Democracia Digital, Democracia Líquida e a "uberização" da política
Desde tempos antigos, Aristóteles já nos ensinava que o “homem é por natureza um animal político”[1]. Porém esta natureza política em nada se relaciona com a atual “politicagem”, termo atualmente associado às “maracutaias” e demais subversões do que realmente deveria ser a política: a ação que visa o bem comum.
Já não nos espantamos mais quando acordamos e somos informados pelos noticiários de que tal político foi indiciado, preso, ou foi flagrado com malas de dinheiro. Bons tempos quando o dinheiro sujo se limitava à cueca, pois agora vemos caixas e malas abarrotadas com nossos suados impostos.
O que parece claro na atualidade é que o representante, que recebe um mandato de seus representados, na verdade atua apenas em causa própria. Seus interesses, de sua família, amigos, padrinhos e pequenas oligarquias que governam ano após ano.
Mas não pense que temos a exclusividade deste infortúnio. Por mais assombroso que seja o cenário político atual no Brasil, podemos perceber que o modelo de democracia indireta representativa se mostra decadente mundo a fora. Basta ver exemplos como decisões estapafúrdias do atual presidente americano, ou confusões causadas pelo Brexit no Reino Unido, a declaração de independência da Catalunha, sem falar nas dezenas de frágeis democracias que se transformam em ditaduras sangrentas.
Qual seria então a saída para este cenário apocalíptico? Nem se atreva a pensar em intervenção militar. Não é de ditadura que precisamos. Concentrar o poder é justamente o inverso da solução. A democracia ainda é o que temos de melhor como organização societária.
Precisamos na verdade é transformar a forma como a política é feita. E para isso, precisamos olhar a nossa volta e ver como a Internet está revolucionando outros aspectos das nossas vidas. Se o Uber revolucionou o modo como nos locomovemos, a AirBnb transformou a forma de nos hospedarmos, além do Nubank e os bancos digitais que assustam as instituições financeiras tradicionais, porque não podemos também revolucionar a política?
Esta evolução já foi postulada em alguns conceitos teóricos, como Democracia Digital e Democracia Líquida. A Democracia Digital é “um expediente semântico empregado para referir-se à experiência da internet e de dispositivos que lhe são compatíveis, todos eles voltados para o incremento das potencialidades de participação civil na condução dos negócios públicos.”[2]
Wilson Gomes, neste excelente artigo publicado em 2005, destaca que "a alternativa histórica à democracia representativa é a democracia direta, vencida historicamente por inadequada a sociedades de massa e à complexidade do Estado contemporâneo – que exige profissionalismo (isto é, dedicação exclusiva, formação e competência) de quem governa e de quem legisla. A introdução de uma nova infraestrutura tecnológica, entretanto, faz ressurgir fortemente as esperanças de modelos alternativos de democracia, que implementem uma terceira via entre a democracia representativa, que retira do povo a decisão política, e a democracia direta, que a quer inteiramente consignada ao cidadão."[3]
Já a Democracia Líquida, que é “um subconjunto da Democracia Representativa, é um poderoso modelo de votação para a construção de decisões coletivas em grandes comunidades. A Democracia Líquida combina a vantagem da Democracia Direta com a Democracia Representativa e cria um verdadeiro sistema de votação democrático que empodera aqueles que tem direito a voto para tanto votar em assuntos de forma direta quanto a delegar seu poder de voto para alguém de confiança.”[4]
Em termos práticos, recentemente li uma matéria[5] sobre este tema em que Vitali Shkliarov teria desenvolvido um “Uber Político” e colocado em prática nas campanhas eleitorais russas. "O principal problema do sistema eleitoral russo é a dificuldade de acesso para candidatos que não sejam ligados ao Kremlin. Então, buscamos uma ferramenta tecnológica para isso, como o Uber facilitou a vida de quem quer ser motorista" contou Shkliarov à reportagem. A matéria entretanto deixa a desejar ao não detalhar como funciona este sistema.
Uma pesquisa rápida na internet, percebemos várias ações para incentivar a participação popular na política, como o Mudamos que “é um aplicativo que coleta assinaturas eletrônicas em projetos de lei de iniciativa popular, revolucionando a relação entre eleitores e seus representantes”[6], ou a Liquecracia que é “uma comunidade que estimula e suporta a prática da democracia líquida no Brasil.”[7]
Temos exemplos também fora do Brasil, como o Partido Digital do Uruguai, que “actualmente disponemos de herramientas para votar leyes (propias o externas) acompañadas de un resumen en lenguaje no técnico y otros recursos pertinentes, y herramientas para dialogar sobre temáticas específicas”[8] e os Partidos Piratas mundo afora.[9]
Mas além de espaço de discussão e apoio em projetos de lei, o que mais podemos fazer? Deixo aqui algumas sugestões sem intenção de esgotar o tema ou garantia que sejam as melhores ideias:
Gamificação da política: por exemplo, definir pontuação por presença, para inibir as faltas injustificadas; pontuação por economia dos recursos parlamentares; pontuação por projetos apresentados; badges ou distintivos por boas ações prestadas, entre outros recursos comuns a jogos digitais;
Serviço de Atendimento ao Eleitor ou Reclame Aqui do Político: um canal direto entre o cidadão eleitor e seu representante, aberto à consulta pública, onde poderemos avaliar aqueles que realmente dão retorno à pressão popular;
Public Opinion Rewards: uma espécie de Google Opinion Rewards[10] para assuntos de interesse público, que poderia ser utilizado pelos representantes para sentir a opinião pública de forma mais rápida;
Uber de Assessores: uma forma de profissionalizar a assessoria política e dar um basta no nepotismo. Os candidatos a assessores postam seu perfil profissional, experiências, capacitações, e são qualificados tanto por quem contrata (o político), por seus pares (demais assessores que trabalham juntos) e pelos representados. E da mesma forma, eles podem qualificar quem os contrata. Tudo isso de forma pública e transparente. Chega de salário de assessor indo parar na conta do político.
E você? Tem alguma sugestão sobre o assunto? Contribua, por uma política mais limpa.
Referências:
[1] “Fica evidente, pois, que a Cidade é uma criação da natureza, e que o homem, por natureza, é um animal político [isto é, destinado a viver em sociedade], e que o homem que, por sua natureza e não por mero acidente, não tivesse sua existência na cidade, seria um ser vil, superior ou inferior ao homem.” (Aristóteles, Política. Coleção a Obra-prima de cada autor. Martin-Claret, São Paulo, 2010. pg. 56)
[2] GOMES, Wilson. A democracia digital e o problema da participação civil na decisão política. Revista Fronteiras – estudos midiáticos. Vol. VII, p 214-222, set/dez 2005.
[3] Idem
[4] Tradução livre de https://medium.com/organizer-sandbox/liquid-democracy-true-democracy-for-the-21st-century-7c66f5e53b6f
[7] https://www.liquecracia.com.br/sobrenos
[8] https://partidodigital.org.uy/
[9] https://pirate-parties.net/about-ppi/
[10] https://play.google.com/store/apps/details?id=com.google.android.apps.paidtasks&hl=pt
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