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2 de Maio de 2024
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    Uma leitura feminista do austericídio

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    “Durante a minha fala, mil crianças morrerão de doenças facilmente preveníveis, e quase duas mil mulheres morrerão ou ficarão seriamente incapacitadas na gravidez ou no parto por falta de cuidados e medicamentos básicos. A UNICEF estima que, para superar essa tragédia e assegurar o acesso de todos aos serviços sociais básicos, seria necessário nada mais que a quarta parte dos gastos militares anuais dos países ‘em desenvolvimento’, cerca de 10 por cento dos gastos militares norte-americanos. É sobre o pano de fundo dessa realidade que qualquer discussão séria sobre a liberdade humana deve ser levada acabo.” (Noam Chomsky, em O lucro ou as pessoas?[1])

    A nossa coluna hoje abre espaço para um tema tão relevante quanto invisível, consistente na desigualdade de impacto de políticas econômicas sobre homens e mulheres, sobretudo das políticas de austeridade. O texto integral, acessível aqui, foi publicado na Revista de Economia Crítica em 2013 e a decisão de trazer partes dele às nossas leitoras e aos nossos leitores decorre da sua atualidade à conjuntura nacional e mundial, o quer e força a precisão das suas análises e, de forma preocupante, atesta a ausência de superação da realidade constatada.

    A autora do artigo que teremos aqui em síntese é a Professora Doutora Lina Gálvez Muñoz, catedrática de História e Instituições Econômicas do Departamento de Economia, Métodos Quantitativos e História Econômica da Universidade Pablo de Olavide em Sevilha-Espanha, na qual também dirige o GEP&DO (Observatorio de Género de Economía, Políticas y Desarrollo) e coordena dois mestrados universitários, em Gênero e Igualdade e em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento, sendo também a responsável pela linha de investigação em Gênero e Igualdade do Doutorado de Ciências Sociais e do grupo de investigação EcoEcoFem (Economía Ecológica, Feminista y Desarrollo). Formada nas Universidades de Sevilla, Lyon, London School of Economics e no Instituto Universitario Europeo de Florencia, nesta defendeu sua tese de doutoramento intitulada “Família y mercado. El género em El proceso de industrialización de la fábrica de tabacos de Sevilla, 1887-1945”.

    Também já foi professora da Universidade de Reading (Inglaterra), da Universidade de Sevilla (Espanha), da Universidade Carlos III (Espanha) e professora visitante na Universidade de Oxford (Reino Unido) e segue proferindo conferências e ministrando aulas em várias universidades europeias e americanas. É, atualmente, vice-presidenta da Associação de Economia Crítica da Junta Diretiva da Associação de Mulheres Investigadoras e Tecnólogas (AMIT), além de atuar em vários conselhos e comitês de cunho científico e de fazer parte de redes de investigação em vários países, também colaborando com organizações e instituições nacionais e internacionais, inclusive das Nações Unidas.

    Dirige, ainda, vários projetos de investigação científica, com ênfase nas mudanças nos mercados de trabalho e a repartição de tempos e trabalhos por razões de gênero– incluindo o trabalho não remunerado – e no bem-estar, especialmente das crianças, além de se dedicar à análise das crises econômicas e dos efeitos de gênero das políticas de austeridade. Por sua atuação em diversas frentes, conforme seu currículo, acessível aqui, já recebeu diversos prêmios e, em junho de 2018, assumiu a Consejería de Conocimiento, Investigación y Universidad da Junta de Andaluzia. Lina Gálvez tem uma filha de 7 anos.

    Pelo formato da nossa coluna, do artigo original, tiveram de ser suprimidas as notas explicativas e extensos e importantes trechos, sobretudo referentes à generalidade de políticas de austeridade adotadas como suposto enfrentamento a crises econômicas, suas justificativas e consequências gerais, para que pudessem ser priorizados os trechos que abordam as consequências dessas políticas sobre a vida das mulheres, desde a redução e precarização dos postos de trabalho até a aposentadoria com menor renda, passando pela iníqua re-privatização das funções de cuidado não remuneradas e pelo incremento da exposição à violência machista, inclusive simbólica.

