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16 de Junho de 2024
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    Valor dos Tratados Internacionais: Do Plano Legal ao Ápice Supraconstitucional? (Parte III)

    há 15 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES (www.blogdolfg.com.br)

    Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela USP. Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

    VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI

    Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Mestre em Direito Internacional pela UNESP, campus de Franca. Professor Adjunto de Direito Internacional Público na Faculdade de Direito da UFMT.

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Valor dos Tratados Internacionais: Do Plano Legal ao Ápice Supraconstitucional? (Parte III). Disponível em http://www.lfg.com.br. 14 de agosto de 2009.

    (d) tratados com valor supraconstitucional: essa corrente ( supraconstitucionalidade dos tratados) sempre contou com pouca adesão dos doutrinadores brasileiros. Mas é chegado o momento, de acordo com nossa opinião, de um aprofundamento no tema.

    Em primeiro lugar faz-se necessário enfatizar que tanto a doutrina estrangeira quanto a nacional já defenderam o status supraconstitucional dos tratados de direitos humanos, não sendo esta tese (portanto) uma novidade em sede doutrinaria.

    Para alguns autores, como André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (convenção esta já aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro, pelo Decreto Legislativo nº 496/09, mas ainda pendente de ratificação), ao dispor que uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado, teve a intenção de subordinar todo o direito interno dos Estados à observância dos tratados internacionais, inclusive as suas Constituições, dando a todo o Direito Internacional convencional grau supraconstitucional na ordem interna dos Estados onde ela viesse a vigorar ou por ratificação ou como costume internacional [grifo nosso].[ 1 ]

    No Brasil, a tese da supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos foi defendida pelo saudoso Prof. Celso de Albuquerque Mello, que se dizia ainda mais radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a norma constitucional, mesmo naquele caso em que uma norma constitucional posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada.[ 2 ]

    Ao que nos parece, a distinção central que devemos fazer doravante (e não temos conhecimento de que isso tenha sido feito antes) é a seguinte: de um lado acham-se os tratados de direitos humanos (ou normas dessa natureza) centrífugos ; de outro estão os tratados de direitos humanos centrípetos . Os primeiros (centrífugos) naturalmente possuem natureza supraconstitucional; os segundos, em regra não, excepcionalmente sim (como veremos em seguida).

    Tratados internacionais centrífugos: os primeiros (tratados ou normas de direitos humanos centrífugos) são os que regem as relações jurídicas dos Estados ou dos indivíduos com a chamada jurisdição global (Justiça global). Estão sendo nominados por nós de centrífugos exatamente porque são tratados que saem (ou fogem) do centro , ou seja, da jurisdição comum, normal. Eles retiram o sujeito ou o Estado (e a relação jurídica subjacente) do seu centro, isto é, do seu território ou mesmo da sua região planetária. São tratados que regulam situações ou relações que fogem dos limites da jurisdição doméstica ou regional. Tratados ou normas centrífugos são os que conduzem o Estado ou o sujeito (assim como a relação jurídica subjacente) a um órgão jurisdicional global (não estamos falando dos órgãos regionais: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Corte Interamericana etc., mas sim repita-se de um organismo com atuação global ).

    Nesse patamar jurisdicional global contamos com vários órgãos supranacionais relevantes, destacando-se especialmente a Corte Internacional de Justiça (da ONU, reinstituída em 1945), o Tribunal Penal Internacional (criado pelo Estatuto de Roma de 1998 e que entrou em vigor em julho de 2002) e os Tribunais ad hoc das Nações Unidas (Tribunal para a ex-Iuguslávia, para Ruanda, para Serra Leoa, para Camboja etc.).

    Esses tratados ou normas (centrífugos) naturalmente possuem o status supraconstitucional, precisamente porque regem relações do Estado ou do indivíduo com os órgãos da Justiça global. Exemplo marcante: Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional.

    Para nós, esse tratado é centrífugo e conta com natureza supraconstitucional (ou seja: está acima das Constituições dos Estados subscritores do seu conteúdo). Partindo-se dessa ideia, vê-se que não há que se falar em conflito entre tal tratado e a constituição brasileira. Não importa se o tratado de Roma é benéfico ou maléfico (frente à Constituição brasileira). Fundamental é o seguinte: os objetos regidos por eles são distintos. O Tratado de Roma rege as relações supranacionais do indivíduo ou do Estado (relações com o TPI). A Constituição rege as relações internas (domésticas) do indivíduo e do próprio Estado. Quando os objetos são distintos, cada área tem seu conjunto normativo específico. Vigora o princípio da esfera reservada de competência. No plano das relações supranacionais, valem as regras específicas desse setor (Tratado de Roma, Carta da ONU etc.).

