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Julgamento Ampliado - Ed. 2022

Julgamento Ampliado - Ed. 2022

3.1. Ressalvas Metodológicas

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Sumário:

A atribuição de significado a qualquer regra depende da maneira como o intérprete entende o contexto no qual ela surge, da forma pela qual ele enquadra suas perguntas, de onde ele as analisa, daquilo que antecipa e, talvez, inconscientemente, do que ele espera encontrar. Depende, em síntese, dos pressupostos epistemológicos do intérprete, que, por sua vez, são eles próprios histórica e culturalmente condicionados. 1

Portanto, a definição do significado da regra, além de produto subjetivo, é um produto cultural, pois não existe empiricamente dissociada dos significados que caracterizam uma cultura legal. Em resumo, a parte não existe sem o todo: uma regra só existe dentro do ordenamento e, por isso, para definir seu significado de maneira coerente, o intérprete deve relacioná-la a outros fenômenos, sobretudo o objeto sobre o qual ela incide e o suporte fático ao qual ela se aplica. 2 Tomando emprestada a expressão de Marcel Mauss, Legrand sugere que cada regra seja apreendida como um fait social total , isto é, um fato social total/completo. 3

Isso significa que as regras processuais são produto da escolha deliberada tomada dentro de um contexto maior e, por isso, não podem ser transplantadas de um ordenamento para outro sem alteração de significado. A reprodução do texto legal em outro contexto é insuficiente para replicá-lo tal como é originalmente, pois o significado a ele investido é específico à cultura para a qual ele foi concebido. 4

Apesar da impossibilidade de realizar “transplantes legais” e de definir qualquer regra processual como universalmente ideal, a análise das escolhas feitas por outros sistemas pode encorajar o pensamento crítico a respeito das nossas próprias regras e apresentar novas ideias e alternativas a problemas e dúvidas semelhantes. 5

Por isso, nesse capítulo, será analisada a técnica decisória norte-americana que prevê a (re) apreciação do recurso de apelação interposto diante dos Circuitos das Cortes Federais pelo Plenário em determinadas circunstâncias (item 3.2.). Antes disso, apresentam-se, no item seguinte (3.1.), as devidas ressalvas metodológicas desse estudo comparado.

3.1. Ressalvas metodológicas

3.1.1. O estudo de direito comparado

A seleção do objeto a ser comparado não é neutra, nem passiva. Ao contrário, tem como base um “projeto cultural” particular, isto é, uma finalidade específica. É ela que orienta não apenas a escolha do ordenamento no qual o objeto se encontra, como ele próprio e o método através do qual a comparação será realizada. 6

Considerando a pluralidade de objetivos possivelmente almejados com a realização de um estudo comparado, não existe método de comparação ideal. 7 Neste trabalho, a finalidade não é a harmonização das regras estudadas ou a eleição de uma como superior à outra. O objetivo é compreender o significado e os efeitos da técnica do artigo 942 na dinâmica decisória das Cortes de Justiça através da identificação de semelhanças e diferenças entre o dispositivo legal e a técnica decisória no common law norte-americano, sistema jurídico recorrentemente contraposto ao civil law .

Trata-se, portanto, de uma microcomparação, isto é, uma comparação que se desenvolve em escala reduzida com enfoque em regras específicas e problemas determinados. 8 O interesse principal é identificar uma instituição e uma regra que nela desempenhe, em outro sistema, função equivalente àquela analisada no ordenamento pátrio.

Nesse contexto, além de uma teoria, o institucionalismo também pode ser caracterizado como método de estudo comparado cujo objetivo é investigar diferentes configurações institucionais simultaneamente unificadas e plurais, 9 cujos problemas e soluções são funcionalmente equivalentes. 10

Isso não implica dizer que regras funcionalmente equivalentes estudadas no contexto das suas respectivas instituições sejam traduções exatas uma da outra. 11 Inclusive, para a seleção das regras e instituições a serem comparadas, não se pode confiar nos rótulos usados para nomeá-las, pois os conteúdos dos conceitos não são necessariamente padronizados em diferentes sistemas legais, mas definidos localmente. Assim, o mesmo conceito e a mesma instituição, em diferentes lugares, podem captar realidades diferentes, da mesma forma que rótulos diversos podem captar a mesma. 12