    Assim é que, depois de nos emocionarmos com o texto da chegada da Vitória, amorosamente concebido pelo nosso Coletivo e adotado pela nossa querida Uda Schwartz[2], e de antes termos sido brindadas com a apaixonante história da nossa recém-nascida mãe e quase declarada pai[3], amadíssima NoNo, fica aqui o convite para uma leitura densa, mas com certeza muito relevante no cenário atual de ofensiva contra os direitos fundamentais, sobretudo os das mulheres, conforme a seguir a nossa convidada demonstra com detalhes:

    A austeridade é um vocábulo que se consolidou na maior parte da economia mundial como política, já não contra a crise, mas de caráter estrutural, apesar de estar claramente mal utilizado pois, como veremos, na prática não implica em nenhuma das conotações estritas de seu significado. Por exemplo, porque somente se traduz no corte de alguns tipos de gastos públicos e não de todos, como os financeiros, ou porque não é capaz de reduzir definitivamente o montante da dívida dos Estados, que é o que aparentemente persegue.”

    Neste artigo, realiza-se uma visão feminista da austeridade para completar e complexificar os resultados e as hipóteses dos recentes estudos sobre o tema, e para avançar nas alternativas inclusivas e igualitárias que a cidadania necessita para conseguir uma economia, e um mundo, mais justos e sustentáveis. Isso se faz a partir de uma visão feminista por duas razões. Primeiro, porque permite analisar a situação atual no longo prazo e não como um acidente conjuntural imprevisível e irremediável. A economia feminista vem há anos analisando as consequências das crises financeiras, as políticas neoliberais, os planos de ajuste, os tratados de livre comércio ou do modelo de apropriação capitalista no bem-estar de mulheres e homens e na igualdade de gênero. Por isso, temos laboratório suficiente para poder realizar, agora em relação à crise que estamos vivendo, uma leitura feminista do austericídio e alertar sobre o resultado desigual ao qual a austeridade nos empurra.(…)

    De fato, as crises econômicas sempre tiveram uma importante conotação de gênero. Estas crises, como a presente crise financeira e econômica iniciada em 2007, não apenas têm impactos completamente desiguais em mulheres e homens, como também surgem de processos econômicos desiguais em termos de gênero. Nem as mulheres estavam presentes nos postos de tomada de decisões no setor financeiro nem as finanças públicas ou privadas se distribuíram equitativamente, deixando insatisfeitas as necessidades das mulheres como produtoras ou cuidadoras.

    Como argumenta Elson (2010), o grau em que as crises econômicas e as respostas às mesmas reforçam, destroem ou questionam as normas de gênero existentes é crucial e deve ser analisado a fundo. Toda análise sobre uma crise econômica deve examinar os impactos da perda do emprego e outros impactos provocados pelas crises na economia do cuidado, e questionar se as respostas às crises abordam as desigualdades sistêmicas de gênero ou unicamente os sintomas gerados pelas próprias crises. Ou como veremos aqui, podem estar forjando uma nova ordem de gênero.

    E, em segundo lugar, porque historicamente as mulheres têm sido peças-chave nas estratégias de controle social, mas também peças-chave na resistência e luta pela liberdade e pela justiça. Nos últimos dois séculos, o feminismo fez contribuições essenciais à democracia real e à ideia e à prática da justiça, também a econômica. Ademais, essas contribuições não apenas se desenvolveram a partir do feminismo acadêmico, mas também foram básicas as experiências e propostas dos movimentos de mulheres como propostas alternativas ao capitalismo patriarcal. Como afirma Antonella Picchio (1999), as mulheres têm uma singular capacidade para modificar visões e perspectivas teóricas e para elaborar as ferramentas com as quais abordar temas cruciais no mundo real no qual vivemos. (…)

    A agora chamada austeridade não é mais que uma nova denominação das velhas políticas deflacionistas que vêm se desenvolvendo desde os anos 80 como suporte da resposta neoliberal à grande crise estrutural que se desencadeou nas economias capitalistas inclusive já antes do começo dos anos 70 do século passado. Isto é, um conjunto de medidas e estratégias regulatórias e de política econômica encaminhadas, em última instância, para produzir o ajuste estrutural mediante a redução de salários, preços e gasto público. (…)

    Leia também:

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    A contrarreforma na perspectiva da mulher trabalhadora: quando reformar significa precarizar

