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17 de Maio de 2024
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    A construção histórica do jogo do bicho como contravenção penal.

    Publicado por Artur Sousa
    há 3 anos

    Em um domingo, 03 de julho de 1892, surgiu mais um dentre vários divertimentos na cidade do Rio de Janeiro. Surgiu o jogo do bicho. O jogo consistia no sorteio de um dos vinte cinco animais que vinham impressos nos bilhetes de entrada do Jardim Zoológico do bairro de Vila Isabel. O empreendimento era de iniciativa de João Batista de Viana Drummond, popularmente conhecido como Barão de Drummond. Na ocasião do sorteio, o ganhador receberia vinte vezes o valor do bilhete de entrada. O avestruz fez a felicidade de 23 sortudos, que levariam o prêmio de 20$000 cada (MAGALHÃES, 2005, p. 20).

    Neste artigo buscaremos analisar quais motivos levaram o jogo do bicho, mais um dentre diversos divertimentos que surgiram ao final do século XIX, a se tornar uma contravenção penal, bem como buscaremos compreender como o jogo sobrevive a tanto tempo como símbolo da cultura popular brasileira, apesar de toda evolução do aparato jurídico penal voltado a suprimi-lo do cenário nacional.

    O jardim zoológico de Vila Isabel

    Para começarmos a entender o jogo do bicho, devemos compreender o surgimento do estabelecimento em que o jogo nasceu. De fato, o surgimento do Jardim Zoológico do bairro de Vila Isabel remete a 25 de agosto de 1884, data do requerimento de Drummond à Câmara Municipal, solicitando permissão para instalação de um parque de animais no recém criado bairro de Vila Isabel. É importante ressaltar que Drummond liderava, junto a outros sócios, diversos empreendimentos na região, como a Companhia de Bonds de Vila Isabel, a Companhia Arquitetônica (GERSON, 2000), além de ser proprietário da maior parte das terras do próprio bairro. Na sua visão empreendedora, a instalação do parque promoveria a valorização das suas terras, além de impulsionar a venda de bilhetes dos bonds.

    Na petição endereçada ao poder legislativo municipal, chama atenção que para convencer os vereadores, são utilizados os argumentos da necessidade de embelezamento e estudo, que seriam proporcionados por um estabelecimento dessa espécie, ainda inexistente na capital federal.

    A petição teve parecer positivo do setor de assessoria de engenharia da Câmara, que em apenas duas semanas de tramitação firmou contrato com o Barão. Dentre as cláusulas do contrato, várias estavam ligadas ao quesito beleza e ciência, como por exemplo as que exigiam que:

    Cláusula Segunda. Na fundação deste estabelecimento guardará todos os preceitos da arte moderna e distribuirá os diferentes tipos animais de acordo com a melhor classificação, guardando no tratamento as prescrições higiênicas aconselhadas pela ciência.
    Cláusula Sétima - Permitirá o ingresso gratuitamente uma vez por semana, aos alunos de quaisquer cursos superiores do Império, e primário da Ilustríssima Câmara, sempre que forem acompanhados de suas respectivas lentes ou professores, bem assim em favor das quais for pedida a entrada pela mesma Ilustríssima Câmara. (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Jardim Zoológico, códice 15­4­60, fl 2 e 3 apud MAGALHÃES, 2005, p. 25).

    Ressaltar tais aspectos é importante tendo em vista os fatores que levaram o jogo do bicho à ilegalidade, como será visto mais adiante. Na época, fatores como higiene, modernidade, civilidade e moralidade foram utilizados por diversos outros empreendimentos como argumento para que fossem autorizados pelo poder público.

