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5 de Maio de 2024
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    Wittgenstein e a hermenêutica jurídica analógica

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Costuma-se dividir a obra de Wittgenstein em duas fases: a) a primeira, a do Tractatus, marcada pela tese da conexão representativa entre uma proposição e uma coisa, da relação de correspondência biunívoca ou paralelismo entre o signo e a estrutura do mundo; enfim, pelo problema da figuração; b) a segunda, a das Investigações Filosóficas, em que desvela a linguagem como prática e não como mera representação, reconduzindo o emprego das palavras ao uso cotidiano, mostrando que a linguagem ostenta um caráter público, sendo exterior aos indivíduos.

    Wittgenstein, nessa segunda fase, dirige uma crítica à noção de linguagem privada, marcando-a como da ordem do impossível porque insulada nas sensações imediatas do indivíduo. Anota no parágrafo 243 das Investigações:

    Mas seria pensável uma linguagem na qual alguém pudesse, para uso próprio, anotar ou exprimir suas vivências interiores – seus sentimentos, seus estados de espírito? – Não podemos fazer isto em nossa linguagem costumeira?- Acho que não. As palavras dessa linguagem deve referir-se àquilo que apenas o falante pode saber; às suas sensações imediatas, privadas. Um outro, pois, não pode compreender esta linguagem.[1]

    A linguagem privada não se confunde com aquela que seria limitada a um determinado grupo social ou a uma só pessoa, mas aquela que não alcança um grau de intersubjetividade. A impossibilidade da linguagem privada não se vincula apenas a uma falta de regularidade. O problema não é que a sensação imediata seja fugaz demais, esvaindo-se sem qualquer continuidade, mas que não ultrapassa o horizonte subjetivo de tal sorte que não há critérios acerca da aplicação das palavras. Portanto, para o filósofo, não é incorreto falar em sensações. Também não se pode aventar que as palavras concernentes às sensações não tenham significado algum. Não se erige uma linguagem privada porque, à míngua de um fundo comum partilhado, não há regra alguma que justifique a aplicação das palavras. Na linguagem privada, portanto, não se estabelecem critérios prévios que coordene o uso das palavras, ou seja, não há um jogo de linguagem.

    A linguagem como forma de vida rechaça toda metafísica ancorada na noção de um real substancial imutável, constante e uniforme. O significado não está vinculado às propriedades substanciais das coisas, mas a um jogo que, por se constituir acima dos jogadores, funciona como fundo no qual o significado emerge.

    Jean-François Lyotard compreende de forma percuciente os corolários da ideia de jogos de linguagem:

    Três observações devem ser feitas a respeito dos jogos de linguagem. A primeira é que suas regras não possuem legitimação nelas mesmas, mas constituem objeto de um contrato explícito ou não entre os jogadores (o que não quer dizer todavia que estes as inventem). A segunda é que na ausência de regras não existe jogo, que uma modificação, por mínima que seja, de uma regra, modifica a natureza do jogo, e que um ‘lance’ ou um enunciado que não satisfaça as regras, não pertente ao jogo definido por elas. A terceira observação acaba de ser inferida: todo enunciado deve ser considerado com um ‘lance’ feito num jogo[2]

    Diante disso, a impossibilidade da linguagem privada emana da inexistência de critérios que permitam decidir sobre o uso de uma palavra à luz do projeto jogado, previamente erigido como estrutura subjacente que condiciona e confere um horizonte de sentido ao uso das palavras. Não se deve concluir que as palavras da ‘linguagem privada’ sejam carentes de significado, sejam meras flatus vocis, mas que não alcançam o comum aberto, a alteridade em que se sustenta a produção de sentidos.

    Com a ideia de jogos de linguagem, Wittgenstein supera a dicotomia entre natureza/convenção na qual se estriba boa parte da dogmática jurídica. A linguagem é contingente: não se funda em um fundamento natural imutável nem se reduz ao convencionalismo, o qual sempre remonta às condições ideias de um acordo de vontades que permitisse a aposição de rótulos às coisas. Os jogos de linguagem não são convencionais porque não decorrem de um conjunto de possibilidade pré-dadas dentre as quais pudesse haver uma escolha. Alain Badiou mostra que a contingência implica a superação de uma Totalidade numérica em que as possibilidades estão dadas: um lance de dados jamais abolirá o acaso.[3]

    Tanto que Karl-Otto Apel e Habermas entenderam que os jogos de linguagens tem que ver com o como hermenêutico. A tese de Wittgenstein acerca da impossibilidade da linguagem privada constitui, conforme Apel, uma das fontes de superação da filosofia da consciência arrimada no esquema sujeito-objeto. A linguagem funciona como condição de possibilidade para a comunicação e não como mera representação do mundo.

    Consabido que Karl-Otto Apel distribui a filosofia em três paradigmas: o ontológico, que de Platão a Aristóteles tematiza o ente, ou o ser do ente, postulando a ideia de verdade como correspondência; a filosofia da consciência, de Husserl e Descartes, voltada para o tema da consciência, e a evidência como critério de verdade; e a virada linguística, tendo Peirce e Wittgenstein como pioneiros, vincada ao tema mestre das condições de possibilidades da comunicação.