    Trabalho da mulher sob o olhar da Justiça do Trabalho

    Com a austeridade, isto é, com os cortes de gasto social e com a filosofia (…) que leva consigo, se busca uma re-privatização dos serviços de cuidados que vai além da simples transferência de ativos, empresas ou serviços do setor público ao privado. Supõe algo mais e muito mais transcendente, a transferência da responsabilidade pública à privada, a redução da esfera pública e, portanto, o desaparecimento dos espaços de deliberação e negociação coletivos e de controle social sobre as decisões políticas, ou seja, a negação ou o desmantelamento segundo Habermas (Diez, 2011) da democracia, inclusive nos seus sentidos mais elementares, privatizando-se assim o poder de decidir sobre a pólis, sobre a comunidade e fazendo que desapareça o poder da pólis sobre a política.

    No universo deste tipo de políticas de austeridade, que não apenas representam recortes quantitativos de gasto, senão a redefinição dos papeis pessoais, grupais e sociais, é onde se vai redefinir a hierarquia de gênero para que os problemas que possam suscitar passem a ser assumidos como diferenças singulares e não como o resultado de discriminações estruturais, o que significa que sua resolução simplesmente requer acordos individuais e não políticas no seu sentido convencional, isto é, normas gerais e de cumprimento obrigatório (Michalitsch, 2011). O que possa ter a ver com feminismo ou a reivindicação de gênero somente será mera veleidade e as políticas de igualdade, um puro subproduto das etapas de bonança e material de demolição das de recessão que a deflação continuada converterá no estado natural da economia capitalista. (…)

    E é por isso que a maior parte das mulheres está resultando triplamente prejudicada por essas políticas. Por um lado, porque seu efeito de redução do ingresso as afeta em maior grau, dado que as mulheres individualmente ou os lares que comandam estão em maior medida concentrados nos níveis já, por si, de mais baixo ingresso. Por outro, porque ao basear-se na redução do gasto público desaparecem ou debilitam os serviços de que são na maior medida usuárias ou potenciais substitutas em sua provisão. Por último, porque tudo isso supõe uma reprivatização dos cuidados, que pode supor uma relativa “volta a casa” como ferramenta chave de submissão e controle social.(…)

    Para organizar os múltiplos impactos de gênero que a crise está tendo, os dividimos em quatro aspectos:

    A intensificação do trabalho das mulheres

    Um dos efeitos que estão sendo palpáveis nesta recessão é precisamente o primeiro fato estilizado encontrado por Galvéz e Rodríguez (2011) em crises precedentes, o da intensificação do trabalho das mulheres tanto relativo à sua incorporação ou manutenção no mercado de trabalho, como no relativo ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado.

    De forma global e agregada, parece predominar uma maior participação das mulheres no mercado laboral e assim se pode perceber que a “brecha” de gênero na atividade se reduziu na União Europeia de 15,7 em 2007 a 13,5 em 2012. Bhalotra e Umaña-Aponte (2009) mostram que ainda que, em nível mundial, uma média de 10 por cento de queda no PIB do país se associa com o aumento de 0,34 pontos na participação das mulheres na força laboral, existe uma considerável heterogeneidade nas respostas das mulheres no mercado laboral dependendo de diferentes variáveis como, por exemplo, seu nível educativo, classe social ou idade (Sawargal, 2011). Enquanto o incremento de participação parece ser mais forte para os lares de baixos ingressos, as mulheres com baixo nível educativo e as mulheres mais velhas, o efeito do “trabalhador desanimado” parece ser maior no caso das mulheres com nível educativo mais alto e mais jovens (Addabbo, Rodríguez e Gálvez, 2013).

    Ao incremento da atividade há que somar o aumento da economia informal e do trabalho doméstico e de cuidado não remunerado, pois os lares substituem o recorte de gasto público em serviços sociais e de cuidados mediante um incremento no trabalho não remunerado das mulheres (Harcourt, 2009). Na ausência da corresponsabilidade entre homens e mulheres, recaem sobre estas últimas todos os trabalhos vinculados aos serviços que o corte social fez desaparecer, deteriorar sua qualidade ou aumentar seu preço reduzindo sua acessibilidade – ainda que obviamente também haja diferenças notáveis entre as mulheres ao terem distintas idades, pertencerem a distintos estratos sociais, territórios, etc.

