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17 de Junho de 2024
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    O SUSP e o Poder Embriagado

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    A ideia do Sistema Único de Segurança Pública, SUSP, foi formulada e apresentada pela primeira vez no documento chamado Projeto de Segurança Pública para o Brasil, que integrou o programa de governo do então candidato Lula, em 2002. Fui um dos coordenadores e redatores do texto, elaborado no âmbito do Instituto Cidadania[1].Esse documento se transformaria, com a vitória de Lula, na orientação a ser cumprida pela secretaria nacional de segurança pública, da qual fui titular, no primeiro governo Lula (de janeiro a outubro de 2003). Portanto, meu dever como gestor foi criar as condições para a implementação do SUSP, o que exigiria amplas negociações com os 27 governadores e o Congresso Nacional, visando a mudança do artigo 144 da Constituição, indispensável à plena viabilização do Sistema Único de Segurança Público, ainda que algumas alterações infra-constitucionais fossem também pertinentes — embora insuficientes.

    As negociações avançaram muito, mas o governo federal resolveu abdicar do compromisso assumido na campanha. O motivo: a extensão e a profundidade das reformas trariam o executivo federal — mesmo que as transformações dependessem em grande parte do Parlamento — para o centro da cena da insegurança pública, dotando-o de inusitado protagonismo nessa área predominantemente afeta aos governos estaduais, o que implicaria risco iminente de desgaste político, uma vez que atribuiria à União responsabilidades que o artigo 144 não lhe confere.

    Enquanto fui secretário nacional, criei 27 Gabinetes de Gestão Integrada de Segurança Pública (GGIs), um em cada estado e no DF, antecipando, na prática, experiências de articulação inter-institucional e coordenação que a plena instalação do SUSP regulamentaria e institucionalizaria. Contudo, sempre chamei a atenção da mídia e da sociedade para o fato de que, enquanto não fosse possível institucionalizar a integração, os GGIs só funcionariam se houvesse vontade política das instituições “convidadas” a participar, posto que a elas não caberia qualquer obrigação de cooperar.

    Por isso, nos GGIs, as decisões só poderiam se dar por consenso, o que restringiria sua capacidade de ação, evidentemente. No entanto, não haveria alternativa, uma vez que as instituições envolvidas eram autônomas e não poderiam submeter-se a qualquer comando externo, como o voto da maioria dos participantes, por exemplo.

    Saí do governo e o SUSP foi esquecido, até que, no segundo mandato do presidente Lula, o ministro da Justiça Tarso Genro retomou “o fio da meada”, desengavetou o projeto e buscou aproveitar o que pudesse ser viabilizado sem mudança constitucional (muito pouco, portanto — nem por isso, irrelevante).

    Vejamos alguns exemplos.

    Diz-se, no capítulo 7, “Das Estratégias”: “A Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social será implementada por estratégias que garantam integração, coordenação e cooperação federativa…” .

    Eis os atores, no nível das estratégias: “I – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por intermédio dos respectivos Poderes Executivos; II – os Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social dos três entes federados”.

    Pergunto: como haverá integração sem comando? Quem decidirá sobre as estratégias? Quem coordenará? Só há duas respostas: as decisões serão tomadas por consenso (medida que adotei nos GGIs para viabilizá-los, ainda que isso os reduzisse quase à impotência ou, na melhor das hipóteses, à boa vontade circunstancial dos agentes), ou por maioria de votos, ou ainda por um comando previamente estabelecido.

    Pois essa matéria absolutamente crucial foi olimpicamente negligenciada. Por que? Simplesmente porque é questão insolúvel ao nível dos puxadinhos infra-constitucionais. O que está em jogo é o pacto federativo, é a autonomia dos entes federados.

    E os atores operacionais? Vejamos quem eles são, segundo a Lei: “I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – (VETADO); IV – polícias civis; V – polícias militares; VI – corpos de bombeiros militares; VII – guardas municipais; VIII – órgãos do sistema penitenciário; IX – (VETADO); X – institutos oficiais de criminalística, medicina legal e identificação; XI – Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp); XII – secretarias estaduais de segurança pública ou congêneres; XIII – Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec); XIV – Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas (Senad); XV – agentes de trânsito; XVI – guarda portuária”.

    O Brasil, na área de segurança pública, tornou-se o reino do voluntarismo, do arremedo, do improviso, da mistificação mais simplória, da retórica no lugar do tratamento sério e objetivo dos problemas reais.

    Mas a peça inacreditável não para aí. Depois do que se anuncia, em termos de integração, vem a seguinte pérola:

    “§ 4º Os sistemas estaduais, distrital e municipais serão responsáveis pela implementação dos respectivos programas, ações e projetos de segurança pública, com liberdade de organização e funcionamento, respeitado o disposto nesta Lei”.

    Ora, o gênio Legislador esqueceu de explicar como é que se respeita o disposto nesta Lei e, ao mesmo tempo, a liberdade de organização e funcionamento dos entes federados e de seus organismos subordinados.

