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17 de Maio de 2024
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    Ocupar é dar função social à propriedade

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Escombros da ocupação no centro de SP. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

    A propriedade obriga. Esta é uma das frases que poderia resumir a conformação constitucional atribuída à propriedade quando garante a existência deste direito, desde que cumprida sua função social. Em outras palavras, o exercício da propriedade é um direito cujo dever correlato é emprestar-lhe função social, sob o risco inclusive de perda do bem. E não se trata, como podem crer alguns, de instituto tipicamente brasileiro, mas repete-se pelas mais diversas constituições e matizes jurídicas pelo mundo[1].

    Tradicionalmente existem duas características centrais do cumprimento desta função social. A primeira possui natureza negativa, que determina ao proprietário um não agir, sob pena de abuso de direito. É o exemplo do vizinho, legítimo proprietário do imóvel ao lado, que escuta música no último volume, ou do restaurante, absolutamente regularizado, que impregna o prédio contíguo com a fumaça proveniente da cozinha. Por outro lado, existe o aspecto positivo deste instituto, que impõe ao proprietário que efetivamente exerça o seu direito, ou seja, que proprietário de fato seja proprietário, que dê destinação ao seu bem. É disso que se cuida agora.

    O país acompanhou e ainda acompanha a tragédia ocorrida na cidade de São Paulo com o desabamento de um prédio ocupado por pessoas que não possuíam título formal de propriedade daqueles imóveis, os comumente denominados sem-teto. Mesmo diante de vítimas fatais, de pessoas perdendo os poucos que bens que possuíam, crianças tendo que dormir nas ruas, não foram poucas as manifestações a relativizar o sofrimento das vítimas, pelo patético argumento de que: “se não houvessem invadido, não haveria tragédia”, ou, ainda mais grave, a impressionante manifestação do ex-prefeito da cidade ao afirmar que o imóvel havia sido invadido por uma fação criminosa[2]. Mais violência simbólica impossível, ainda mais vindo de pessoa já acusada de invadir terreno público[3].

    O insuspeito ministro Gilmar Ferreira Mendes afirmou em seu manual que, diferentemente da vida, da possibilidade de ir e vir, da liberdade de expressão e da possibilidade de reunião, a propriedade não pertence à natureza do ser humano – seja lá o que isso for – de sorte que é dado ao legislador uma maior liberdade para limitá-la ou conformá-la aos interesses sociais[4]. E estas regras limitadoras existem, seja na Constituição Federal, seja em normas esparsas – como o Estatuto das Cidades – há previsão legal para atuação do Poder Público em detrimento do proprietário, sobretudo o de bens imóveis, que não exerce seu direito em atendimento à sua função social, o que pode levar inclusive à perda da propriedade.

    Como de costume, ante a inércia do Poder Público, são os ocupantes – e não invasores, como de forma praticamente uníssona, e não sem intenções outras a grande mídia os define – que dão à propriedade função social à propriedade imóvel inutilizada. Diante de tamanho déficit habitacional, preços inflacionados no mercado imobiliário –com imóveis vazios sendo instrumentos de especulação – são os ditos invasores que fazem com que a lei seja cumprida, já que o proprietário e o Poder Público mantém-se inertes.

    Os que criticam os ocupantes, sob o argumento de que seria uma invasão ilegal, com efeito não percebem serem estes que, na verdade, cumprem o previsto no ordenamento jurídico, uma vez que conferem à propriedade inutilizada uma função social. Ora, se desejam tanto que as leis sejam cumpridas deveriam apoiar as ocupações, que nada mais são do que o cumprimento da lei e das normas constitucionais. Isso para ficarmos apenas na questão da propriedade, desconsiderando diversas outras previsões constitucionais que legitimam tais atos de ocupação.

    A explicação para que estes supostos defensores da lei não ajam assim somente pode ser explicada pela (in) coporação[5] irrestrita da racionalidade neoliberal imposta por esta forma de governamentalidade presente, em que tudo se insere em uma lógica de mercado[6] e a propriedade adquire um caráter praticamente sagrado no imaginário popular.

    Estudiosos de Focault já avançaram no sentido que não resta mais necessário ao Estado e ao Mercado que nos vigie, hoje nós mesmo já nos vigiamos, já incorporamos como naturais valores que atendam aos desejos destas duas “instituições” que nos governam, mesmo que estes valores sejam contrários às leis que julgamos defender ou manifestamente contrários aos nossos interesses.

    Ao meu ver a questão hoje ultrapassa o âmbito jurídico ou puramente sociológico, enquadra-se muito mais num problema somente apurável pela psicanálise.

    Umberto Abreu Noce é Advogado, formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, e Mestre em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

    [1] A Constituição Espanhola, por exemplo, em seu artigo 33, condiciona o direito à propriedade ao cumprimento de sua função social, a ser definida mediante lei. Por sua vez a Constituição Portuguesa possui diversos mandamentos esparsos quanto ao cumprimento da função social da propriedade e possíveis consequências advindas de comportamento contrário.

    [2] https://veja.abril.com.br/brasil/para-joao-doria-predio-que-desabou-abrigava-faccao-criminosa/

    [3] http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2017/02/apos-polemica-prefeitura-vai-vender-viela-de-doria-em-campos-do-jordao.html

    [4] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO Inocêncio Mártires. BRANCO Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

    [5] (In) corporar no sentido de fazer parte do corpo, estra incrustado de forma praticamente inerente, conceitos estes trabalhados por Jessé Souza nas obras: SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015 e SOUZA, Jessé. A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte. UFMG, 2011

    [6] DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal; tradução Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

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