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17 de Junho de 2024
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    O processo: prisão de Lula, poder soberano e vida nua

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Der Prozess, livro de Franz Kafka, narra os infortúnios de Josef K., cidadão comum que vivia tranquilamente, até que, certa manhã, é confrontado com o poder soberano e passa a responder, em longo processo, por crime que, desde o início até o momento de sua execução, jamais descobrimos qual é. Ele, que era bancário, de vida morna e cinza, passa a ser perseguido e tem seus direitos tolhidos até que, sem alcançar as nuances do burocrático e inquisitório sistema judiciário, termina por ser morto. Ao final, no momento de sua execução, ele se declara inocente, e, ao declarar, K. é perguntado: “Inocente de quê?”, o que ele sequer sabia responder.

    O sistema penal brasileiro é kafkiano. No julgamento do HC 152.752, tivemos a clara demonstração de que nosso modelo penal ainda é muito inquisitório e as prisões são como velhos calabouços que servem às forças políticas. Sim, somos vergonhosamente medievais. Um dos maiores traços foi apontado pelo emérito professor Ferrajoli[1], um dos maiores penalistas do mundo, que apontou, em janeiro desse ano, frente ao caso Lula, em carta da Universitá degli studi Roma Tre, do departamento de direito europeu, a confusão no Brasil entre os papéis do juiz julgador e do juiz da instrução. Outro forte traço, além do protagonismo dos juízes fora do controle democrático, é o pré-julgamento, que afeta e contamina a própria colheita de provas nas delações premiadas: se vão a favor da acusação, essas provas são avaliadas como verdadeiras, se vão contra a acusação, elas são declaradas falsas e descartadas. Isso sem contar a pressa com que o sistema julga certos casos, com claras intenções de interferir, de forma mais direta, nas disputas políticas. O julgamento antecipado ou prévio, típico do processo kafkiano, exclui toda possibilidade de realmente investigar de forma isenta e punir os crimes de corrupção que possam ter ocorrido.

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    O livro de Kafka, apesar de apontar coisas tão vetustas, ainda é muito atual. Josef K. não podia se defender, porque sequer sabia do que estava sendo denunciado. Sua condenação foi traçada a partir do momento em que ele passou a responder ao processo: todo o julgamento era antecipado, porque o único caminho era a sua condenação. Não importava se ele apresentasse suas defesas, recorresse a quaisquer instâncias, ele seria ao final culpabilizado: contra ele, a presunção de culpa. Se Josef K. cometeu realmente algum crime, não podemos saber, porque todo o aparato criminal excluiu inclusive nossas chances de conhecermos o seu crime, e que este fosse investigado de forma isenta e séria.

    As lições da história são muitas: presunção de inocência é coisa séria, que não deve ser flexibilizada. Em 1838, segundo nos conta Rezende[2], houve o enforcamento de um condenado na cidade de Campanha, província de Minas Gerais. Na ritualística, havia a marcha da justiça: na frente, ia o condenado – um africano – nas palavras do autor, boçal – e, ao seu lado, o padre. O condenado ia amortalhado, com corda no pescoço e, logo atrás dele, o carrasco. Logo atrás do carrasco, vinha todo o aparato da justiça: o juiz, ao lado do escrivão com os oficiais e, ainda, a Guarda Nacional. O cortejo seguia e, a cada momento, parava, quando era lida a sentença pelo porteiro dos auditórios, como verdadeira procissão. Assim seguia até o momento da execução, perto do largo da matriz, onde a forca esperava o préstito. Nesse dia, o padre, como de costume, pediu que o preso rezasse o credo e, após, o carrasco empurrava o condenado para fora da forca, contudo, a corda arrebentou. O fato repetiu-se mais três vezes e, na quarta vez, o condenado ficou em suspenso e o carrasco trepou em seus ombros, de forma a forçar o estrangulamento, quando finalmente foi morto. A sensação de desagrado tomou conta do local, pois era costumeira e conhecida a crença de que a corda só arrebentava se o preso era vítima de grande injustiça.