    O Rio de Janeiro ao final do séc. XIX


    No final do século XIX e início do século XX, época do surgimento do Jardim Zoológico, o Rio de Janeiro passava por um processo agressivo de expansão demográfica e financeira. Segundo dados colhidos por BENCHIMOL (1990, p. 172), entre os anos de 1872 e 1906, o crescimento populacional da capital federal foi de quase 200%, sendo marcado também pela presença massiva de estrangeiros, que em 1900 totalizavam 210.515 pessoas. Ainda no início do século XX, o Rio tinha 33% da produção industrial nacional, registrando um aumento de mais de 100 por cento de trabalhadores da indústria em 16 anos, totalizando 115.779 operários no Censo de 1906 (BENCHIMOL, 1990, p. 173)

    Outros setores populacionais apresentaram semelhantes taxas de crescimento. Segundo dados do mesmo censo, o número de trabalhadores no setor do comércio cresceu também 200%, se comparado com o censo de 1890. A circulação de crédito, fator significativo dessas transformações, apresentava, entre os anos de 1889 a 1914 um aumento de 300%, quando comparado aos anos de 1863-1888 (CHALHOUB, 2001, p. 249).

    Esses dados são importantes ao buscarmos entender que na então maior cidade do país, com economia e população em crescimento exponencial, seria natural que mercados adjacentes, como o da diversão e do entretenimento também evoluíssem, não só aumentando sua renda, mas se diversificando, como expôs Magalhães (2005, p. 36):

    Uma cidade em franca expansão deveria criar formas para entreter seus moradores e visitantes. Este possivelmente era um dos pensamentos daqueles que administravam a cidade, cuja orientação européia os levava a buscar uma equiparação do Rio de Janeiro às metrópoles do velho mundo. Num dos flancos desta luta, estava a tentativa de dotar a capital de “modernos, úteis e agradáveis divertimentos”. No outro, estariam empresários interessados em ver seus investimentos frutificarem, e num terceiro estava uma população disposta a se divertir, mas nem sempre de acordo com os limites desejados pelo Poder Público.

    É exatamente nesse contexto que o barão de Drummond decidiu criar o seu empreendimento. Aos 6 de janeiro de 1888 é inaugurado o Jardim Zoológico de Vila Isabel. Contudo, os resultados da empreitada não foram exatamente como esperados.

    O surgimento do jogo do bicho como forma de financiamento privado


    Já em 1890, apenas dois anos após inauguração do zoológico, Drummond peticionou à Intendência Municipal do Rio de Janeiro, no sentido de que fosse permitido a exploração de jogos lícitos naquele empreendimento, sob a justificativa de que o montante arrecadado com a subvenção pública anual e o valor dos ingressos mal seriam suficientes para manutenção dos animais. O pedido foi deferido pela Intendência, que concedia, na cláusula terceira do contrato de aditamento, a permissão para exploração de jogos lícitos, deixando claro a possibilidade de fiscalização policial.

    Embora a permissão para explorar jogos tenha ocorrido ainda em 1890, a primeira extração do jogo do bicho só viria ocorrer em 1892. A ideia do jogo em si não era original. Um dos sócios de Drummond, o mexicano Zevada, bancava anos antes, na rua do Olvidor, o “jogo das flores”, onde pagava-se quem acertasse uma entre 25 espécies de flores. Os sorteios ocorriam diariamente (EDMUNDO, 2003, p. 543). Drummond apenas ajustou o jogo ao ambiente em que seria oferecido.

    A inauguração do jogo foi marcada por um grande festejo no jardim zoológico, e o sorteio foi noticiado pela imprensa diária, que destacou o animal sorteado, além da quantia que o ganhador teria levado. Aparentemente aquela nova modalidade teve uma rápida aceitação, uma vez que em apenas duas semanas após a primeira extração, o valor das apostas mais que quadruplicou (MAGALHÃES, 2005, p. 31-32).

