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Garantias Autoexecutáveis

Garantias Autoexecutáveis

4. A Desjudicialização das Garantias

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Para que prospere, o mercado precisa confiar que as obrigações serão cumpridas celeremente. No entanto, essa rapidez não é própria do Poder Judiciário, cuja estrutura é insuficiente para lidar com a massificação dos negócios jurídicos. Tal fato é pernicioso às relações negociais, pois “o aumento da litigiosidade e da incerteza do resultado de disputas judiciais [...] aparecem como [...] custo de transação” 1 . Por isso, é necessário “repensar a Justiça. E, no desempenho dessa tarefa, é imperativo que se considerem não apenas, como até aqui tem acontecido, os operadores do sistema judiciário, mas, especialmente, os consumidores da Justiça [...]” 2 . É nesse contexto que se vem buscando garantias cuja executoriedade não dependa da intervenção jurisdicional.

A autoexecutoriedade das garantias exclui a atuação a priori do Estado. A satisfação da garantia é obtida “pelo próprio credor [...] sem intervenção das autoridades: nem dos tribunais e nem dos órgãos estatais” 3 ; em um segundo momento, se necessário, as partes buscam “meios adequados para assegurar suficiente proteção contra o abuso de ambos os lados, enquanto a eficiência da cobrança do débito por si mesma não é afetada” 4 .

Com as garantias autoexecutáveis, altera-se a lógica executiva das garantias. Em vez de só se concretizarem com auxílio do Poder Judiciário, recebem efeito prático por ato do próprio credor. É tendência e necessidade. Como já afirmava Antonio Junqueira de Azevedo, “da fuga para o juiz, cabe hoje falar em fuga do juiz – e isso, diga-se, não diminui o Poder Judiciário, eis que este fica limitado a agir nas hipóteses em que, de fato, é necessário como julgador” 5 .

Tradicionalmente, é vedado que o credor se “autopague” porque se proíbe o pacto comissório. Como anota Lafayette Pereira, proíbe-se a cláusula de apropriação do bem para “proteger o devedor, sob a pressão da necessidade de momento, contra as exigências avaras do credor” 6 . Para Carvalho Santos, a vedação “funda-se em um motivo de ordem ética” 7 , a fim de se “evitar [...] que a pressão da necessidade leve o devedor a convencionar o abandono do bem ao credor por quantia irrisória” 8 . Para o autor, tal pacto desnatura a garantia, pois “estabelece uma venda condicional” 9 , subtraindo a “concorrência de compradores, desde que, em última análise, é uma alienação ajustada a determinada pessoa” 10 . Acentua Clóvis Beviláqua que “a proibição tanto se refere ao ato constitutivo da garantia quanto à convenção posterior [...] porque o fundamento da nulidade da cláusula comissória é de ordem moral”, donde “o imperador Constantino [...] fulminou-a com a nulidade” 11 .

A vedação ao pacto comissório foi consagrada no Código Civil pelos arts. 1.365 e 1.428, segundo os quais “é nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento” (art. 1.365) e “é nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento” (art. 1.428). Admite-se apenas que, após o vencimento da dívida, o credor dê a coisa em pagamento da dívida (art. 1.428, parágrafo único).

No entanto, a proibição vem sendo relativizada em sede acadêmica, exemplificativamente, por Luís Gustavo Haddad, para quem “o aspecto verdadeiramente deletério da celebração do pacto comissório reside na possível desproporção entre o valor de mercado do bem objeto de garantia e o valor da obrigação garantida”, de modo que, em “havendo meios de assegurar a inexistência de excesso, ou de exigir de antemão que tal excesso seja restituído ao devedor [...] elimina-se o que há de reprovável no pacto comissório” 12 .

Nessa mesma linha de argumentação, Gisela Sampaio da Cruz Guedes e Aline de Miranda Valverde Terra afirmam que a proibição do pacto comissório não pode se estender ao pacto marciano. Por esse, permite-se que, no inadimplemento do devedor, o credor se aproprie da garantia, mas “desde que (i) o bem seja previamente submetido a uma avaliação independente, levada a cabo por terceiro, (ii) e seja devolvida ao devedor a quantia que, eventualmente, sobejar o valor da dívida” 13 . Os pactos marciano e comissório se diferenciam “no fato de o credor, no primeiro, poder ficar com o bem, sem prejudicar o devedor, nem os demais credores, porque o submete à avaliação de um terceiro independente e imparcial” 14 . O pacto marciano não se afigura abusivo porque, ao contrário do comissório, permite a obtenção de preço justo, bem como “o pagamento da diferença entre o preço estipulado e o saldo devedor” 15 .