    As políticas de austeridade estão prolongando e aprofundando os cortes em bem-estar das décadas passadas, afetando as pessoas com menos renda que são economicamente mais débeis e mais dependentes dos gastos sociais e àquelas, as mulheres, que são substitutas “naturais” dos serviços de cuidado, educação ou saúde que proviam ou facilitavam os estados de bem-estar.(…)

    Os serviços públicos estão sendo diminuídos ou encarecidos e, como consequência, o trabalho de cuidados está sendo transferido, por um lado, ao setor informal da economia que implica mais trabalho feminino precário e com baixos salários e sem previdência social e, por outro, aos lares, incrementando o trabalho não pago das mulheres. E à deterioração ou encarecimento dos serviços sociais haveria que adicionar o efeito que a queda das rendas familiares também tem na hora de promover o trabalho doméstico e de cuidados ao diminuir os bens e serviços a que as famílias podem acessar no mercado (Galvéz e Matus, 2010). Ademais, este aumento da carga de trabalho não remunerado para as mulheres supõe também uma diminuição de oportunidades, ao dispor de menos flexibilidade, de menos mobilidade e de menos tempo para formar-se, reciclar-se, buscar ativamente emprego ou envolver-se na luta política ou sindical que assegure suas condições laborais e o exercício efetivo de seus direitos, e também de seu bem-estar, liberdade e tempo disponível. (…)

    Mas se o Estado pode externalizar as responsabilidades previamente adquiridas com relação ao cuidado é porque se sabe que as famílias – as mulheres –, as assumirão – ou as aumentarão porque nunca deixaram de assumi-las (Ezquerra, 2011).

    A privatização da responsabilidade sobre a vida

    (…) Transfere-se a responsabilidade à cidadania, reduzindo a esfera política e o controle e a negociação democrática, assistindo a uma verdadeira privatização da política. Isso é o que leva à redefinição das hierarquias e dos modos de afrontar os conflitos que busca a visibilização da desigualdade de gênero que se havia conseguido nos últimos anos e que também tende a obscurecer-se com as políticas de austeridade.

    É nesta linha na qual se deve entender o fomento do autoemprego e a “empresarialidade” no mundo da austeridade. São as mesmas autoridades que impõem os cortes as que apresentam a empresarialidade e o autoemprego como uma saída ao alcance de todos e todas para sair do desemprego “voluntário” em que podem se encontrar. A promoção do empreendimento e do autoemprego que se está levando a cabo na atualidade não supõe senão a transferência de responsabilidades ao trabalhador e à trabalhadora, desdesenhando-se ou inclusive desaparecendo assim o papel do empresariado como contraparte com quem se deveriam negociar as condições de trabalho e de vida ao ficar fora da cobertura da legislação trabalhista.

    No caso das mulheres, este discurso é especialmente perverso por duas questões. Primeiro, porque a intensificação do trabalho das mulheres e os efeitos das políticas públicas cegas ao gênero diminuem as possibilidades de uma pessoa ser contratada por um terceiro em um dado momento. Segundo, porque se faz sem levar em conta as dificuldades que a população tem para acessar ao crédito e muito especialmente as mulheres.

    Já antes da explosão da crise financeira, o acesso ao crédito pelas mulheres era muito limitado (…) Ainda que talvez o caso mais ilustrativo das restrições que têm as mulheres na hora de acessar a um crédito foi a estratégia que seguiram os bancos para endossá-las a empréstimos hipotecários subprime a alto juros utilizando a linguagem do “empoderamento” para que as mulheres que nunca haviam podido acessar a casa própria por ter somente uma vinculação precária com o mercado de trabalho, ingressos instáveis e insuficientes e sem ativos, pudessem finalmente fazê-lo. Entretanto, o fizeram com juros maiores que os homens, o que explica que dois terços das hipotecas executadas pelos bancos estadunidenses durante a crise dos subprime foram de mulheres e, em 90% dos casos, subprime (…)

    Por outro lado, as possibilidades de emprego das mulheres diminuem ao mesmo tempo que se intensifica seu trabalho e se reforçam os estereótipos tradicionais de gênero pelos quais a atividade prioritária e natural das mulheres é o lar e a família, e sua vinculação com o mercado de trabalho é auxiliar, como também o são seus salários à economia familiar. E também porque as políticas públicas favorecem o emprego masculino através do que Teresa Torns chama de tolerância social ao desemprego feminino. (…)