    Percebendo o sucesso do jogo, o próximo passo seria colocar à venda os bilhetes de entrada do zoológico em local diverso do próprio zoológico, sendo escolhido a rua do Ouvidor, n. 129. Os bilhetes agora poderiam ser comprados fora do parque, os resultados dos sorteios eram divulgados na imprensa e os bilhetes eram válidos por quatro dias (BENCHIMOL, 1990, p. 350). Ou seja, já não era mais preciso comparecer ao jardim zoológico nem para comprar o bilhete nem para saber qual bicho seria sorteado. Foi tudo um grande sucesso, e logo os bilhetes estavam sendo vendidos em outros estabelecimentos, que já não tinham conexão direta ao Jardim Zoológico.

    O referido sucesso do jogo do bicho pode ser observado por diferentes olhares. Soárez (1992) atribui ao caráter totêmico do jogo tamanha popularidade. Por outro lado, Magalhães (2005, p. 59-60) afirma que fatores estruturais pré-existentes como um mercado já estabelecido de comércio de bilhetes de loterias, uma rede de estabelecimentos comerciais interessados em vender os referidos bilhetes, o uso da imprensa, e o aumento da capacidade de meio circulante na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX contribuíram para que o jogo se tornasse tão popular em apenas alguns anos de existência.

    Do divertimento à ilegalidade: “Higienismo e moralidade”

    Contudo, toda essa situação não fugiu aos olhos das autoridades policiais. Apenas vinte dias após a inauguração do jogo do bicho, o Chefe de Polícia da capital federal redigiu um ofício, publicado pelo jornal O Tempo, explicitando seu entendimento de que aquele divertimento seria um jogo de azar, já que os ganhos dependeriam exclusivamente do acaso, o que seria manifestamente proibido, enquadrando-o nos artigos 369 e 370 do Código Penal de 1890 (MAGALHÃES, 2005, p. 168).

    O artigo 369 do primeiro código penal da república trazia proibição às casas de tavolagem, locais em que habitualmente se ofereciam toda espécie de jogos de azar. A proibição trazida no código também se estendia para quem oferecesse jogos de azar em locais públicos. Já o artigo 370 trazia a definição dos jogos de azar, compreendido como “aqueles em que o ganho e a perda dependem exclusivamente da sorte”. O parágrafo único deste artigo fazia a ressalva de que não estariam compreendidos como jogos de azar corridas a pé ou a cavalo, bem como a que a elas se assemelhavam.

    A repressão policial para com os jogos de azar assumia um tom de moralidade pública. A vista das autoridades, o vício na jogatina teria uma capacidade de corromper o ambiente público e particular, afetando o homem em suas diversas facetas. O chefe de polícia do Rio de Janeiro, em 1899, manifesta sua reprovação pública perante os jogos de azar, afirmando que:

    Operários, o funcionalismo público, as classes abastadas, a criadagem, as mulheres e até as crianças se sentem dominados pela apavorante vertigem de alcançar lucros sem trabalho nem esforço digno. No lar tranquilo e feliz já entrou por uma vez a sórdida figura da ambição do dinheiro, pelo jogo. E daí, pouco a pouco fogem à ordem, à paz e à virtude. (Arquivo Nacional. GIFI. Caixa 6C34. novembro de 1899 apud BRETAS, 1997, p. 87).

    Essa narrativa era assumida por alguns setores sociais, que tentaram construir uma opinião pública de que os jogos de azar representavam a quebra de uma moralidade que se transpassava do trabalho para casa, do presente para o futuro, do coletivo para o individual. Em manifesto público, a Associação dos Empregados do Comércio afirmava que: “As facilidades, o convite, e o incitamento para o jogo são os inimigos do trabalho honesto, da economia, da previdência, da probidade e das virtudes honestas”. (Arquivo Nacional. GIFI. Caixa 6C35. novembro de 1899 apud BRETAS, 1997, p. 92).

    Nesse sentido, a contenção dos jogos de azar por parte das autoridades representaria um “triunfo de uma moral de comportamento público dirigidos pelos vestígios nacionais de uma ética protestante, que se sedimenta com mais força por integrar os mais diversos projetos sociais do período” (BRETAS, 1997, p. 92).