Não obstante a proibição do pacto comissório pelo Código Civil , diversos institutos do Direito brasileiro permitem a apropriação da garantia. É o que se dá, por exemplo, na alienação fiduciária de bem imóvel quando frustrados o primeiro e o segundo leilões e na cessão fiduciária de crédito, entre outros.

A relativização da proibição ao pacto comissório abre espaço para ampla desjudicialização das garantias, que é realidade antiga no Direito estrangeiro, especialmente em países da common law, e, no Brasil, vem sendo assimilada cada vez mais pelo mercado, com a chancela da jurisprudência.

4.1. No direito estrangeiro

4.1.1. Estados Unidos da América

O sistema norte-americano utiliza instrumentos de autoexecutoriedade sob um enfoque claramente utilitarista. Como anota Anthony F. Mooney,

os defensores da reintegração de posse extrajudicial argumentam que ela é vantajosa do ponto de vista econômico, além de necessária. Eles afirmam que um sistema de reintegração de posse por “autotutela”, que não envolve honorários caros, é muito mais vantajoso economicamente do que um processo legal formal. Do ponto de vista da necessidade, a reintegração de posse extrajudicial é essencial para a proteção das garantias do credor. Os bens pessoais, como foi apontado, podem ser facilmente perdidos, vendidos ou subtraídos antes que o credor possa obter provimento dos tribunais 16 .

A autotutela econômica é instrumento ínsito não só ao direito norte-americano, mas às tradições da própria common law. Vide, a respeito, o quanto decidido em Cook versus Lilly (Supreme Court of Appeals of West Virginia – 1974):

O direito à autotutela já era previsto na common law como um instrumento aceitável. Os tribunais devem estar cientes de que o recurso à lei é dispendioso e demorado, e que, apesar de intimações, audiências e procedimentos complexos serem adequados e necessários em muitas circunstâncias, eles também aumentam o custo dos negócios e têm efeitos potencialmente negativos sobre a indústria e o comércio 17 .

Como assinala James R. Macall,

O direito de reintegração em caso de inadimplência existe, nos Estados Unidos, aos garantidos por estatuto, pela common law ou pelo acordo das partes, praticamente desde o início da república. Na Inglaterra, com uma história jurídica mais extensa, o remédio está bem estabelecido há várias centenas de anos. Os gregos e romanos reconheceram o remédio durante a antiguidade 18 .

Tal instrumento (de reintegração de posse extrajudicial) não havia sido reconhecido, no âmbito da common law, antes do século XIII. Até então era considerado uma “violação da paz” 19 . Segundo James R. Macall,

Durante a maior parte de sua história, a common law inglesa adotou uma visão extremamente restritiva em relação a qualquer remédio que envolvesse a autotutela. A autotutela violenta ou agressiva, que resultou em uma violação da paz, era considerada ofensa ao poder real, e, se informal, estritamente proibida até pelo menos o final do século XIII 20 .

Observa Ryan McRobert, porém, que “à medida que a Idade Média progredia, a oposição inglesa aos instrumentos de autotutela diminuiu, embora esses remédios continuassem sujeitos a regras e regulamentos restritivos” 21 . Relata-se que, no último quartel do século XIII, pelo menos um juiz considerou legal o exercício da autotutela recuperatória por seu legítimo proprietário, desde que o credor não praticasse crime no ato da apreensão da coisa.

De acordo com James R. Macall, “com a passagem de século, a autotutela em geral (e a retomada de bens sem um dispositivo de garantia específico) tornou-se aceita. [...]” 22 ; “durante o período entre os séculos XIII e XIX, a common law permitiu cada vez mais a autotutela em alguns limitados contextos, nos quais seu uso não pudesse produzir injustiça às partes ou violação da paz não autorizada pela lei [...]” 23 .

Nos Estados Unidos da América, a reintegração de posse extrajudicial foi reconhecida em julgado no qual se decidiu que o proprietário de escravos teria direito de recuperá-los à força, em caso de fuga. Segundo Ryan McRobert,

A Suprema Corte dos EUA tratou da reintegração de posse em 1842. Prigg v. Pensilvânia dizia respeito à reintegração de posse de um escravo que havia escapado de Maryland e atravessado a Pensilvânia. Ao decidir que o proprietário de escravos tinha permissão para perseguir e retomar sua propriedade, o Tribunal aplicou os princípios ingleses referentes à autotutela, incluindo o que concerne à violação da paz 24 .

