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16 de Maio de 2024
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    Quais as vidas são passíveis de usar o banheiro?

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    Comemora-se hoje o Dia da Visibilidade Trans*. Não se pode deixar de destacar, nesta data, o início do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 19 de novembro de 2015, do Recurso Extraordinário nº 845.779, com repercussão geral, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, referente à possibilidade de uma pessoa transexual feminina utilizar um banheiro feminino público e de compensação por danos morais em caso de recusa.

    Os votos do Ministro Luis Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin foram no sentido de assegurar a pessoal transexual seu direito à dignidade humana ao poder escolher o banheiro que deseja utilizar e não ser impedido por terceiros. No voto do Ministro Relator se assentou que: “Em todos os casos em que não haja restrição significativa a direitos de terceiros ou a qualquer valor coletivo merecedor de tutela jurídica, o Estado deve adotar uma postura ativa contra o preconceito e a intolerância, protegendo as escolhas existenciais das pessoas, inclusive, no presente caso, por meio da afirmação do direito de serem tratadas socialmente em consonância à sua identidade de gênero.”

    No entanto, após o Ministro Barroso proferir seu voto, o Ministro Marco Aurélio indagou se a transexual do caso paradigma do Recurso Extraordinário, era de aparência feminina, pois, segundo este, se ela fosse parecida mesmo com uma mulher, dando o exemplo da Roberta Close, modelo e atriz brasileira transexual, não deveria haver resistência ao uso do banheiro por ela. O Ministro Luiz Fux, por sua vez, sustentou a possibilidade de um homem se vestir de mulher para molestar crianças no banheiro feminino.

    As afirmações dos ministros Marco Aurélio e Luiz Fux demonstram o quanto o Direito e as pessoas que o manejam precisam avançar na reflexão sobre os direitos de travestis e transexuais. Cotidianamente, observa-se, nos fóruns e tribunais, a negação do direito à identidade a essas pessoas, exigindo, por exemplo, para alterações registrais do nome, que tenham ocorrido modificações cirúrgicas ou que sua identidade seja confirmada por laudos médicos. Não se garante, assim, plenamente, a sua identidade de gênero que, pelos Princípios de Yogyakarta, é a “profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”.

    O que se discute no Supremo Tribunal Federal – o direito de travestis e transexuais utilizarem o banheiro – é ainda mais grave que a negação do direito à identidade. Não permitir que travestis e transexuais utilizem o banheiro é negar seu direito a ser, a existir no meio social, a satisfazer necessidades básicas do viver, a serem reconhecidas e reconhecidos como pessoas.

    Como bem adverte a professora Elizabete Franco Cruz[1], a problematização do uso do banheiro é sintomática de algo muito mais profundo: “No cotidiano, tematizamos seu banheiro, mas não sua expulsão velada e os resultados deste processo em sua vida, seja em termos de analfabetismo, dificuldades com a escolaridade ou ainda em relação ao que poderão dizer de si mesmas. Por que o banheiro a ser utilizado por uma travesti pode gerar mais polêmica do que o fato de que as escolas podem estar contribuindo para a exclusão (explicita ou implícita) de travestis?”.

    O Supremo Tribunal Federal decidir favoravelmente ao pedido de indenização à travesti que não pôde utilizar o banheiro conforme sua identidade de gênero, certamente, se ocorrer, será um avanço no reconhecimento de direitos dessa população. No entanto, convém questionar a profunda violência que está contida em um julgamento jurídico sobre a questão. O uso do banheiro, por qualquer pessoa, diz respeito a algo essencial em sua vida, à satisfação de uma necessidade básica. Seria possível negar algo tão fundamental a alguém?

    Nessa questão, independentemente da pessoa transexual ter ou não a aparência feminina (mulher trans) ou masculina (homem trans), mas tendo um mínimo de exteriorização da identidade de gênero, deve ser observado o respeito à identidade e à proteção da dignidade humana. Convém ressaltar que a identidade de gênero não deflui exclusivamente da conformação biológica do indivíduo, mas pode ser decorrência de um sentimento pessoal, desvinculado da anatomia corporal.

    Travestis e transexuais, assim como todas as pessoas, apresentam a necessidade de utilização do banheiro e a elas deve ser garantido esse uso, em conformidade com sua identidade de gênero, como forma de se preservar a dignidade humana dessas pessoas[2]. Impor-lhes a utilização de banheiro não compatível com sua identidade de gênero constitui conduta discriminatória e incompatível com o respeito aos direitos à diversidade, à liberdade de se autodeterminar e à identidade.

    Por outro lado, a criação de banheiro exclusivo a travestis e transexuais também constitui medida de segregação, incompatível com o respeito aos direitos humanos, submetendo esse grupo à medida constrangedora e discriminatória. Da mesma forma, não se vislumbra incompatibilidade alguma entre a utilização do banheiro, por exemplo, por mulheres travestis e transexuais e por outras mulheres e meninas, uma vez que todas são mulheres. A utilização comum do banheiro, além de ser a medida mais adequada, pois não implica em discriminação e preconceito, ainda possibilita o incentivo à promoção da diversidade. Incentiva que mães, ao se depararem com travestis e transexuais, se questionadas por suas filhas, digam-lhes que elas também são cidadãs e ensinem que a sociedade é plural e diversa, conscientizando-as sobre a necessidade de respeito à diferença.

    Nesse sentido, o voto do relator, Ministro Luís Roberto Barroso, no RE nº 845.779, assevera que: “Os transexuais têm direito a ser tratados socialmente de acordo com sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público”. Infelizmente, o Ministro Luiz Fux solicitou vista dos autos para analisar o processo, paralisando a análise do tema pela nossa Suprema Corte, alegando em síntese, além do já mencionado, um “desacordo moral razoável sobre o tema”.

    No recente livro da filósofa Judith Butler, "Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?", ela critica o fato de que os enquadramentos normativos delimitam que “certas vidas são consideradas merecedoras de existência, de proteção e passíveis de luto e outras não” e definem quem conta como “quem”.

    Em analogia à pergunta de Judith Butler sobre quais vidas são passíveis de luto, pode-se questionar: quais as vidas são passíveis de usar o banheiro? Parece-nos que as situações se assemelham, pois ter negada a possibilidade de realizar algo tão fundamental como o ato de ir ao banheiro é similar a uma morte em vida. Além disso, será para que o Direito essas pessoas não estão realmente mortas já que pouco é dito sobre elas, nesse campo, e quando se diz é para estigmatizar e negar direitos?

    Vanessa Alves Vieira é Defensora Pública do Estado de São Paulo, coordenadora do Núcleo de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública, integrante da Comissão de Diversidade Sexual da ANADEP, mestranda em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo.
    Vitor Eduardo Tavares de Oliveira é Defensor Público do Estado do Maranhão, titular do Núcleo Regional de Imperatriz, membro da Comissão de Diversidade Sexual da ANADEP, pós-graduado pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e pela UNITAR (ONU).
    [1] Banheiros, Travestis, Relações de Gênero. Revista Psicologia Política, v. 11, p. 73-90, 2011. [2] Ressalta-se a crítica sobre a necessidade de tal “permissão” elaborada pela professora Maíra Zapater sobre o tema
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