Uma regra é caracterizada como uma resposta possível, mas não obrigatória, a um problema; como uma solução contingente escolhida dentre várias possibilidades. Quando ela é identificada também em outro sistema, ainda que nele não esteja reproduzida identicamente, será passível de comparação. Ao contrário do antigo ditado, apples e oranges podem sim ser comparadas, pelo menos em alguns aspectos. 13

A equivalência funcional deve ser compreendida como método construtivo, para o qual a similaridade é identificada dentro da diferença. 14 As instituições estudadas são semelhantes em um aspecto, enquanto são, ou pelo menos podem ser, diferentes em todos os demais:

[...] a equivalência funcional é similaridade na diferença; é descobrir que as instituições são semelhantes em um aspecto (a saber, em uma das funções que cumprem), enquanto são (ou pelo menos podem ser) diferentes em todos os outros aspectos – não apenas em suas formulações doutrinárias, mas também em outras funções ou disfunções que podem ter além daquela em que o comparatista se concentra. A decisão de olhar para um determinado problema e, portanto, para uma determinada função, torna-se crucial para encontrar similaridade. Mas isso é sempre semelhança em relação a essa única função. A constatação da similaridade é contingente ao foco do comparatista [...] O funcionalismo leva à comparabilidade das instituições que podem assim manter sua diferença mesmo na comparação. Não pressupõe nem leva à semelhança. 15

O que se presume semelhante não são as instituições legais ou os problemas a serem resolvidos, mas a relação funcional entre problemas e soluções. 16

Tendo isso em vista, nesse estudo, foi selecionada uma técnica aplicada nas Cortes de Apelação Federais, Cortes de Apelação Estaduais e em algumas Cortes Supremas Estaduais dos Estados Unidos, 17 que também autoriza a ampliação do quórum do julgamento, denominada en banc (re) hearing . Por questões metodológicas, o estudo será limitado à ampliação do quórum do julgamento dos appeals de competência das Cortes de Apelação Federais norte-americanas. 18 Apesar de não compartilharem da mesma competência 19 e não integrarem a mesma estrutura, 20 tanto as Cortes de Justiça brasileiras quanto as Federal Courts of Appeals norte-americanas 21 não têm controle sobre sua agenda e reapreciam casos julgados em primeiro grau, via de regra, por quórum de três Magistrados e, em determinadas circunstâncias, por quórum ampliado.

Ao contrário de outros subtipos do método funcionalista, 22 no método da equivalência funcional, aqui adotado, as diferenças entre as regras e as instituições nas quais elas estão inseridas não são classificadas ou unificadas; elas são respeitadas e examinadas dentro da sua singularidade e do contexto maior. Apesar de as instituições ainda serem estudadas exogenamente, a partir dos seus problemas – e os seus problemas serem estudados a partir das soluções dadas pela instituição –, a equivalência funcional requer uma compreensão da sociedade como sistema constituído pela relação entre seus elementos, e não apenas por elementos independentes uns dos outros. 23

Logo, ainda que se trate de uma microcomparação, as características dos sistemas legais comparados devem ser levadas em consideração. A comparação é mais completa e eficiente quando, além das normas, analisa os modelos processuais dos quais elas fazem parte, as instituições nas quais elas são aplicadas e o que a doutrina nacional diz a seu respeito. 24

Para tornar possível e racional a análise de institutos pertencentes a ordenamentos diversos, não é necessária a pormenorização de cada modelo processual, sendo o bastante a sua construção a partir de “tipos ideais”. 25 Eles são instrumentos teóricos destinados a servir à análise comparada e ao conhecimento específico dos vários ordenamentos. 26 Por isso, passarão a ser analisados a seguir (subitem 3.1.2).

