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4 de Maio de 2024
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    Podem os juízes legislar?

    Publicado por Correio Forense
    há 12 anos

    O direito do Ocidente tem em alta conta, sob a luz de Montesquieu, o princípio da separação dos poderes, que se dá a partir do sistema de funções precípuas. Assim, ao Legislativo reconhece-se a função precípua da elaboração normativa geral; ao Executivo a implementação prática das normas e a gerência da coisa pública; e ao Judiciário o julgamento dos litígios que lhe são apresentados.

    O sistema de funções precípuas não significa, naturalmente, funções exclusivas ou privativas. Portanto, não está excluído da esfera atributiva dos poderes republicanos o exercício das demais atividades estatais, já que todos, em sua respectiva seara, representam a manifestação concreta do Estado.

    Desse modo, segundo a Constituição Federal Brasileira, o Legislativo também julga (art. 52, incs. I e II) e gerencia a estrutura que lhe é afeta (art. 52, inc. XIII); o Executivo também legisla (art. 84, incs. VI e XXVI e art. 87, inc. II) e profere julgamentos no âmbito de processos administrativos de variada natureza; ao passo que o Judiciário também administra (art. 96, inc. I, alínea b) e igualmente promove elaboração normativa geral, inclusive com repercussão no interesse das partes em processos judiciais (art. 96, inc. I, alínea a).

    No aprimoramento do debate é interessante notar que não há, na Constituição Federal, qualquer norma que defina os meios pelos quais o Poder Judiciário pode alcançar seus propósitos. Enquanto as atribuições do Poder Legislativo estão nos arts. 48 a 52, e as do Executivo nos arts. 84 e 87, no capítulo relativo ao Judiciário a Carta Magna limita-se a descrever sua organização geral e algumas regras de competência procedimental.

    Ao passo em que para os demais poderes há previsão de atribuição sobre temas específicos, bem como a indicação de assuntos a serem tratados e as formas de abordagem, para o Poder Judiciário há apenas uma divisão interna de temas, tudo sob o genérico texto processar e julgar. A Lei Complementar nº 35/79 Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), recepcionada pelo art. 93 da Constituição, segue o mesmo espírito.

    Esse caminho qual seja, a percepção de que a Constituição Federal não delimitou o campo de atuação dos juízes e, tampouco, os restringiu a meros catalogadores de situações jurídicas autoriza a conclusão positiva sobre a indagação do título do artigo desde que, ressalte-se, não seja entendido o poder de legislar no aspecto de emissão normativa geral ex officio ou desvinculada de um caso judicial.

    Na verdade, o poder de legislar dos juízes apresenta-se como decorrência aceitável e plausível da atividade de decidir, de julgar, que consiste, segundo De Plácido e Silva, em formar juízo a respeito do assunto, que motiva a contenda (Vocabulário Jurídico, 15ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 462).

    E, na medida em que a jurisdição expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação dos conflitos [...] mediante a realização do direito justo (Cintra, Antônio Carlos de Araújo; Grinover, Ada Pellegrini e Dinamarco, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 14ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 139), há que se admitir que, para a realização desse direito justo, nem sempre se dispõe de legislação específica preexistente às demandas apresentadas aos juízes.

    Na ausência de legislação formal, e considerando a impossibilidade, no direito brasileiro, da decisão pelo non liquet ou seja, sendo defeso ao magistrado nacional recusar julgamento sob alegação de inexistência de normas de regência do caso , os tribunais não só podem como, efetivamente, têm decidido conflitos promovendo gênese normativa.

    Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal proferiu contundentes decisões com emissão normativa, das quais se destacam: a) a concessão de aposentadoria especial a servidores que trabalham sob insalubridade (Mandado de Injunção nº 721, Rel. Min. MARÇO AURÉLIO, DJ-e 29/11/2007); b) a proibição do nepotismo na Administração Pública em geral (Súmula Vinculante nº 13, DJ-e 29/08/2008); e c) a admissão da união estável entre pessoas do mesmo sexo, a qual não estava prevista na legislação ordinária e nem expressamente na Constituição (ADPF nº 132, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJ-e 13/10/2011).

    Claro que a atividade normativa das cortes não se iguala à do Congresso Nacional, no tocante à forma, mas apenas, e parcialmente, no tocante ao conteúdo. Alguns casos, inclusive, ficarão restritos às partes no processo, enquanto outros, pela natureza da ação judicial proposta, repercutirão em todo o tecido social.

    Os opositores da ideia sempre destacam a suposta ausência de legitimidade específica dos juízes, uma vez que não foram eleitos pela população, não receberam votos para representar e externar vontade em nome da sociedade. Ora, o sufrágio popular perdeu há tempos, data venia, a exclusividade de conferir legitimação representativa. Na realidade atual, com as populações na cifra de milhões de pessoas, o sistema eleitoral tornou-se segmentado, e isso desaguou na admissão de novas formas de legitimação entre elas a do concurso público, a da nomeação por autoridade competente e a das atribuições constitucionais explícitas ou implícitas.

    Hoje, o valor real do dinheiro que o cidadão leva no bolso, o custo da ligação telefônica e até o medicamento que pode ser comprado na farmácia são objeto de regramento por autoridades que não foram eleitas pela população, como os diretores do Banco Central, da AnatelL ou da Anvisa. E tais autoridades são pacificamente consideradas legitimadas para tanto.

    Aliás, destaque-se que, desde que observados certos limites, o poder de legislar dos juízes assume maior relevância em tempos de modificação de paradigmas sociais, como a valorização dos princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade e exercício da cidadania. De fato, na situação estará sempre presente, como ponto de partida e de chegada comuns, o desejo dos aplicadores da jurisdição judiciária pela efetiva concretização de suas obrigações constitucionais: decidir e pacificar os conflitos, com o objetivo final de implementação ou de restabelecimento de justos princípios.

    É factível, portanto, a possibilidade de os juízes, na busca de sua finalidade político-institucional, desenvolverem normatividade específica a partir de casos que lhes são submetidos, sempre que inexistente a legislação formal respectiva ou quando, malgrado existente, caiba admissão, sob inspiração direta constitucional, de uma atuação complementar ou integrativa, destinada a fazer do direito um instrumento concreto de realização da justiça.

    Autor: Leonardo Mundim

    Advogado em Brasília, professor do UniCEUB, especialista em análise da constitucionalidade pela UnB

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