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29 de Maio de 2024

Rota de Colisão: A Súmula 102 do TJ-SP vs. A Taxatividade do Rol da ANS

Publicado por Felipe Ricacho
há 2 anos


1 – Introdução

 Não é prática incomum por parte das operadoras de plano de saúde negarem o tratamento alegando a não previsão no rol da ANS, bem como alegarem a natureza experimental do procedimento, colocando em risco a parte mais vulnerável da relação, quem seja, o consumidor.

 O contrato de seguro-saúde, regido pela lei n.º 9.656/1998, tem como finalidade resguardar a saúde do assegurado, protegendo-o contra eventuais doenças que possam incapacita-lo [1]. A questão quanto à relação de consumo é incontroversa, salvo os planos de saúde administrados por entidades de autogestão [2].

 Nesse cenário, editou-se a súmula 102 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, afirmando que é abusiva a negativa de cobertura, sob a fundamentação de natureza experimental do procedimento OU por não estar previsto no rol da ANS [3].

 O entendimento adotado pelo Tribunal Paulista foi duramente criticado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, reputando-a como insólita. Em síntese, afirmou que o TJ-SP usurpou a competência da ANS, uma vez que cabe à autarquia federal, com base em critérios técnicos, editar as referências básicas de atuação dos operadores de plano de saúde [4].

 Todavia, sustenta-se em sentido favorável à aplicação da súmula a alegação de que, eventual negativa na cobertura do tratamento, estaria em clara violação aos preceitos do Código de Defesa do Consumidor, sobretudo os apontamentos realizados quanto à adoção da interpretação menos favorável ao consumidor. Este entendimento poderia causar o afastamento da parte mais vulnerável em relação aos objetivos do contrato de seguro-saúde [5].

 A controvérsia está consolidada, uma vez que o entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ainda não se encontra pacificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

2 – O Rol da ANS e Conclusão

 A questão relacionada se o rol da ANS é exemplificativo ou taxativo encontra-se longe de ser pacificada, visto que, atualmente, iniciou-se o julgamento dos Embargos de Divergência, uma vez que 3ª Turma do STJ tem o entendimento que se trata de rol exemplificativo; porém, em relação à 4ª Turma do STJ, apontam para a impossibilidade de considerar o rol exemplificativo, reputando-o taxativo [6]. Após meses de espera, julgou-se os embargos de divergências.

 O entendimento da 2ª Seção do STJ foi de que o rol da ANS é taxativo, porém comporta exceção. Consignou-se que as operadoras não serão obrigadas a arcar com tratamento que esteja fora do rol, conquanto que exista outro procedimento igualmente eficaz. Neste caso, deverá o procedimento constar no rol, garantindo ao consumidor a possibilidade de extensão do contrato, visando alcançar o procedimento extra rol.

 Segundo o STJ tão somente em casos excepcionas que a operadora irá arcar com o tratamento indicado pelo médico que não conste no rol, desde que o procedimento que se visa obter não tenha sido indeferido pela ANS. Deve-se, também, comprovar a eficácia do procedimento, baseando-se em evidências e, por fim, desde que haja recomendação técnica. Portanto, nota-se que são três critérios objetivos para que se possa demandar procedimento fora dos casos previstos no rol da ANS [7].

 Para aqueles que militam em favor das operadoras, pode-se notar que a argumentação gira em torno da possível inviabilização dos planos de saúde, tendo em vista que ao adotar o entendimento exemplificativo da matéria, estar-se colocando as operadoras em situação desvantajosa, uma vez que não haverá qualquer limitação definida em relação à abrangência do tratamento, tornando-o mais caro [8]. Nesse sentido, afirmou-se:

O rol da ANS é solução concebida pelo legislador para harmonização da relação contratual, elaborado de acordo com aferição de segurança, efetividade e impacto econômico. A uníssona doutrina especializada alerta para a necessidade de não se inviabilizar a saúde suplementar. A disciplina contratual exige uma adequada divisão de ônus e benefícios dos sujeitos como parte de uma mesma comunidade de interesses, objetivos e padrões. Isso tem de ser observado tanto em relação à transferência e distribuição adequada dos riscos quanto à identificação de deveres específicos do fornecedor para assegurar a sustentabilidade, gerindo custos de forma racional e prudente [9].

 Não obstante, sustenta-se que cláusulas que possam colocar o consumidor em manifesta desvantagem devem ser afastadas, reputando-as como nulas de pleno direito, uma vez que o objetivo do contrato é a manutenção da saúde, isto é, clausulas que visam afastar o consumidor desta finalidade devem ser reputadas abusivas [10].

 Desse modo, pode-se notar no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que a negativa na cobertura por parte da operadora do plano de saúde, com base, POR SI SÓ, na não previsão no rol da ANS, poderá ser reputada como abusiva [11].

 Nesse sentido, deve-se notar que para aplicação da súmula 102 do TJ-SP, impõem-se como condição a indicação expressa médica, satisfazendo este requisito, eventuais alegações de não previsão no rol da ANS ou a natureza experimental poderão ser consideradas abusivas. Seguindo estes parâmetros, decidiu-se:

Plano de saúde. Associada portadora de câncer Negativa de tratamento com o uso de “neuronavegador para microcirurgia para tumores intracranianos”, por falta de inclusão no contrato e no rol da ANS e limitação de internações. Abusividade, pois o contrato prevê o tratamento da doença, cabendo ao especialista a indicação do tratamento. Descredenciamento de hospital especializado, sem comprovação de que o novo possui o mesmo padrão de equivalência. Inadmissibilidade, por violação ao artigo 17 da Lei nº 9.656/98 Continuidade admitida enquanto perdurar o tratamento - Danos morais caracterizados. Valor da indenização fixado em R$ 10.000,00 Recurso da ré improvido, provido o da autora [12].

