no Brasil.

    Essa observação tem muito a ver com o que eu falava no início, da distância do poder judiciário. Apenas, no caso, estamos falando agora somente do poder judiciário penal, da distância do judiciário penal para com o seu jurisdicionado. Quando alguém fala que todo juiz deveria passar um tempo como juiz da execução penal, fala porque deseja, espera, busca uma maior aproximação do juiz penal com as pessoas que ele encarcera, para que o juiz consiga, mesmo julgando de castelos, de gabinetes, uma maior empatia para com a pessoa acusada, empatia essencial na atividade de julgar.

    Assim, ninguém, como eu, é juiz da execução penal por 20 anos impunimente. Visitando cárceres, ouvindo presos e familiares constantemente, chega uma hora que o gabinete do juiz parece um bunker, um bunker a “proteger” (proteger entre aspas) o juiz da realidade e, sendo obrigado à visitar essa realidade constantemente, sendo obrigado a sair do bunker, nossa fragilidade, nossa dor, nossa empatia (porque empatia é sempre dor), acaba se fazendo mais forte e influenciando a nossa própria forma de ver o mundo.

    Na obra “A miséria do mundo”, coordenada por Pierre Bourdieu, o sociólogo traz as reflexões dele próprio sobre uma entrevista com um juiz da execução penal da França, apresentado simplesmente como Denis J. Logo no início, a constatação de que o juiz da execução penal é um estranho, estranho inclusive entre seus próprios colegas magistrados, como se deferindo progressões de regime e livramentos condicionais estivesse “sob a suspeita de desfazer o veredicto do juiz, portanto, enfraquecer a autoridade da justiça” (2011, p. 243).

    O juiz de Bourdieu agia, tentava inovar na execução penal, trabalhar com o social em prol dos apenados e descobriu – como mais cedo ou mais tarde descobrem todos os juízes com perfis parecidos – que a instituição tribunal não dá a mínima para esse tipo de coisa, e acabou removido numa forma de punição transversa.

    O exemplo do sociólogo francês de um juiz punido por ter resolvido realizar um trabalho social junto com os presos, para mim, é muito importante, porque eu próprio sou perseguido, constantemente acusado, no Brasil, de inclusive ser conivente com as gangues de presos, porque os presos gostam do meu trabalho. Assim, o elogio de um preso, o elogiou de uma pessoa que está sob minha jurisdição, porque está presa, é altamente suspeito. O juiz, parece, precisa ser odiado.

    Não, não é fácil ser juiz da execução penal. Vamos falar então, dos motivos que levaram à existência de um juiz da execução penal onde há um juiz da execução penal. Primeiramente, a meu ver, não foi nenhum motivo científico, aliás, o motivo verdadeiro da existência do juiz da execução penal já foi falado. Para que alguém com o mínimo de autoridade formal, concedida pelo Estado que encarcera, possa ver o preso. A coisa é simples: ver o preso; para isso é que existe o juiz da execução penal.

    Vamos à história: a primeira vez que se falou em juiz visitar prisões foi no Século XVIII. John Howard, como todos sabem, considerado o pai da ciência penitenciária, depois de passar por uma experiência de encarceramento, assumiu a prefeitura de sua cidade na Inglaterra (Bedford) e uma das providências que pedia era a existência de um juiz que visitasse as prisões.

    Lendo John Howard sem o preconceito do próprio direito veremos que ele apenas queria salvar pessoas daquelas masmorras imundas e insalubres do século XVIII. Seu objetivo não era, com um juiz da execução penal, solucionar todos os males da prisão, nem muito menos tornar a prisão algo funcional ou racional.

    Dessa forma tem se alimentado e sobrevivido a prisão como instrumento punitivo até os dias de hoje. Todas as vezes que alguém tem uma ideia, um pensamento para melhorar uma prisão, para fazer do cárcere algo menos desumano, logo outros aparecem para transformar aquela ideia em uma teoria, dizer que é a renovação, a esperança do cárcere, e ele, o cárcere, efetivamente se renova.

    Enquanto houver pessoas presas na nossa sociedade, enquanto algo de humano houver em nós mesmos, felizmente haverá alguém que se preocupe com os presos, com ou sem poder atribuído pelo Estado.

    Sobre as justificativa científicas para a existência de um juiz da execução penal, todos já sabem, vou apenas lembrar. A primeira é a de que um juiz da execução seria um magistrado distante do julgamento do fato, não tendo proferido nenhuma sentença, teria a chance de ser mais imparcial do que aquele juiz que julgou o processo, que analisou as provas, ou seja, que já emitiu um juízo sobre o fato.

    Também o juiz da execução foi criado para ser um juiz especializado na questão penitenciária, vez que não se trata mais de apenas aplicar regras de direito, mas observar situações da prática prisional que vão desde uma simples regra administrativa até a prática de tortura.

    Igualmente a vara de execuções penais e seu juiz têm a função de manter o máximo possível a isonomia de tratamento em uma prisão. No caso, se é tão difícil que todos sejam iguais perante a lei, que pelo menos todos sejam iguais sob o mesmo teto em uma instituição pública.