A conclusão é reforçada pela doutrina de F. Anthony Mooney, para quem o direito de retomada extrajudicial ingressou no Direito norte-americano por analogia ao direito de recaptura de escravos:

A common law geralmente reconhecia o direito de o vendedor, na venda com reserva de domínio, recuperar as garantias sem recorrer aos tribunais, em caso de inadimplência do comprador. Exemplos desse princípio podem ser encontrados em casos norte-americanos que datam de pelo menos 1809, quando a Suprema Corte de Nova York, em um case envolvendo direitos de posse em um terreno imobiliário, declarou: “Em um caso que tem analogia com o presente, de propriedade pessoal, existe o direito de recaptura, com a cautela de que não seja exercido com violência ou por uma violação da paz”. [Hyatt v. Wood] A New York Court of Common Pleas invocou esse ditado 60 anos depois ao defender o direito de um vendedor, na venda com reserva de domínio, recuperar pacificamente uma máquina de costura sem processo judicial formal. Ao assim agir, o tribunal observou que a regra aplicável “permite que uma parte recorra a todos os meios possíveis para recuperar seus bens, com exceção da quebra da paz” [Kinny v. Planer] 25 .

Daí em diante, os tribunais passaram a tratar a autotutela recuperatória como inerente à compra e venda com reserva de domínio 26 e o instrumento acabou consagrado pela Lei Uniforme de Vendas Condicionais, de 1919.

Na norma referida, previu-se o direito à retomada extrajudicial sem qualquer condição que não fosse a “não ocorrência de quebra da paz”. Como ressalta James R. Macall,

os tribunais geralmente permitiam que o vendedor exercesse a autotutela recuperatória, mesmo sem disposição expressa no contrato em que previsto o direito, com base na natureza intrínseca da compra e venda com reserva de domínio, no qual o vendedor mantém a propriedade e, por implicação, o direito de retomada. A amplamente adotada Lei Uniforme de Vendas Condicionais, proposta pela primeira vez em 1918, deu ao vendedor o direito de reintegração, sem oitiva da parte, em caso de mora no pagamento, sem nenhuma outra condição material, desde que realizada sem violação da paz 27 .

Pouco depois, com o reconhecimento sistemático da autotutela recuperatória, o instituto acabou consagrado no Artigo 9 do UCC (Uniform Commercial Code) 28 . Anota F. Anthony Mooney que

A regra que permitia a reintegração extrajudicial foi consistentemente reconhecida durante o final do século XIX e início do século XX, e em 1919 alcançou aceitação geral quando os National Commissioners on Uniform State Laws, ao promulgar o Uniform Conditional Sales Act (UCSA), autorizaram a reintegração extrajudicial pacífica em caso de mora do devedor. O Código Comercial Uniforme, que substituiu o UCSA, também autoriza expressamente a reintegração não judicial. A Seção XXXXX-503 do Código estabelece: “A menos que acordado de outra forma, o garantido tem, como regra, o direito de tomar posse da garantia. Ao tomar posse, o garantido poderá prosseguir sem processo judicial, se isso puder ser feito sem violação da paz, ou pode prosseguir por ação”. Essa disposição “segue as disposições da legislação uniforme anterior ao permitir que o garantido na maioria dos casos se apodere da garantia sem processo judicial”. Assim, a regra do Código quanto à reintegração extrajudicial é semelhante à do UCSA, exceto que o UCSA era mais específico quanto às circunstâncias que caracterizavam a mora 29 .

O Artigo 9 do UCC não é propriamente um “artigo”. Como observa Luis Rojo Ajuria, “o Artigo 9 não é um artigo no sentido europeu. O Artigo 9 é equivalente a uma lei geral de garantias mobiliárias [...]” 30 . Trata-se de uma extensa coleção de dispositivos que mais se assemelha a um “código”. Contudo, conforme ressalva o autor, “também é necessário enfatizar, diante de nossa mentalidade jurídica, que o Código Comercial Uniforme não é um código, pelo menos no sentido clássico [...]” 31 . Isso porque há, no Artigo 9 do UCC,

um Comentário Oficial correspondente a cada seção e subseção, no qual, em vez de uma interpretação autêntica, encontramos um desenvolvimento dos objetivos e princípios nos quais os redatores do Código Comercial Uniforme se baseavam. Além disso, o Código Comercial Uniforme não revoga globalmente toda a Lei anterior [...] 32 .