 Nota-se, portanto, que é comum a negativa das operadoras de plano de saúde em excluir a cobertura quando o tratamento é considerado experimental. Trata-se de prática autorizada pelo Conselho Federal de Medicina, autoriza-se em situações específicas e pontuais, com base em indicação médica fundamentada em evidências cientificas que apontem para necessidade daquele tratamento considerado experimental [13].

 O Superior Tribunal de Justiça considera como abusiva:

É abusiva a recusa da operadora do plano de saúde de arcar com a cobertura do medicamento prescrito pelo médico para o tratamento do beneficiário, sendo ele off label, de uso domiciliar, ou ainda, não previsto em rol da ANS, e, portanto, experimental, mesmo se tratando de instituições sem fins lucrativos e que operam por autogestão [14].

 O posicionamento do TJ-SP vai de encontro com este julgado. A Corte Paulista teve a oportunidade de analisar caso semelhante. Tratava-se de pedido visando a cobertura de tratamento multidisciplinar, que foi negado pela operadora por não estar previsto no rol de procedimentos obrigatórios da ANS.

 O paciente é portador de Síndrome Di George e Tetralogia de Fallot, razão pela qual sua situação demanda tratamento multidisciplinar especializado, conforme laudo médico que apontou pela necessidade do tratamento, visando que a vida do paciente melhorasse. Houve recusa do tratamento alegando não previsibilidade no rol da ANS [15]. Pode-se extrair lição precisão do acórdão:

Em outras palavras, a limitação imposta excluiria o tratamento que foi prescrito como meio adequado e indispensável à tentativa de recuperação da higidez física da paciente, negando, pois, o próprio objetivo do contrato, o que não pode ser admitido. Sendo assim, é obrigação da ré fornecer o tratamento indicado à autora, nos termos do decisum.

 Diante do exposto, pode-se inferir que a questão é extremamente   controvertida, havendo decisões conflitantes entre o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo com o Superior Tribunal de Justiça.

 A questão será esclarecida quando houver decisão com trânsito em julgado apontando para o rol exemplificativo ou taxativo da ANS, visto que o entendimento da 2ª Seção do STJ não é vinculante, contudo, abriu-se forte precedente para fundamentar a negativa de tratamento.

  1. THEODORO JÚNIOR, H. Direitos do consumidor / Humberto Theodoro Júnior. 10. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p: 804

  2. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, súmula nº 608. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/internet_docs/biblioteca/clippinglegislacao/Sumula_608_2018_segunda_secao.pdf&...; THEODORO JÚNIOR, H. Direitos do consumidor / Humberto Theodoro Júnior. 10. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

  3. BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Súmula 102: Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS. Disponível em: < https://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Biblioteca/Biblioteca/Legislacao/SumulasTJSP.pdf>;

  4. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Agravo em Resp n.º 1.497.534/SP, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 5ª Turma, j. 23 de junho de 2020. Disponível em: < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/871547288/agravo-em-recurso-especial-aresp-1497534-sp-20....

  5. Brasil, Superior Tribunal de Justiça, AREsp n.º 1.219.394/ BA, Relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª região), j. 04 de setembro de 2018. Disponível em: < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/623422224/agravo-em-recurso-especial-aresp-1219394-ba-20...; BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, AgRg no AREsp n.º 708.082/DF, Relator Ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, j. 16 de fevereiro de 2016. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=148376...;

  6. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Embargos de Divergência em REsp n.º 1.886.929, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, j. em 8 de junho de 2022. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202001916776&aplicacao=processos.ea>;

  7. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, DJe 08/06/2022. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202...>

  8. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Embargos de Divergência em REsp n.º 1.733.013/PR, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 20/02/2020. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=190134...; THEODORO JÚNIOR, H. Direitos do consumidor / Humberto Theodoro Júnior. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p: 397

  9. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Embargos de Divergência em REsp n.º 1.733.013/PR, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 20/02/2020. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=190134...;

  10. BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n.º 101706-19.2021.8.26.0564, Relator Des. Márcio Boscaro, j. em 28 de maio de 2022.

  11. BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n.º 1039289-79.2021.8.26.0100, Relator Des. Jair de Souza, 10ª Câmara de Direito Privado, disponível em: < https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1517575618/apelacao-civel-ac-10392897920218260100-sp-1...;

  12. BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n.º 1016464-71.2020.8.26.0361, 7ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Luis Mario Galbetti, DJe 25 de maio de 2022

  13. THEODORO JÚNIOR, H. Direitos do consumidor / Humberto Theodoro Júnior. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p: 394

  14. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Relator Ministro Raul Araujo, 4ª Turma, Disponível em: < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1262942545/recurso-especial-resp-1946273-sp-2021-0181053....

  15. BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n.º 1004037-35.2020.8.26.0428, 9ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Galdino Toledo Júnior, DJe 12/04/2022

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