    Se vários juízes julgassem sobre os direitos dos presos de um só estabelecimento penal, a divergência de tratamentos seria altamente prejudicial e até mesmo um acréscimo de violência contra o já desrespeitado cidadão preso.

    Note-se que o magistrado que será o juiz da execução penal em um processo deve estar previamente previsto em lei, como qualquer juiz em qualquer processo, no que o direito chama de princípio do juiz natural. Uma garantia de todos, para que não tenhamos um juiz designado propositalmente para julgar um direito nosso.

    No Brasil, esse é um princípio que não tem sido respeitado muito desde a criação do próprio juiz da execução penal, por lei, em 1984. O que fragiliza a condição de um juiz já fragilizado pela sua própria função.

    Em São Paulo foi criado um departamento de execução penal para que o tribunal possa designar, trocar ou remover os juízes a hora que bem entender. E o pior é que em matéria punitiva São Paulo tem servido de parâmetro para o resto do Brasil.

    Assim, o juiz da execução penal resta, no Brasil, cada vez mais desprestigiado, sem poder, sem moral como se diz na gíria dos presos. E um juiz sem moral em uma penitenciária não serve para nada, talvez, no máximo, para tirar o preso de um buraco qualquer em que tenha sido jogado.

    Essa, vamos dizer assim, crise, que passa e sempre passou o juiz da execução penal, pode ser muito útil para o Chile, que pensa na possibilidade de ter o seu próprio juízo da execução penal. É necessário que esse juiz seja pensando não sob os parâmetros da velha criminologia positivista, com muita influência no nascimento do juiz da execução penal, na sua estrutura de previsão legislativa, no mundo todo.

    O juiz da execução penal era aquele funcionário que, disputando poderes com médicos, psicólogos e carcereiros, poderia dizer quando o preso sairá recuperado, ressocializado, reeducado (ou qualquer nome desses que a história foi tão farta em criar para reforçar a prisão). Mais um agente, filho da disciplina, pronto para agravar e reforçar o que o cárcere tem de pior e mais falso, sua ideia de punição benéfica.

    Não à toa, o juiz da execução penal tem perdido prestígio no Brasil. Ninguém mais acredita no cárcere com qualquer função positiva. O grande problema é que, repito, nós temos pessoas presas, e o cárcere precisa ser o menos prejudicial possível, e nesse sentido precisamos agir.

    O correto, o racional, depois de centenas de anos de experiência encarceradora, é a conclusão de que o melhor cárcere possível é aquele transformado em museu ou em escombros. O melhor cárcere é o que é menos cárcere. A melhor prisão é a que é menos prisão. Nós não vamos melhorar a prisão com medida nenhuma, a não ser com aquela que seja menos prisão.

    Um exemplo de que a lei pode se prestar a inúmeros propósitos, ou a propósito nenhum, é o desse parágrafo do art. da Constituição do Chile: “El Estado está al servicio de la persona humana y su finalidad es promover el bien común, para lo cual debe contribuir a crear las condiciones sociales que permitan a todos y a cada uno de los integrantes de la comunidad nacional su mayor realización espiritual y material posible, con pleno respeto a los derechos y garantías que esta Constitución establece!”, melhor diretriz para um sistema penitenciário não poderia existir, embora, obviamente não foi nos presos nem nas garantias do cidadão que se pensou no momento da redação desse texto.

    Entretanto, é um texto que não pode dar lugar a existência de mais um juiz encarcerador, de mais um juiz obstáculo à liberdade e à integração social. Esse texto deve ser uma mensagem de como deve ser o juiz da execução de verdade, não o juiz da execução do Brasil, não o juiz da execução pensado pela criminologia positivista, mas um juiz de direito verdadeiro, que entra nos cárceres e vê a verdade.

    O juiz da execução penal que se deve esperar, que se deve criar sem os parâmetros do positivismo criminológico, é o juiz que tenha em mente esse parágrafo da Constituição Política da República do Chile, um juiz que saiba pesar a realidade do cárcere frente às leis e, principalmente, à própria Constituição.

    Um juiz que, diferente dos seus colegas, juízes que prendem, seja um juiz que solta sem medo. Um juiz de coragem, que possa ver na pessoa daquele preso um cidadão cumprindo pena e não mais um objeto da jurisdição, não mais um número em um processo, não mais um ser sob a experiência violenta e irracional do cárcere.

    O Chile tem tudo para ter um juiz desses. Já tem juízes humanos, já tem juízes preocupados com as garantias e direitos do cidadão, já tem juízes conscientes do seu papel político em uma sociedade democrática e, principalmente, já tem uma Constituição que diz como deve ser o seu juiz da execução penal. Que se cumpra a Constituição, que se cumpram todas as Constituições.

    Muito obrigado!”

    Luís Carlos Valois é Juiz de direito, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela Universidade de São Paulo – USP, membro da Associação de Juízes para Democracia – AJD, e porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition – LEAP (Agentes da Lei contra a Proibição).

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