3.1.2. O sistema processual norte-americano

Tradicionalmente, o “tipo ideal” do civil law brasileiro se caracteriza pelo modelo inquisitório, isto é, pela atribuição de amplos poderes, sobretudo instrutórios, ao Juiz – de carreira – na condução do processo – majoritariamente escrito, e não oral. Além disso, o sistema prevalente do fact pleading , a partir do qual se exige a descrição dos fatos do caso e a delimitação das provas a serem produzidas e dos pedidos a serem avaliados, torna prescindível a divisão do processo em duas fases para a descoberta e a reconstrução dos fatos. 27

A comunicação dos fatos diretamente ao Juiz profissional de carreira, que está diariamente no Tribunal, possibilita a descontinuidade da dilação probatória, 28 cujo resultado é avaliado de acordo com seu livre convencimento, e não por exclusionary rules, tão típicas da tradição do júri do common law . 29

Os julgamentos de primeira instância estão sujeitos à impugnação recursal inclusive no que tange às questões de fato. Autoriza-se, até mesmo, a discussão a respeito de fatos novos (artigo 1.014 do CPC). 30 A despeito da falta de base constitucional, por estar tão profundamente arraigado na tradição civilista brasileira, o recurso é considerado parte da garantia fundamental ao procedimento justo. Em especial, o recurso de apelação é considerado “(…) uma continuação do processo de primeira instância”, e não um procedimento de segunda instância cuja competência é a “revisão totalmente separada”. 31

Por sua vez, o “tipo ideal” do processo civil anglo-americano tradicional era definido pela divisão do processo em duas fases – pre-trial e trial –, caracterizadas pelo modelo adversarial, a oralidade, 32 a existência do direito constitucional ao júri e o método de obter e utilizar opiniões de peritos privados em matérias técnicas. 33

A fase preparatória e prévia ao julgamento (pre-trial) caracterizava-se como adversarial, porque a investigação dos fatos era conduzida pelas partes, diante da postura passiva e complacente do Juiz, que intervia apenas em caso de abuso. Em parte, isso refletia um modelo de acesso à justiça extremamente simplificado e informal, que não exigia sequer a descrição dos fatos no complaint perante o Juiz federal – pelo menos até a reforma de 1938. 34 Essa tentativa de garantir a formulação do pleading também a quem não podia dispor de assistência jurídica para formulá-lo de maneira articulada em matéria de fato ou de direito era a principal manifestação do princípio do party-presentation e implicava uma série de consequências no plano técnico-processual – “[...] em particular a exigência de estruturação de uma fase sucessiva para a clarificação do objeto da controvérsia.” 35

Assim, o pre-trial do modelo tradicional tinha a função de reconstruir os fatos e de preparar as partes para o debate, sobretudo através da discovery , uma fase investigatória extrajudicial caracterizada pela colheita de depoimentos, por escrito ou via oral, e a realização de interrogatórios, exames físicos e mentais, inspeções, pedidos de produção de documentos e de admissão. 36 Essa fase ocorria sem a intervenção do Juiz, exceto quando era formulado pedido específico pelas partes ou era necessária a aplicação de sanções a alguma delas por falta de colaboração ou abuso na formulação dos requerimentos à outra.

Para Angelo Dondi, Vincenzo Ansanelli e Paolo Comoglio, essa dinâmica representava a finalidade dúplice de, “[...] por um lado, garantir um acesso virtualmente generalizado à justiça civil, simplificando ao extremo as formalidades iniciais, e, por outro, garantir que o processo se desenvolv[esse] sem surpresa em sede de debates.” 37

Na segunda fase, o trial , o papel do Magistrado era passivo e limitado à fiscalização da atuação dos advogados, responsáveis pela definição dos pontos controvertidos e das provas necessárias para resolvê-los, bem como pela produção probatória, por meio da inquirição de testemunhas e da apresentação de documentos. 38 Além da colheita das provas e da discussão da causa pelos advogados, na sessão de julgamento do trial concentrava-se a prolação oral da sentença pelo Juiz, 39 que não considerava a instrução realizada na fase da discovery, porque seu resultado não era classificado como prova em sentido técnico. 40

Para Oscar Chase, a singularidade da disciplina probatória norte-americana, tanto no trial quanto no pre-trial, relaciona-se com o direito a ser julgado pelo júri. A reunião de doze cidadãos leigos para deliberar sobre as provas e definir a responsabilidade das partes no processo civil, bem como o quantum indenizatório, se for o caso, exige, no mínimo, que eles disponham de seu tempo e se ausentem do trabalho. Nesse caso, o julgamento concentrado é virtualmente obrigatório, porque o adiamento do julgamento para a colheita de nova prova simplesmente não é viável. 41