    Os jogos de linguagem constituem um pano de fundo que, justamente por fixar a priori critérios para enunciados verdadeiros e falsos, não se submetem ao critério verdadeiro-falso. É por isso que Wittgenstein não define os jogos de linguagem conforme a longa tradição do gênero próximo e da diferença específica. Se o fizesse, recairia na metafísica da presença, pois o nível dos gêneros e espécies é ôntico (ente) e não ontológico (Ser).

    A linguagem, pois, em Wittgenstein deve ser pública, comportando um sentido partilhável intersubjetivamente. Ainda que tenha a noção do público, Wittgenstein ignora o social e as fissuras que lhe constituem. O seu modelo teórico, a despeito do avanço sobre a metafísica da presença, parte sempre de situações primitivas e extremamente reducionistas. Mesmo falando das câimbras mentais, da linguagem entrando em férias, nunca se pergunta sobre as condições sócio-históricas que ensejam esses fenômenos. Talvez por isso, não tenha antevisto a apropriação privada da linguagem. A colonialidade do poder se manifesta também na apropriação privada da linguagem. Dois são os estratagemas mais comuns utilizados pelas classes dominantes: a) a produção da redundância para os significados que consubstanciam sua posição de classe e b) a criação de ruídos quanto às mensagens que poderia desestabilizar sua paz.

    Por exemplo, até o momento não se regulamentou o imposto sobre grandes fortunas sob o pretexto de que se trata de termo vago e ambíguo, não comportando definição clara. Típica criação de ruídos. O manejo errôneo dos princípios também pode se inserir na mesma estratégia. Nunca houve pamprincipialismo, expressão que esconde mais do que revela, havendo, na verdade, um esvaziamento dos princípios, princípios esses que poderiam impor mais coerência na aplicação do direito, superando o casuísmo que permite fazer da lei um instrumento de chantagem dos pobres e dos inimigos: como as classes dominantes temeriam um freio que desde logo, pelas regras obscenas não escritas, não se aplica a elas?

    Marcelo Neves, jurista exemplar, além do essencial lance teórico deslocando o já enfadonho tema da discricionariedade para o espinhoso problema dos conflitos de interpretação, desvela que os princípios podem ser mais facilmente usados para escamotear decisões que, sob a pressão de interesses particulares, arruínam a consistência do direito[4]. Num país tisnado pela colonialidade do poder, os princípios são esvaziados, reduzidos a artifícios retóricos que dão guarida às representações dos setores hegemônicos.

    Operando um uso analético de Wittgenstein, assentamos as seguintes premissas: a) analisar a ideologia a partir da realidade material do signo (afastando o nefasto psicologismo centrado na metafísica consciência); b) analisar o signo tal como se apresenta nas formas concretas da comunicação social; c) analisar a comunicação inserida no como vital e não apenas no como hermenêutico[5].

    Como dito, Wittgenstein não define os jogos de linguagem. A definição exigiria a presença de uma essência comum aos jogos, uma identidade reinante como substância da variedade dos jogos de linguagem. Wittengenstein assinala no parágrafo 66:

    Aqui encontramos a grande questão que está por trás de todas essas considerações. Pois poderiam objetar-me: “Você simplifica tudo! Você fala de todas as espécies de jogos de linguagem possíveis, mas em nenhum momento disse que o que é essencial do jogo de linguagem, e portanto da própria linguagem. O que é comum a todos esses processos e os torna linguagem ou partes da linguagem. Você se dispensa pois justamente da parte da investigação que outrora lhe proporcionara as maiores dores de cabeça, isto é, àquela concernente à forma geral da proposição e da linguagem.

    E isso é verdade. – Em vez de indicar algo que é comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que não há uma coisa comum a esses fenômenos, em virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra, – mas sim que estão aparentados uns com os outros de muitos modos diferentes. E por causa desse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de “linguagens”.[6]

    Os vários jogos de linguagem não remetem a um significado fundante-substancial, não são redutíveis a uma propriedade comum, mas relacionados entre si por uma espécie de parentesco, uma semelhanças de família. Os jogos de linguagem são, pois, analógicos. Não é difícil verificar que a compreensão de analogia em Paul Ricoeur, ainda que afaste a heterogeneidade radical que vislumbra nos jogos de linguagem, é fortemente influenciada por Wittgenstein.

