Sentenças padronizadas
Por Dayse de Vasconcelos Mayer,
professora de Direito em Pernambuco
Fernando Pessoa escreveu sobre a véspera do não partir nunca. Konstantinos Kaváfis centrou a sua atenção na partida para Ítaca. Manuel Bandeira foi embora pra Pasárgada.
Optei pelo Mato Grosso do Sul aonde cheguei à Praça dos Três Poderes para ingressar no Tribunal de Justiça o prédio mais extenso na zona de preservação ambiental. Na conversa com um grupo de magistrados teci considerações sobre o sistema de padronização de sentenças adotado pela maioria dos Estados, incluindo o MS. Discordei desse estado de morbidez que adentra as unidades da federação: o magistrado quer-se também criador do direito.
Considerava inadmissível que as sentenças já estivessem previamente prontas ou redigidas: apenas as partes têm seus nomes substituídos no computador. Nem mesmo numa perspectiva positivista exacerbada seria admissível tamanha insensatez. Complementei que a lei se ajusta ao caso concreto e que cada caso é específico.
A velha máxima de Montesquieu de que o juiz é a ´bouche de la loi´ (ou boca da lei) já estava ultrapassada. A vida jurídica exige interpretação e aplicação de fórmulas legais ao caso concreto. A prestação jurisdicional deve ser eficiente e nesse sentido criativa, cabendo ao magistrado atender cada caso com as suas singularidades.
Os meus interlocutores escutaram silenciosamente. Finalmente romperam a couraça: "Concordamos, só em parte, com a sua tese. Consideramos a sua visão excessivamente otimista. Não se ajusta aos novos tempos. O juiz atual torna-se mero produtor de sentenças ou um artefato mecânico. Está atrelado a números, percentuais, curvas e gráficos de produção".
Por outro lado, a sociedade banalizou a função judicial. Estamos mergulhados em questões comezinhas em detrimento das ações que mereceriam maior atenção.
A questão grave é que supusemos que o advento da sociedade técnica geraria espaços de tempo livre, facilitaria o trabalho humano, implicaria maior eficácia das decisões, estimularia maior aproximação entre os homens. Nada disso sucedeu.
No âmbito do Judiciário, os magistrados foram convertidos em máquinas. O CNJ impõe que as fábricas operem ininterruptamente. Quem não se ajusta a tal realidade é severamente punido com a não promoção por merecimento.
Temos um amigo que atua numa vara de crimes difusos e coletivos. É obrigado a estudar o processo e só emitir a sentença após três meses de estudo. Enquanto nós damos conta de cerca de 300 processos, ele fica com 10% dessa cota. Enquanto somos promovidos, ele fica na geladeira.
É justo? Respondi que essa era a outra face da realidade, mas a vida é o exercício constante do bom senso, sabedoria e razoabilidade. É preciso definir a capacidade média de cada pessoa para que ela se ajuste a certas realidades. Infelizmente, parte dos magistrados esqueceu as palavras celeridade e justiça. A opção pela alternativa massificante implicou o apoucamento do consumidor dos serviços ofertados pelo Judiciário. Até porque o que é pouco significativo para o juiz pode ser muito relevante para a parte.
O centro de gravidade está no sistema e na educação para o respeito ao outro. A questão agora é reequacionar objetivos nesta caminhada trôpega e acidentada.
dayse@hotlink.com.br
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