O julgamento pelo júri nos Estados Unidos é um direito histórico e inviolável, garantido constitucionalmente pela Sétima Emenda para a apreciação de fatos, especificamente “nas demandas da common law ”, 42 porque, à época em que ela foi redigida, a justiça norte-americana dividia-se entre Cortes de common law e Cortes de equity , nas quais este direito não era previsto. 43 Com a fusão dessas Cortes tanto em nível estadual, após a Code-Pleading Reform , quanto em nível federal, com a adoção das Federal Rules of Civil Procedure – que, inclusive, reforçou sua inviolabilidade –, 44 todas as ações civis indenizatórias passaram a contar com o julgamento pelo júri conforme a disposição constitucional, exceto se tratassem de matéria de direito de família, sucessões e de falência. 45

As questões de fato também não serão apreciadas pelo júri quando as partes renunciarem a este direito ou concordarem em não se submeter a ele, 46 hipóteses em que caberá ao Juiz decidi-las, ao lado das questões de direito. 47 O Juiz também pode exercer o controle sobre a avaliação do júri a respeito das questões de fato antes e depois do anúncio do veredito. 48 No primeiro caso, se entender pela inexistência de provas suficientes para que o processo seja remetido ao júri ou, ainda, que o conjunto probatório existente é convincente a ponto de conduzir a um único resultado, o Juiz pode realizar o julgamento direto (direct veridict), espécie de julgamento sumário dado a posteriori . 49 O segundo caso será analisado adiante.

Diferentemente dos Magistrados continentais de carreira, o Juiz federal norte-americano é escolhido entre advogados pelo Presidente dos Estados Unidos e, depois, é aprovado pelo Senado, 50 o que, ao lado do protagonismo dos advogados durante o pre-trial e o trial , demonstra uma virtual confiabilidade moral na advocacia ou, ao menos, em parte de sua elite. 51

Em geral, os advogados estadunidenses têm formação profissional completa e pragmática, o que os torna capazes de responder de forma criativa e proativa aos conflitos e exigências sociais, bem como aos problemas de funcionamento do processo civil, autorizando, por um lado, a gestão processual a eles designada. 52 Por outro, a origem e a forma pela qual os Juízes federais são nomeados, somada ao status do júri na sociedade norte-americana, evidenciam uma forte descrença cultural no poder público. A esse respeito Stephen Subrin e Margaret Woo ressaltam, na página inicial de sua renomada obra, Litigation in America , que:

A histórica desconfiança americana diante da concentração de poder, de autoridade e do governo levou a uma estrutura governamental que se baseia no princípio da separação de poderes entre o executivo (o Presidente no nível federal e o governador no nível estadual), o legislativo e o judiciário, bem como em um sistema federal de governo. Os 50 estados que compõem os Estados Unidos compartilham muito do poder que em outros países reside no governo central da nação. A mesma desconfiança em relação ao poder concentrado também levou à retenção persistente de um sistema adversarial de adjudicação dependente de advogados e baseado no júri. Os júris, mais prevalentes nos Estados Unidos do que em qualquer outro lugar do mundo, atuam como um freio ao poder governamental e corporativo. Essas características – separação de poderes, federalismo, forte dependência de advogados e julgamentos por júris – são centrais na compreensão do processo e da litigância cíveis norte-americanos. 53

O fato de, curiosamente, para a discussão de questões técnicas, ser autorizada às partes a seleção de um perito particular para depor na qualidade de testemunha também espelha essa desconfiança, sobretudo porque, apesar de ser disponibilizada no art. 706 das Federal Rules of Evidence 54 a convocação de um perito neutro, essa prerrogativa é muito pouco utilizada pelos Tribunais. 55

O expert contratado, porquanto pago pela parte, familiariza-se com a estratégia jurídica desenvolvida por seus advogados, que, além de prepará-lo, restringem o contato que terá com a parte contrária. O arcabouço legal nessa área, além de flexível, protege as partes e a atuação estratégica dos seus counselors , permitindo com que o depoimento do perito seja descartado no trial …

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26 de Maio de 2024
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