    A viagem lisérgica, o surto de embriaguez, a carraspana legislativa (que contagiou o executivo, responsável pela sanção dessa peça inverossímil) prossegue: Na Seção II, Do Funcionamento, lê-se: “Art. 10. A integração e a coordenação dos órgãos integrantes do Susp dar-se-ão nos limites das respectivas competências, por meio de: I – operações com planejamento e execução integrados; II – estratégias comuns para atuação na prevenção e no controle qualificado de infrações penais”.

    Indago: como se determina planejamento e execução integrados sem que haja qualquer menção ao processo decisório, sabidamente o calcanhar de Aquiles de todas as experiências de cooperação já tentadas no Brasil?

    O notável Legislador coletivo ofereceu, sim, resposta límpida, cândida, que, provavelmente, só um cidadão amargo e venenoso como eu não seria capaz de entender. Diz a Lei:

    “§ 3º O planejamento e a coordenação das operações referidas no § 2º deste artigo serão exercidos conjuntamente pelos participantes”.

    Realmente, brilhante: se a Lei não diz como se decidirá em ambiente coletivo, marcado por multiplicidade de esferas e instâncias autônomas, ela terceiriza a decisão sobre a decisão, isto é, afirma que a decisão ficará a cargo dos atores envolvidos. Ou seja, aqueles mesmos que não têm como decidir sem ferir autonomias terão de decidir sobre como decidir. Em suma, o Congresso, data venia, perdeu a razão (e não terá sido a primeira vez, embora nas demais situações costume haver um interesse a espreitar e governar o desatino — aqui, aparentemente, o desatino é sua própria razão), na data em que promulgou essa insensatez, que não resistirá, insisto, à primeira interpelação quanto à sua constitucionalidade.

    Há mais: as disposições sobre os Conselhos são primores de platitudes e devaneios impraticáveis. Não pretendo entrar em detalhes, apenas assinalo que conselhos em que todos estão, ninguém está e nada funciona.

    Passo ao Controle Interno (Seção I):

    “Art. 33. Aos órgãos de correição, dotados de autonomia no exercício de suas competências, caberá o gerenciamento e a realização dos processos e procedimentos de apuração de responsabilidade funcional, por meio de sindicância e processo administrativo disciplinar, e a proposição de subsídios para o aperfeiçoamento das atividades dos órgãos de segurança pública e defesa social”.

    Ou seja: que se faça o que já se faz e não funciona. Quem sabe fazendo mais do mesmo se alcance resultado diferente? A essa expectativa francamente irracional, Einstein deu um nome: loucura.

    Avançando na leitura da Lei, encontra-se o que parece ser, afinal, uma boa ideia, uma ousadia que atende a antigo pleito popular. Na Seção II, Do Acompanhamento Público da Atividade Policial, consta o seguinte enunciado:

    “Art. 34. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão instituir órgãos de ouvidoria dotados de autonomia e independência no exercício de suas atribuições”.

    Infelizmente, a alegria dos democratas dura pouco. Vejamos do que, efetivamente, se trata:“Parágrafo único. À ouvidoria competirá o recebimento e tratamento de representações, elogios e sugestões de qualquer pessoa sobre as ações e atividades dos profissionais e membros integrantes do Susp, devendo encaminhá-los ao órgão com atribuição para as providências legais e a resposta ao requerente”.

    Inacreditável, a Ouvidoria, na Lei do SUSP, reduz-se a uma agência burocrática, uma espécie de Call Center, que recolhe e repassa ao órgão que já existe e que fará o mesmo que sempre fez –e nunca funcionou, tanto que se pleiteia uma Ouvidoria.Ah! mas nem tudo está perdido: finalmente, há uma penalidade, expressando uma cadeia de autoridade. Vejamos:

    “§ 2º O integrante que deixar de fornecer ou atualizar seus dados e informações no Sinesp poderá não receber recursos nem celebrar parcerias com a União para financiamento de programas, projetos ou ações de segurança pública e defesa social e do sistema prisional, na forma do regulamento”.

    Penalidade? Não, exatamente. A frase soa como uma advertência paterna: quem não fizer o dever de casa, “poderá” sofrer uma sanção. “Poderá”. Claro que a eventual tentativa de implementar a determinação de que os dados sejam atualizados por meio de corte de verbas acabará sendo sustada por decisão da Corte Suprema, quando a Lei do SUSP, em seu conjunto, vier a ser contestada por inconstitucional, e o será, assim que o primeiro agente público ou ente federado se sentir constrangido em sua autonomia. E não restará pedra sobre pedra. Desse modo, mais uma vez, teremos perdido a oportunidade de levar a sério as problemáticas da integração e do controle externo, fundamentais na segurança pública. Não nos enganemos: nenhuma solução racional e efetiva será viável sem a mudança de toda a Arquitetura Institucional da Segurança Pública[3], que inclui o modelo policial, definida no artigo 144 da Constituição, nicho que abriga o legado mais sombrio da ditadura.

    ***

    Agradeço a Thaiane Monteiro, Nalayne Monteiro e Adrielly Pinto, o convite para a entrevista que me estimulou a escrever este artigo.

    Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública e coordena curso sobre segurança pública na Universidade Estácio de Sá.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/o-susp-e-o-poder-embriagado/596498637

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