    É válido destacar que o Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX passava por uma onda de transformações urbanísticas e sociais de caráter higienista e modernizadora, o que também abrangia as atividades de entretenimento. Nas palavras de Magalhães (2005, p. 36):

    Num processo que combinava higienização e saneamento, modernização e ordem, o espectro de diversões oferecidas à população não deveria ter apenas o objetivo de entreter as pessoas, de fazê-las apenas gastar algum tempo de suas vidas com o lazer puro e simples. No âmbito da construção de uma capital, cujos parâmetros seriam as metrópoles européias, seria fundamental que neste tempo destinado ao ócio, as pessoas pudessem ser educadas, principalmente os trabalhadores (SIC).

    A partir dessa narrativa moralizadora, o poder público municipal adotou uma política de não financiamento de equipamentos que atentassem contra uma sociedade reta, cujo a ideia de produtividade estivesse permeada tanto nos momentos de trabalho como de lazer.

    Evolução do jogo do bicho como delito penal


    Nesse contexto repressivo, em 1895 o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Francisco Furquim Werneck de Almeida, aciona sua procuradoria para que examinasse os contratos firmados com a Companhia do Jardim Zoológico. Os pareceres foram assinados pelos procuradores Frederico de Almeida Rego e J. G. De Souza Bandeira, que apontaram a exploração do jogo do bicho como principal argumento para que fosse rescindido o contrato entre a Prefeitura e a Companhia. Como resultado, foi editado o Decreto 133 de 10 de abril de 1895, autorizando o prefeito a rescindir os contratos firmados com a companhia de Drummond. A essa altura, a venda de bilhetes já estava disseminada pelas ruas da cidade, vendidos por ambulantes e pelos primeiros banqueiros do jogo do bicho (MAGALHÃES, 2005, p. 148-151).

    Do ponto de vista criminal, o jogo do bicho era perseguido com base no artigo 367 do Código Penal de 1890, que previa multa pecuniária para quem promovesse rifas ou loterias sem autorização de órgão público competente. É válido lembrar que o jogo também era considerado “de azar” com base no artigo 370 do mesmo código.

    Em 1899 foi aprovada a lei nº 628, que instituiu pena de prisão, de um a três meses, para quem praticasse a conduta prevista no artigo 367 do código penal então vigente. Além disso, atribuiu aos chefes de polícia e delegados do Distrito Federal a competência ex officio para processar as contravenções do Livro III, o qual constava o referido artigo.

    Já em 1910, foi promulgada a lei nº 2.321. Ela revogou os artigos 367 e 368 do Código Penal, bem como a lei nº 628 de 1899. A partir dela também foram atualizadas as definições de loterias autorizadas e não autorizadas. Em seu artigo 31, faz-se menção a loterias que envolvessem símbolos e figuras. Magalhães (2005, p. 156) interpreta esse trecho da lei como uma menção ao jogo do bicho. A pena de prisão foi recrudescida para 2 a 6 meses, e a multa foi aumentada para 2 contos de réis.

    Em 1917 ocorreu a Conferência Judiciária-Policial convocada pelo então chefe de polícia do Distrito Federal Aurelino Leal. O tema do jogo do bicho foi abordado pela relatoria de Armando Vidal, cuja conclusão foi pela manutenção do jogo como contravenção penal, com base nos artigos 31 e 32 da lei nº 2.321 (MAGALHÃES, 2005, p. 156).

    Já nesse período havia um descompasso entre a persecução penal promovida pela polícia e as decisões judiciais decorrentes dos procedimentos policiais. Entre 1906 e 1917 apenas 13% dos autores que compareceram em juízo foram condenados pela prática do jogo, sendo a principal causa para a não condenação o argumento de que as testemunhas arroladas não eram suficientes para comprovar o caráter de jogo de azar segundo a definição legal. (MAGALHÃES, 2005, p. 158).