    E os cortes de gasto que se realizam na esteira da austeridade, ao concentra-se no setor público e no gasto social, não apenas estão minando a quantidade e a qualidade dos postos de trabalho dos setores feminizados, mas também hipotecando as possibilidades das mulheres –, menos as de rendas mais elevadas –, de poder ofertar seu trabalho com a mesma liberdade que os homens. O que não apenas afeta suas possibilidades presentes de ganhar um salário e ser economicamente independentes senão também as suas possibilidades de sobrevivência digna no futuro através do recebimento de uma pensão que possa garantir estândares mínimos de vida e não associar as mulheres mais velhas com a pobreza ou com o risco de ser pobre.

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    Nesse sentido, havia que adicionar também as reformas das pensões que vão na linha de transferir a responsabilidade do Estado ao indivíduo (…) E sucede que os sistemas de pensão podem reproduzir, exacerbar ou mitigar as desigualdades de gênero que se produzem nos mercados, mas não podem eliminar por completo a “brecha” que se produz devido às career break. Em qualquer caso, qualquer modelo que se aproxime da capitalização frente à repartição ou que se baseie na contribuição das empresas pode implicar ainda maiores desigualdades agravando ainda mais a situação de risco de pobreza para as mulheres mais velhas.

    A privatização parcial ou total dos sistemas de previdência não favorece as mulheres por razões diversas. Porque costumam fazer investimentos mais seguros que os homens, o que lhes leva a sacrificar mais recursos presentes. Também porque têm que gerar mais poupança que os homens para enfrentar a velhice. Ou seja, têm que poupar durante mais tempo e em maior quantidade que os homens porque seus fundos de poupança crescem mais lentamente. E, em geral, porque as mulheres, além de menos ingressos, têm pautas de poupança distintas: costumam dar prioridade ao consumo familiar em detrimento ao seu próprio (Gálvez y Torres, 2010).

    Por outro lado, as dificuldades de acesso ao crédito das mulheres, unidas ao deterioro das oportunidades de incorporação ao mercado de trabalho, se traduzem em um fomento do autoemprego precário ao ter muito menos possibilidades que os homens de encontrar financiamento para seus projetos. E isso, unido às privatizações e às reformas trabalhistas que desequilibram o poder contratual entre empresariado e trabalhadores e trabalhadoras, faz com que se reforcem os estereótipos de gênero e a vinculação, uma vez mais, da mulher com o lar, o que as faz candidatas idôneas para formar parte do precariado.

    O “precariado”

    A desregulação laboral na precarização do emprego, especialmente feminino, diminui as possibilidades de integração na previdência social, aumentando o risco social das mulheres, sobretudo tendo em conta que a maioria dos estados de bem-estar europeus baseiam seus benefícios na participação no mercado de trabalho e não em modelos universalistas. Neste sentido, as desigualdades de gênero que observamos no mercado de trabalho (diferenças nos ingressos e trabalhos “atípicos”) são reforçadas pelos modelos de bem-estar, assim como pela segregação ocupacional que pode valer para proteger ou desproteger trabalhadores masculinos ou femininos dependendo de quais sejam os setores mais castigados pela crise em cada lugar.(…)

    De fato, o incremento do subemprego indica que os empregos a tempo parcial que estão sendo criados estão vinculados com a precariedade e com as limitações no desenvolvimento de uma carreira profissional. E que os empregos que se criarão nos países com altos níveis de desemprego, que ademais empreenderam reformas laborais flexibilizadoras, podem ser em grande medida com essas características, o que conhecemos como mini-jobs. (…) A isso haveria que somar que as mulheres são menos elegíveis ou eleitas para beneficiar-se das ajudas públicas relativas a programas de formação, aprendizagem, etc… dificultando o processo de busca de emprego.

    Em todo o mundo, o tempo parcial é uma modalidade de emprego feminizado. Este aumento no emprego a tempo parcial das mulheres agravará a desigualdade nas rendas e nos riscos de estar em uma situação de pobreza.

    Estereótipos e outras desigualdades

    Todos os riscos previamente comentados vão unidos, ademais, a um tratamento essencialista da mulher como mãe que a separa do objetivo de que as mulheres sejam tratadas como fins em si mesmas e não como meios para outros fins. Este é o substrato no qual se constrói a inferioridade das mulheres e no qual encontra terreno fértil a violência machista, que segue sem desaparecer e cuja luta também sofre recortes neste modelo de mal chamada austeridade.