    Ricoeur retoma com vigor a tese aristotélica presente na metafísica: o ser se diz de várias maneiras. Não ignoramos que Heidegger tenha inserido Aristóteles na onto-teologia ocidental. Mas na medida em que um autor não é unívoco, pensamos que a tese de Ricoeur permite a suplantação de uma possível crítica nesse sentido. Assinala

    Eis por que, quando o filósofo depara com o paradoxo de que ‘o ser se diz de muitos modos, e quando, para subtrair da disseminação as múltiplas significações do ser, ele estabelece entre elas uma relação de remissão a um termo primeiro que não é a univocidade de um gênero nem a equivocidade do puro acaso de uma simples palavra, a plurivocidade que ele traz assim ao discurso filosófico é de outra não o sentido múltiplo produzido pela enunciação metafórica.[7]

    A analogia permite que se encontre, dentre as múltiplas significações do ser, uma filiação que, sem proceder de uma divisão de gênero em espécie, constitua ainda uma ordem viva[8]. A remissão não é a univocidade nem à equivocidade, mas à analogia. O Ser é ana-lógico: nem emparedado na mesmidade, nem disperso na equivocidade do absolutamente outro. A analogia, por não estar no nível ôntico do gênero e da diferença, não se estrutura em uma propriedade comum, mas numa relação de semelhança. É aqui que, afastada a hetogeneridade radical dos jogos de linguagem, o discurso de Ricoeur e de Wittgenstein se irmanam. Contra a heterogeneidade radical, emerge uma heterogeneidade analógica: o como é uma ponte, marcando o semelhante como horizonte de encontro sem esquecer o distinto outro.

    O outro não plenamente assimilável por uma totalidade ante rem é o grande problema hermenêutico. Enrique Dussell define a interpretação como a descoberta de sentido através do acesso ao domínio do distinto Outro (9). O acesso ao distinto, e não absoluto, outro não se dá por uma comunhão de almas, muito menos pela reprodução, no próprio interior, da vivência que ensejou um texto como querem Dilthey e Betti.

    Inexistindo uma causalidade linear e mecânica, é a analogia que evita a dispersão do ser. Tudo quando se escreveu sobre analogia no direito precisa ser reconsiderado e superado. A analogia é o que sustenta o processo de significação não numa ordem fechada e unívoca, mas num campo em que seja possível, dentre as possibilidades de significação, controlar as atribuições de sentido contidas na moldura analógica e as que, transbordando da equivalência, constituem a criação de um novo texto.

    Como ensinava os medievais aristotélicos, não se trata de um significado único nem de interpretação única, mas de um analogado principal que serve de critério para a aferição da validade das possíveis interpretações, reputando-as adequadas ou não, algo próximo do que Chomsky chama de estrutura profunda.

    A atividade jurídica ostenta autonomia relativa em relação à política como arte da decisão[9]. Mas, no âmbito da autonomia que garante ao direito uma autorreferência porosa, devemos resgatar sua dignidade política. Interpretar a normatividade é buscar o comum do programa e domínio normativo: o significado, não a representação, porta o comum que é externo ao interprete e intersubjetivo. Buscar o comum na linguagem é um ato jurídico, mas também político, pois se busca a comunidade ou o espírito objetivo (Hegel) que se traduz em direito no texto. Não é uma procura das representações, desde sempre presas à subjetividade narcísica, mas sim da mundividência decorrente do comum. Uma forma de ação política substancialmente diferente da ação política de buscar o bem comum ou de disputar o poder da instauração ou de realizá-lo.

    Não se deve esquecer que há política na teoria que apregoa a compreensão subjetiva infensa à alteridade que habita o texto. Sob as vestes das aparências “neutras” e teóricas escondem-se mecanismos conceituais e dispositivos de poder que buscam alterar de fato as normas e não se aproximar de seu sentido enquanto alteridade a ser alcançada. Nestas formas de discurso “descritivo”, existe, de fato, pretensão de decisão política.

    Pedro Estevam Serrano é mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Professor de Direito Constitucional da PUC-SP. Advogado.

    Luis Eduardo Gomes do Nascimento é Professor na Escola de Direito de Juazeiro do Norte (CE).

    [1] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultura, 1999, p. 99.

    [2] LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: 2013, p.17.

    [3] O problema de Platão não se situa na dicotomia natureza/convenção como muitos proclamam em tom professoral. Por isso, leram erroneamente o Crátilo de Platão. O problema se dá como é possível, mesmo na contingência, um procedimento genérico, subtraído à ordem normal das coisas, apresentado como verdade: ou seja, Platão está no cerne do nosso problema. Sobre a importância do gesto platônico na filosofia consultar: BADIOU, Alain. Manifeste pour la philosophie. Paris: Seuil, 1989. Badiou nos mostra Platão para além da imagem vulgar que certos manuais apresentam.

    [4] NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo, Martins Fontes, 2014, p. 190. Quando fizemos uma genealogia (no sentido Foucaultiano) da Hermenêutica, confirmamos a hipótese de que o tema que lhe é central é o do conflito de interpretações, tema ausente do debate no Brasil.

    [5] BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2010, p. 45. O giro linguístico chega tarde demais e não surpreende a teoria crítica: desde priscas eras, Marx assinalara que a consciência como entidade metafísica não dá conta das relações materiais que a práxis humana enseja.

    [6] Wittgenstein, ob. cit. p. 52.

    [7] RICOEUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Seuil,1975, p. 326.

    [8] Ver http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/16/prolegomenos-para-uma-hermeneutica-analogica.

    [9] DUSSEL, Enrique. Analogie et dialectique: essais de théologie fondamentale. Gèneve: Labor et Fides, p. 114.

    [10] Ver http://emporiododireito.com.br/o-conflito-entreafaculdade-de-filosofiaea-faculdade-de-direito-segundo-emmanuel-ka

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