    Ainda, o autor destaca que esses aspectos processuais repercutiam na liberdade dos infratores:

    Em documentos pesquisados no Arquivo Nacional durante o ano de 1923, sobre a entrada e saída de jogo, ou seja sobre apreensões e devoluções de montantes do jogo, pode-se perceber que vários dos acusados foram liberados pela prisão por não estar de acordo com as determinações processuais. O principal motivo para a liberação dos acusados de praticar o jogo do bicho era a falta de testemunhas, além de haver a possibilidade do pagamento de fiança. (MAGALHÃES, 2005, p. 160).

    Como Decreto Decreto-Lei nº 21.143, em 1932, pela primeira vez o jogo do bicho aparece especificamente como contravenção penal. A lei tornou o ilícito inafiançável, ampliou a pena de prisão para seis meses a um ano, e a pena pecuniária para dez contos de réis.

    Em 03 de junho de 1941 surge a Lei de Contravencoes Penais, que em seu artigo 58 tipificava o jogo do bicho, prevendo pena de prisão, de quatro meses a um ano, além de multa. Três anos depois surge a lei nº 6.259/44, em que o jogo do bicho também é tipificado no artigo 58. Se comparada com a lei de 1941, a nova lei ampliou a pena de prisão para quem bancasse o jogo, além de distinguir a pena entre apostadores, banqueiros e facilitadores.

    É interessante notar também a promulgação do Decreto-Lei nº 9.215 de 30 de abril de 1946, que, embora não tratasse diretamente sobre o jogo do bicho, caçou todas as licenças concedidas para casas de jogos no Brasil. O que mais chama atenção é seu preâmbulo, que afirmava:

    O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, e considerando que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal;
    Considerando que a legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a esse fim;
    Considerando que a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração e jogos de azar;
    [...]

    Mais uma vez, a moralidade é invocada para justificar a proibição dos jogos de azar no Brasil. Apesar disso, aparentemente não existia um consenso acerca das justificativas que levaram à proibição dos jogos de azar no Brasil, dentre os quais o jogo do bicho.

    Em 1951, Rachel de Queiroz escreve um artigo intitulado “O jogo do bicho”, em que levanta a questão da possibilidade de regulamentação, já que outros divertimentos mais danosos, ao seu ver, como o álcool eram permitidos. A escritora levanta ainda o questionamento acerca da utilização de uma política policialesca, que até então teria se mostrado ineficiente. Em 1949, Rubem Braga pública a crônica “O Bicho”, em que defende a ideia de que o Estado não seria capaz de coibir a contravenção do bicho, e que se estaria perdendo a oportunidade de se tributar ganhos milionários dos banqueiros, que poderiam bancar programas sociais contra a miséria na infância, por exemplo. O debate acerca da legalização do jogo do bicho não era novidade àquela altura. Propostas legislativas para legalização do jogo já haviam sido lançadas em 1915, pelo senador Eric Coelho (ABREU, 1968, p. 113) e em 1928, pelo deputado federal Henrique Dodsworth. (BARROS, 1957, p. 128 apud MAGALHÃES, 2005, p. 98).

    1950 à 1970: Evolução da dinâmica comercial do jogo do bicho e o surgimento dos grandes “bicheiros”


    Foi na mesma década de 1950 em que se observou uma evolução da dinâmica do jogo do bicho como forma de negócio. Depois de mais de cinquenta anos da comercialização dos bilhetes, os banqueiros, que inicialmente apostaram na venda dos bilhetes de jogo do bicho junto a outras formas de jogatina, acumularam capital e passaram a se dedicar exclusivamente ao jogo do bicho. Esse acúmulo de capital, a disputa de mercado entre os bicheiros e a evolução do aparato repressivo fizeram com que se formassem as chamadas “fortalezas da contravenção”. Essas fortalezas eram imóveis que funcionavam como uma empresa, dividida por departamentos, possuindo os setores de contabilidade, os anotadores (aquelas pessoas que registram o jogo diretamente com o apostador), gerência e segurança (MAGALHÃES, 2005, p. 132 - 136).