    E é importante adicionar que as menores oportunidades laborais vão necessariamente unidas a uma perda de autonomia financeira das mulheres que não somente diminui sua liberdade senão também o investimento nas futuras gerações em dois aspectos. Por um lado, os dados de emprego e fecundidade na União Europeia mostram uma clara correlação positiva entre taxas de atividade feminina e taxas de fecundidade. Enquanto que a Espanha com uma das taxas de atividade feminina mais baixas (53,41%), também mostra uma das taxas de fecundidade menores (1,35 crianças por mulher em idade fértil), o que supõe uma ameaça muito seria para a taxa de dependência e sustentabilidade social. Por outra parte, a pobreza que mais aumentou na Espanha durante a crise foi a infantil, que ademais é a mais grave porque as capacidades que perdem os meninos e meninas durante sua infância em relação ao seu acesso à saúde, educação, nutrição, lazer, etc., não serão recuperadas na idade adulta, com a conseguinte perda de bem-estar individual e coletivo.

    Pois bem, todos os estudos demonstram que as condições das crianças e sobretudo das meninas melhoram quando as mães têm ingressos próprios, porque as mulheres têm pautas de consumo menos egoístas e o consumo familiar adquire maior importância que no caso dos homens. Por isso, privar as mulheres de ingressos próprios decentes tem incidência direta no bem-estar da infância (Gálvez e Rodríguez, 2013).

    O reforço dos estereótipos de gênero que comentamos não somente terá repercussões nas mulheres que decidem ter uma vinculação nula, temporal ou parcial com o mercado de trabalho para ocupar-se de maneira prioritária ao cuidado da família – dependentes e independentes –, senão também no conjunto das mulheres, ao atuar os estereótipos unidos às características que se consideram inatas ao grupo e não às características individuais de cada uma das pessoas que o compõem. A realidade alimentará o estereótipo e o estereótipo condicionará fortemente a realidade. Ainda que também os estereótipos de gênero estarão, como agora, cruzados por outras desigualdades e por outras necessidades, assim como por outras realidades.

    Por exemplo, a volta “parcial” ao lar que comentamos que incentivam as políticas de austeridade não funcionarão de igual maneira com todas as mulheres, nem em todos os países, devido à diferente especialização produtiva e às qualificações adquiridas pelas mulheres frente aos homens. É, portanto, possível que os efeitos desiguais de gênero que observamos em crises precedentes em que foram implantadas políticas deflacionistas se deem de forma diversa na atual crise econômica. (…)

    Em definitivo, se não houver uma mudança de modelo, sairemos desta crise com mais desigualdade de gênero, mas também com maior desigualdade entre as próprias mulheres, o que dificultará o estabelecimento de uma agenda de mulheres e feminista. Não em vão, o modelo neoliberal se sustenta no fortalecimento da segregação e da fragmentação social e na ruptura de laços de socialização e de encontro que agudiza os laços hierárquicos e debilita a solidariedade e a igualdade, o que, ao final, reforça o regime patriarcal e a discriminação e dependência que causa.

    Resta o agradecimento sororo à Lina Gálvez por trazer à luz um tema de extrema importância, com elementos consistentes, seguramente necessários no enfrentamento ativo e altivo das adversidades impostas às mulheres de hoje e de amanhã, inclusive para a construção de um mundo no qual não sejamos diferenciadas pelo menor acesso aos bens necessários a uma vida digna, mas pela identidade autêntica construída pelo voo liberto da nossa criatividade,para que nele vivam sem qualquer tipo de opressão a filha da Lina, as filhas da Uda, a filha da NoNo e da Ge, a minha filha, as filhas de todas as Sororas e as filhas de todas as Sra. Brasileira[4] e das demais mulheres do mundo.

    Lúcia Rodrigues de Matos é Juíza do Trabalho Substituta do TRT-4 e membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD). É mestranda em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento na Universidade Pablo de Olavide, de Sevilha, enquanto aprende, há 11 meses, a ser mãe da Laira Paloma (de 6 anos) e do Raul Gustavo (de 4 anos), com a inspiração e a ajuda de todas as Sororas.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/uma-leitura-feminista-do-austericidio/621634130

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