    Não seria possível (e tampouco jurídico) entender que um instrumento internacional como o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, devesse se submeter às regras constitucionais dos seus respectivos Estados-partes. Quando um Estado assume compromissos mútuos em convenções internacionais de caráter centrífugo ele auto-restringe sua soberania em prol da proteção da humanidade como um todo (essa ideia tem fundamento jurídico no art. 27 da Convenção de Viena). Esse interesse global é sempre supraconstitucional (por natureza) por compor-se de valores que não se submetem a qualquer ato estatal. Aliás, no momento em que um Estado subscreve um tratado desse tipo, está abrindo mão de sua soberania.

    Tratados centrípetos: os tratados ou normas de direitos humanos centrípetos são os que cuidam das relações do indivíduo ou do Estado no plano doméstico (interno) ou regional. Não retiram o indivíduo ou o Estado do seu centro (do seu território ou da sua região planetária, dos seus limites jurisdicionais: região interamericana, v.g.). A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, v.g., conta com essa natureza. Ela está voltada para o plano interno (doméstico) ou, no máximo, para a respectiva região planetária (sistema interamericano de direitos humanos).

    Em regra, os tratados e normas centrípetos não possuem valor supraconstitucional. São normas de status constitucional (tese do Min. Celso de Mello, Valério Mazzuoli etc.) ou supralegal (tese do Min. Gilmar Mendes etc., que foi vencedora no RE 466.343-SP).

    O que importa notar, no que tange aos tratados centrípetos, é que eles se voltam à proteção do indivíduo dentro do próprio Estado ou , em última análise, dentro da própria região geográfica onde esse Estado se localiza (a região interamericana, v.g.). Por acrescentarem ao plano do direito interno vários direitos, muitas vezes, não consagrados pelas Constituições nacionais, tais tratados centrípetos não podem jamais ser equiparados à legislação ordinária. Quer se adote uma tese (a do Min. Celso de Mello) ou outra (a do Min. Gilmar Mendes), quer se considere o que consta do art. , , da CF, o que realmente importa é que tais tratados (sobre direitos humanos) valem mais do que a lei, e as normas de direito interno que violem qualquer dos seus dispositivos são inválidas (não obstante poderem ser vigentes, porque eventualmente de acordo com a Constituição).

    Exceção importantíssima: a exceção a essa regra dos tratados centrípetos reside na norma internacional de direitos humanos mais favorável (ou mais protetora ) ao gozo das liberdades e que conflita com aConstituiçãoo de um determinado Estado (esse é o caso da prisão civil do depositário infiel). A norma internacional (Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 7º, 7), é mais favorável que as normas internas brasileiras, sejam legais, sejam constitucionais.

    Nesse caso, essa norma (mais favorável) passa a ter caráter supraconstitucional por ser mais benéfica (mais protetora) ao ser humano. Isso se dá por força do princípio internacional pro homine (que manda incidir em matéria de direitos humanos a norma mais favorável ao ser humano). Os objetos (da Constituição e da Convenção Americana) são idênticos: elas existem para reger as relações do Estado e dos indivíduos no plano interno do país (no plano doméstico) ou no plano regional. Quando os objetos são idênticos, em matéria de direitos humanos, os princípios regentes (dos conflitos de normas) não são os tradicionais (hierarquia, posterioridade e especialidade), sim, os específicos dessa área: (a) vedação de retrocesso e (b) princípio internacional pro homine .

    Para nós, os métodos tradicionais de solução de antinomias encontram-se superados quando em jogo matéria afeta aos direitos humanos. Se tais critérios (hierárquico, da especialidade e o cronológico, também conhecido como da posterioridade) ainda valem para resolver antinomias surgidas nos conflitos de leis comuns ou conflitos internos, a mesma coisa não se pode dizer quando a antinomia envolve normas de direitos humanos, uma vez que a lógica do sistema (interno ou internacional) de proteção desses mesmos direitos não é a mesma que a existente em relação às questões comerciais, financeiras, técnicas etc.

    Assim, em conclusão, de acordo com nosso ponto de vista, os tratados internacionais de direitos humanos centrífugos (Tratado de Roma, v.g.) assim como os tratados ou normas internacionais (de direitos humanos) centrípetos mais favoráveis (quando comparados com a Constituição de cada país) possuem valor supraconstitucional.

    (e) os tratados de direitos humanos valem mais do que a lei ordinária: o ponto comum entre todas as posições citadas (ressalvando-se a primeira) reside no seguinte: os tratados de direitos humanos acham-se formal e hierarquicamente acima do direito ordinário. Essa premissa (no plano formal) nos parece muito acertada.