    Apesar da repressão policial e da evolução legislativa de combate ao jogo do bicho, seu crescimento atingiu ritmo colossal. Na década de 60, as pessoas envolvidas com o jogo do bicho representavam cerca de um por cento da força de trabalho total do Brasil (BRAZIL, 1966), e só na cidade do Rio de Janeiro, 50 mil pessoas trabalhavam com a contravenção entre as décadas de 1980 e 1990 (REIS, 2018, p. 27).

    Após o golpe militar, o jogo do bicho experimentou um processo de reorganização e crescimento que até então ainda não se tinha observado. Durante o regime, diversos membros das forças armadas foram cooptados pela máfia da contravenção, o que acabou por agregar disciplina, hierarquia, organização administrativa e financeira, divisão do trabalho e espionagem às operações desenvolvidas pelos bicheiros. Essa simbiose foi facilitada após o início da perda de protagonismo dos principais órgãos de repressão do regime, momento em que muitos agentes da repressão viram o esvaziamento de suas funções, abrindo espaço para atuações extra oficiais. (JUPYARA; OTÁVIO, 2015, location 138).

    Nessa época, Capitão Guimarães, Anísio (Aniz Abraão David), e Castor Andrade, se beneficiaram direta ou indiretamente dos mecanismos de repressão da ditadura para fortalecerem seus negócios. É válido ressaltar que Capitão Guimarães ainda era oficial da ativa do exército brasileiro quando entrou no jogo do bicho. (JUPYARA; OTÁVIO, 2015, location 196).

    No mesmo período, tais bicheiros atuaram fortemente no financiamento de atividades culturais, como uma espécie de mecenas, notadamente quanto ao investimento em escolas de samba[1]. Essa atitude demonstrava, por um lado, todo o poder e riqueza que os bicheiros já tinham acumulado até então, ao mesmo tempo que tentava criar uma imagem de benfeitoria ligada ao jogo do bicho, em detrimento à imagem negativa da criminalidade.

    Os militares tinham ciência das atividades ilícitas promovidas pelos bicheiros, uma vez que o teor dos lucros dos bicheiros constava nos relatórios dos órgãos de informação do regime. Os relatórios de inteligência do SNI e Cenimar[2] chamaram atenção acerca das atividades desenvolvidas pelos principais contraventores do bicho, que já abrangiam contrabando, tráfico de drogas, estelionato e lavagem de dinheiro. A partir desse período se destacou a figura de Castor de Andrade, cujo acúmulo de capital decorrente do jogo do bicho financiavam uma série de atividades como times de futebol, empresas especializadas em contrabando internacional e formação de milícias privadas a partir dos quadros da polícia civil do Estado do Rio de Janeiro. (JUPYARA; OTÁVIO, 2015, location 1674).

    Isso, no entanto, não impedia que o governo militar mantivesse uma relação no mínimo contraditória com os bicheiros. Fato notório, para exemplificar essa relação, era a interação quase familiar entre Castor de Andrade e a família do Presidente Figueiredo. Johnny, filho do general, era genro do sócio de Castor em um empreendimento metalúrgico que levava o mesmo nome do bicheiro. Mais, a fábrica forneceu entre 1977 e 1978 produtos como cama, fogões e marmitas ao exército brasileiro, vindo a ser salva da falência por uma compra, por parte da empresa Coroa - Brastel, arquitetada pelo próprio SNI (JUPYARA; OTÁVIO, 2015, location 2899-2912).