    O sistema penal ainda é celetista: ele tem haver com o capital cultural. Ele se conecta intimamente com a questão da escravidão. A grande mídia é como o carrasco, que, usando de instrumentos de manipulação midiática ou a “força do povo”, continua nos dependurando nas cordas, a fim de forçar uma condenação. Esse é o retrato da Lava Jato, que, comandado pela magistocracia – em termo cunhado pelo professor Conrado Hübner para classificar a casta brasileira que sempre teve tantos privilégios e goza de tanto poder, ao argumento de estar cumprindo a “justiça” – pagou um preço alto demais: o desmantelamento de várias conquistas civilizatórias, o massacre de direitos constitucionais com a flexibilização de regras que custaram muito sangue e, por fim, a fragilização do Estado Democrático de Direito, no aspecto da separação entre política e direito.

    O Supremo Tribunal Federal nunca nos causou tanta vergonha. Ele, que deveria estar protegendo a Constituição Federal, projetou-se como nunca fez antes como escravo das “opiniões públicas” – estas, manipuláveis e obviamente não avaliadas estatisticamente – servo das ameaças fascistas dos poderes militares e, por fim, como aliados dos poderes políticos e gerenciadores de políticas públicas – mas não democraticamente eleitos.

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    O flerte começa com a adoção do método de argumentação, interpretação e decisão, utilizado em larga escala no Supremo Tribunal Federal, que é a ponderação de direitos, contra a qual temos sérias ressalvas. O alemão Robert Alexy, que desenvolveu esse método, pensa na colisão de direitos fundamentais, com distinção entre regras e princípios – princípios que, para ele, podem ser ponderados por procedimento argumentativo. O problema da ponderação alexyana é que, por assumir convicção procedimentalista de argumentação, não adentra em questões de convicções prévias da própria racionalidade argumentativa – o que acaba levando à questão da subjetividade e portanto, paradoxalmente, da falta de racionalidade do método da ponderação. Consigne-se, ainda, que mesmo apontadas essas sérias ressalvas quando à alta subjetividade que o método permite, ele não é adequadamente aplicado no Brasil em muitas das vezes – podendo levar a resultados totalmente distintos: por exemplo, a ponderação de direitos pode servir tanto para prender quanto para soltar após decisão em segunda instância, o que deixa o direito muito frágil. Vide o julgamento do HC, que, apesar de se basear em “ponderação de direitos”, desconsiderou que a regra – consignada no art. 283 do Código de Processo Penal – não pode ser ponderada, por ser regra e não princípio.

    Existem métodos mais sofisticados que a ponderação de direitos e que garantem uma menor subjetividade do órgão julgador, exigindo maior justificação. Podemos citar, por exemplo, a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, a pragmática discursiva de Habermas, a hermenêutica filosófica de Lenio Streck, a hermenêutica política de Ronald Dworkin, a hermenêutica metódica de Castanheira Neves, dentre outros.

    Compreender que presunção de inocência permite prisão em segunda instância é usurpar o poder político por vias ilegítimas, mesmo com a adoção do método alexyano, pela desconsideração absoluta da regra contida no já mencionado art. 283 do Código de Processo Penal – ainda em vigência e em pleno vigor constitucional – que estabelece apenas as seguintes hipóteses de prisão: a) em flagrante delito, por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente; b) no curso da investigação criminal, em prisão temporária ou preventiva, conforme previsões taxativas legais; c) e, por fim, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado.

    Se deseja-se encrudelecer o sistema penal, que se faça pelos meios adequados – por meio das arenas das disputas políticas – e não através de súmula que flexibilize normas constitucionais claras e que desconsidere por absoluto a existência de regra processual penal taxativa. As disputas de sentidos políticos devem ocorrer nas arenas da política e não nas do direito. Se essas disputas acontecem nos campos jurídicos, damos o aval para que se aplique de forma desigual o direito para pessoas distintas, por exemplo, que se aplique em alguns casos a prisão para pessoas que, por convicção ideológica indesejada pela elite cultural brasileira, devem ser afastadas, e que se dê a liberdade para outras pessoas cujas convicções ideológicas sejam as desejadas.

    Vida nua: o desnudar dos argumentos

    Com o julgamento do Habeas Corpus 152.752, caso Lula, e o controle dos corpos e das massas por meio de palavras – esquecemos que não se trata só de Lula e que essa luta não diz respeito só aos políticos – que foram privilegiados ao longo da história – ao contrário do que nos dizem os maiores meios de comunicação de massa. O reconhecimento da prisão automática em segunda instância penaliza, ainda mais, os pobres e aquelas pessoas que, como Josef K., já começam o processo como presumidamente culpadas.