    Como se sabe, vem preponderando no STF a tese do Min. Gilmar Mendes, no sentido de que tais tratados (em regra) teriam valor supralegal. A crítica feita por Valerio Mazzuoli contra o entendimento majoritário do STF (de que os tratados de direitos humanos não aprovados por quorum qualificado possuem valor apenas supralegal) é a seguinte: A tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos não aprovados por maioria qualificada (defendida, v.g., pelo Min. Gilmar Mendes, no RE. 466.343-SP) peca por desigualar tais instrumentos em detrimento daqueles internalizados pela dita maioria, criando uma duplicidade de regimes jurídicos imprópria para o atual sistema (interno e internacional) de proteção de direitos, uma vez que estabelece categorias de tratados que têm o mesmo fundamento ético. E este fundamento ético lhes é atribuído não pelo direito interno ou por qualquer poder do âmbito interno (v.g., o Poder Legislativo), mas pela própria ordem internacional de onde tais tratados provêm. Ao criar as categorias dos tratados de nível constitucional e supralegal (caso sejam ou não aprovados pela dita maioria qualificada), a tese da supralegalidade acabou por regular assuntos iguais de maneira totalmente diferente (ou seja, desigualou os iguais). Daí ser equivocado alocar certos tratados de direitos humanos abaixo da Constituição e outros (também de direitos humanos) no mesmo nível dela, sob pena de se subverter toda a lógica convencional de proteção de tais direitos, a exemplo daquela situação onde um instrumento acessório teria equivalência de uma emenda constitucional, enquanto que o principal estaria em nível hierárquico inferior. Espera-se que o STF reveja sua posição e passe a adotar (como fez o Min. Celso de Mello) a tese do nível constitucional dos tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de aprovação congressual. Será este o momento em que o Brasil ficará lado a lado com os países que mais valor atribuem às normas internacionais de proteção e daqueles que sofrem menos condenações (por violações de direitos humanos) por tribunais internacionais.

    Consequências importantes: partindo-se da ideia de que os tratados de direitos humanos estão acima da lei, passa a ser certo que a produção do Direito, para além dos limites formais, conta também com novos limites materiais, dados pelos direitos humanos fundamentais contemplados na Constituição assim como nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

    Rompendo com as concepções clássicas do positivismo legalista, impõe-se (de outro lado) concluir que nem toda lei vigente é válida. E quando ela é válida? Somente quando conta com dupla compatibilidade vertical , ou seja, compatibilidade com o Direito Internacional dos Direitos Humanos assim como com a Constituição.

    Conclusões: não basta haver consonância com apenas um deles (esse é o caso da prisão civil do depositário infiel: ela está na lei ordinária bem como na Constituição). Isso não é suficiente. A produção do texto ordinário deve agora observar dois outros ordenamentos jurídicos (dois outros filtros) superiores. Quando incompatível com qualquer um deles, não possui validade. Não pode o texto ser compatível somente com um deles.

    Pergunta-se: por que o legislador deve se preocupar com a citada dupla compatibilidade vertical? Reitere-se: porque se a regra do Direito ordinário vier a conflitar com qualquer norma superior (constitucional ou internacional) não terá nenhuma eficácia (ou aplicabilidade). Ou seja: é inválida.

    Mas há uma distinção importante a ser feita: se a lei de baixo conflita com a CF ela é inconstitucional. Já se ela conflita com um tratado (convenção), ela é inconvencional. Desse tema Valério Mazzuoli está cuidando em um novo livro (RT, no prelo).

    Do velho Estado de Direito legal ou legalista (EDL) estamos evoluindo para o Estado de Direito constitucional (ECD) e internacional (transnacional) (EDI). Essa é a maior e mais significativa mudança de paradigma que estamos vivenciando (no Brasil, no plano jurídico) neste limiar do terceiro milênio. Não se trata, logo se percebe, de um caminho fácil. Toda mudança de paradigma é complexa, mas vale a pena percorrer esse caminho, abrindo novos horizontes (Caminante no hay camino, el camino se hace al andar Antonio Machado).

    Notas de Rodapé:

    [1] André Gonçalves Pereira & Fausto de Quadros. Manual de direito internacional público, 3.ª ed., rev. e aum. (reimpressão). Coimbra: Almedina, 2001, p. 120.

    [2] Celso D. de Albuquerque Mello. O 2º do art. 5ºº daConstituição Federall, in TORRES, Ricardo Lobo [org.], Teoria dos Direitos Fundamentais, 2.ª ed., Rio de Janeiro,: Renovar, 2001, pp. 01-29.

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