    Redemocratização à contemporaneidade


    O fim da ditadura demonstrou que a contravenção do bicho não tinha ideologia e se adequava bem às constantes mudanças políticas pelas quais o Brasil passava ao longo do século XX. O mesmo Castor, tão próximo do regime militar, disparou uma célebre frase acerca das mudanças políticas recém enfrentadas pelo país: “A contravenção tem um princípio, ela é governo, e não tem culpa que o governo mude toda hora” (RIBEIRO, 1985). Essa ideia pode ser analisada de forma mais concreta ao destacarmos que Brizola, inimigo voraz da ditadura militar, teve apoio dos bicheiros na ocasião das eleições para governador no ano de 1982 (JUPYARA; OTÁVIO, 2015, location 3148).

    Em 1983 foi enviada ao Ministério da Justiça uma proposta de legalização do jogo do bicho. Tal proposta foi assinada por todos os secretários de segurança do país, com exceção ao estado do Espírito Santo. A proposta não teve interesse do governo federal. Dois anos antes, o próprio SNI havia emitido um relatório, por meio de sua agência central, elencando argumentos a favor da legalização do jogo (JUPYARA; OTÁVIO, 2015, location 3219 -3232).

    Durante a Assembleia Constituinte, a legalização do jogo do bicho foi discutida via emenda, apresentada por Gerson Peres (PDS - PR)[3], proposta essa rejeitada por 208 votos contra e 144 a favor.

    Dessa forma, o fim dos anos 80, a volta da democracia, as novas formas de fazer política, aparentemente nada disso parecia mudar o cotidiano do jogo do bicho e de seus principais banqueiros, seja em relação a gestão das atividades da contravenção, seja pelos vulto dos lucros obtidos, seja pela relação entre o “bicho” e as autoridade públicas. Todavia, na década seguinte, o jogo do bicho sofre um duro golpe.

    Em 1993, uma investigação promovida pelo promotor Luiz Carlos Cáffaro chegou à conclusão de que os bicheiros formavam uma quadrilha, sendo um dos seus principais delitos a corrupção de funcionários públicos do estado do Rio de Janeiro. O promotor formou sua tese com base em dezenas de processos que envolviam punições de policiais militares por envolvimento com o jogo do bicho.[4]

    Em 1993, com base nessa denúncia, quatorze bicheiros foram condenados a seis anos de prisão, pelo crime de formação de quadrilha. No ano seguinte, a fortaleza do jogo do bicho de Castor de Andrade foi estourada, fazendo surgir um escândalo conhecido como a “lista do bicho”, onde foi identificado o pagamento de propina a policiais, artistas e autoridades públicas.

    Em 1997, Castor de Andrade, considerado o mais rico banqueiro do jogo do bicho[5], falece, deixando uma fortuna responsável por uma guerra interna na família. A disputa resultou em 50 mortes no ano de 2001. Aparentemente essa guerra perdura até os dias atuais. Em recente reportagem veiculada no programa Fantástico, o bicheiro Fernando Iggnácio foi morto a tiros, ainda no contexto da disputa pelo espólio de Castor.

    O final da década de 90 também trouxe mudanças para as formas de promoção do jogo. Com a evolução tecnológica, o jogo do bicho se modernizou, fazendo surgir as máquinas caça-níqueis, que eram responsáveis por vinte por cento do faturamento dos bicheiros em 1999.

    A década de 2000 foi marcada por um dos maiores escândalos envolvendo autoridades públicas e o jogo do bicho. Em 13 de abril de 2007, a Polícia Federal deflagrou uma operação denominada “Hurricane”, resultando na prisão dos contraventores Capitão Guimarães; Aniz Abrahão David, e Turcão (Antônio Petrus Kalil). Durante a operação, foram apreendidos R$ 10 milhões e 51 carros de luxo, avaliados em R$5 milhões, 161 relógios e joias. Mas o que chamou atenção mesmo foi a motivação da operação. Segundo dados da denúncia, os advogados dos bicheiros negociavam a liberação de máquinas caça-níqueis, junto a juízes e desembargadores do TRF do Rio de Janeiro, além de pagarem propina a outras autoridades do poder judiciário, que intermediavam a negociação.