    Essas narrativas atravessam a história do Brasil para nos dizer que o poder político continua violentamente penalizando as pessoas fora das regras, fora dos privilégios. Nosso sistema penal é escravagista e o julgamento do HC deixa claro que continuaremos sendo: o poder jurídico seleciona aqueles corpos que, embora não possam ser destinados a morrer – como no regime foucaultiano do sangue, que é o tanatospoder (ou poder do gládio, poder soberano sobre a vida e a morte dos corpos) – agora são deixados a morrer, por instrumentos do biopoder (o controle dos bios, da vida). O julgamento do HC 152.752 é claramente um regime de racismo biológico, instrumento da biopolítica para deixar os corpos morrerem.

    O poder soberano é aquele poder sobre a vida e a morte dos seus súditos. Com a modernidade, ele é substituído pelo biopoder, que, por meio do racismo biológico, deixa morrer: os indigentes, os pobres, os miseráveis, os presos, os loucos, as mulheres que praticam abortos, todos aqueles que o Estado não mata, mas, por meio dos aparelhos de poder, através das verdades que ele domina em disputas epistêmicas, são as vidas desprivilegiadas.

    A tanatospolítica convive com a biopolítica justamente no racismo biológico. Ele substitui o gládio por instrumentos de política que definem quem é digno de morrer e quem é digno de viver. Troca que, no direito, ocorreu pela passagem do “fazer” morrer e “deixar” viver do gládio para o “fazer” viver e “deixar” morrer da biopolítica[3], por meio dos mecanismos disciplinadores e regulamentares – e neste ponto se insere o que Foucault[4] chama de racismo: no corte entre o que se deve fazer viver e o que se deve deixar morrer. A biopolítica do racismo é o que permite a cisão entre o tanatospoder e o biopoder, porque somente através dela se pode deixar morrer, mesmo que essa morte seja simbólica: a morte política, a rejeição, o abandono, a seleção dos corpos, no sentido de controle da degeneração. Seu aliado é o direito e a política, que determinam quais são as formas de vidas nuas, que, por meio de estruturas de poder, são excluída da proteção jurídica.

    No direito penal, vemos isso na tradição lombrosiana do homem deliquente e, ainda, na atual esquematização do negro como o delinquente, que constitui o retrato da população carcerária atual. Por meio do racismo, fez-se no Brasil, por meio da tecnologia do poder que é a Lava Jato, esse corte: qual a raça mais sadia, mais pura, mais bela, que deve viver.

    Isso remete às nossas origens históricas escravagistas, especialmente, considerando o nosso passado colonial, todas as mazelas a que os corpos foram e continuam sendo submetidos. Assinamos, por meio do poder jurídico, um cheque em branco de que esses corpos podem ser deixados a morrer. O direito de matar desse racismo biológico como aparelho de significação dos corpos políticos se mostrou, com mais notabilidade, no dia do julgamento do Supremo, quando os poderes do gládio – as forças militares – ameaçaram fazer valer as suas verdades supremas.

    Poderes togados

    Aceitar a presunção de culpabilidade após a condenação de segunda instância é desconsiderar que, no direito, é possível provar qualquer coisa, ainda mais quando se tratam de pessoas desprivilegiadas para as quais o acesso à justiça é uma falácia. Pessoas que não são defendidas adequadamente e cujos corpos são empurrados para as velhas enxovias dos antigos presídios.

    A Lava Jato não é a descontinuidade desse modelo escravagista, mas a sua continuidade por outras formas, é o estado íntimo de simbiose entre o soberano e o jurista, como apontado por Agamben[5].

    Para romper de verdade com esse modelo do escravismo, precisamos pensar no pressuposto da escravidão como útero da formação do Brasil, como lugares e matrizes de formulação: tanto das condenações seletistas da Lava Jato quanto das formulações de políticas que se estabelecem a partir dela. Do contrário, estaremos fadados a servir aos senhores de escravos, que agora mudam de nome e usam togas.

    Ana Paula Lemes de Souza é advogada, escritora, roteirista e pesquisadora. Mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), Pós-graduada em Filosofia do Direito pela Faculdade de Educação Regional Serrana (FUNPAC), Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Varginha (Fadiva). Membro integrante do Grupo de Pesquisa Margens do Direito

    [1] Carta na íntegra consultada em: .

    [2] REZENDE, Francisco de Paula Ferreira. Minhas recordações. 1832-1893. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1987, p. 76-78.

    [3] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 287.

    [4] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, p. 304.

    [5] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 128.

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