    O processo resultou na condenação de dois desembargadores do TRF da 2ª Região, um juiz do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas (SP), do Procurador Regional da República João Sérgio Leal Pereira e o advogado Virgílio de Oliveira Medina, irmão do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo Medina, que também foi acusado de participação no esquema, mas que não foi considerado culpado. [6]

    Estava escancarado o nível de corrupção provocada pela máfia do bicho, que embora fosse sempre associada à uma corrupção de baixo escalão, geralmente policiais militares ou delegados de polícia, que mantinham um contato mais direto com a contravenção, já alcançava altas cortes do país, maculando até mesmo o Superior Tribunal de Justiça.



    [1] Capitão Guimarães foi presidente da escola de samba Unidos de Vila Isabel (1983- 1987), Anísio dirigiu a escola de samba Beija flor de Nilópolis (1965 - 1966), e Castor de Andrade foi nomeado presidente de honra da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel (1980 - 1997).

    [2] O SNI (Sistema Nacional de Informações), órgão com status ministerial, tinha função de espionagem dentro do contexto da ditadura militar. O Cenimar era um órgão subordinado ao Estado Maior da Marinha do Brasil, e exerceu função de mecanismo de espionagem e repressão durante o regime ditatorial.

    [3] Ver Jornal da Tarde, São Paulo, nº 6789, p. 5, 13/01 de 1988. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/122425. Acesso em: 16. jan. 2021.

    [4] Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/repressao-ao-jogo-se-intensificou-na-decada-de-1990-quando-banqueiros-f.... Acesso em: 17 jan. 2021

    [5] O bicheiro foi considerado um dos homens mais ricos do Brasil nos anos 80. Cf. https://g1.globo.com/fantastico/podcast/issoefantastico/noticia/2020/11/22/66-issoefantasticoa.... Acesso em: 17 jan. 2021.

    [6] https://oglobo.globo.com/rio/relembre-operacao-hurricane-2970404. Acesso em: 18 jan. 2021.

    REFERÊNCIAS

    ABREU, Waldyr de. O submundo da prostituição, vadiagem e do jogo do bicho – aspectos sociais, jurídicos e psicológicos. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1968.

    BENCHIMOL, Jaime L. Pereira Passos: um Haussman tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1990.

    BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: O povo e a polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo nacional. 1997.

    CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2. ed. Campinas: Unicamp, 2001.

    DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.

    EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília. Senado Federal, 2003. v. 1.

    GERSON, Brasil. História das ruas do Rio: e da sua liderança na história política do Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000.

    JUPYARA, Aloy; OTÁVIO, Chico. Os porões da contravenção. Rio de Janeiro, 2015. (Versão epub).

    MAGALHÃES, Felipe Santos. Ganhou leva...do vale o impresso ao vale o escrito. Uma história social do jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890 - 1960). 2005. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005.

    SOÁREZ, Elena. Jogo do bicho, um totemismo carioca. Rio de Janeiro: UFRJ, Museu Nacional, Programa de Pós­graduação em Antropologia Social, Dissertação de Mestrado, 1992.

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    Jogo do bicho devia ser exportado. Devia fazer parte do turismo nacional. Devia ser patrimônio cultural do Brasil. Gerar empregos renda e impostos. Como é a cidade de Las Vegas e seus cassinos nos Estados Unidos. continuar lendo

    Muito romântico tudo isso,muito idealista, a inteligência do barão de Drumond"barão já fora outrora,de donos de grande extensão de terras,plantio de café no período já no século 18,se não me falha"; pena que a corrupção, como a máfia italiana,é outras mais,serviram para desencadear ,mortes assassinatos e outras mais,meus respeitoso à memória do barão de Drumond,onde sempre admirei esse nome. continuar lendo