Em sua Seção XXXXX-102, estabelece-se que a norma

se aplica a qualquer transação (independentemente de sua forma) cujo objetivo seja criar um direito de garantia sobre bens móveis ou pertenças, incluindo bens, documentos, intangíveis em geral, papel ou documentos de propriedade. [...] Bens pessoais incluem: ativos materiais e intangíveis, créditos e diferentes tipos de valores mobiliários 33 .

O reconhecimento legal da autotutela recuperatória, pelo Artigo 9 do UCC, gerou um intenso debate doutrinário e jurisprudencial sobre sua constitucionalidade. Isso porque a 14ª Emenda dispõe que

Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiverem residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis 34 .

Por sua vez, se antes a autotutela reparatória era reconhecida pela jurisprudência, passou, com o Artigo 9 do UCC, a sê-lo também por lei. Disso decorreu linha interpretativa de que, com o Artigo 9 do UCC, o instituto afrontaria a “impossibilidade de fazer executar leis” que privam os cidadãos de seus bens “sem o devido processo legal”. Não havia essa discussão antes do Artigo 9 do UCC porque a autotutela recuperatória era reconhecida apenas pela jurisprudência, mas não pela lei – a que se refere a proibição contida na 14ª Emenda.

A questão chegou à Suprema Corte e, no caso Fuentes versus Shevin (U.S. Supreme Court – 1972), decidiu-se que o direito à recuperação extrajudicial feriria a 14ª Emenda. Discutia-se a situação de Margarita Fuentes, que contestava a constitucionalidade dos procedimentos de busca e apreensão sem prévia oitiva do réu. No julgado paradigmático, narrou-se que

Margarita Fuentes é residente da Flórida. Ela comprou um fogão a gás e um pacote de serviços da Firestone Tire and Rubber Co. (Firestone) por meio de um contrato de compra e venda com reserva de domínio em que se exigiam pagamentos mensais durante um período de tempo. Alguns meses depois, ela comprou um fonógrafo estereofônico da mesma empresa, sob o mesmo tipo de contrato. O custo total do fogão e do aparelho de som era de cerca de US$ 500, mais uma taxa de financiamento adicional de mais de US$ 100. Nos termos dos contratos, a Firestone mantinha a propriedade da mercadoria, mas a Sra. Fuentes tinha direito à posse, a menos e até que ela viesse a incidir em mora no pagamento das parcelas.

Por mais de um ano, a sra. Fuentes realizou o pagamento das parcelas. Mas então, restando apenas cerca de US$ 200 a serem pagos, surgiu uma disputa entre ela e a Firestone sobre a posse do fogão. A Firestone ajuizou uma ação em um tribunal de pequenas causas para recuperar o fogão e o aparelho de som, alegando que a sra. Fuentes havia se recusado a fazer os pagamentos restantes. Simultaneamente a este processo, e antes que a sra. Fuentes recebesse uma intimação para responder à sua reclamação, a Firestone obteve um mandado de busca e apreensão ordenando a um xerife que apreendesse imediatamente os bens em litígio.

Seguindo os processos da Flórida, a Firestone precisou apenas preencher os campos de um formulário e enviá-lo ao encarregado do tribunal de pequenas causas. O funcionário assinou e carimbou os documentos e emitiu um mandado de busca e apreensão. Mais tarde, no mesmo dia, um xerife local e um agente da Firestone foram à casa da sra. Fuentes e tomaram o fogão e o aparelho de som 35 .

A lei permitia que a Firestone assim procedesse. Conforme anotou a Suprema Corte, “de acordo com a legislação da Flórida [...] ‘qualquer pessoa cujos bens móveis ou imóveis sejam detidos indevidamente por qualquer outra pessoa... pode ter um mandado de busca e apreensão para recuperá-los...’” 36 . Com base na norma estadual,

no mesmo momento em que o réu recebe o mandado de busca e apreensão de bens, no âmbito da ação judicial, os bens são retomados. Ele não recebe aviso prévio e não tem oportunidade de contestar a emissão do mandado. Após a propriedade ser retomada, ele tem a oportunidade de uma audiência, como réu no julgamento da ação judicial de reintegração de posse, que o requerente é obrigado a ajuizar 37 .

Tal procedimento, para a Suprema Corte, teria constituído inovação da norma estadual, porque,

pela common law, se um credor desejasse invocar o poder do Estado para recuperar bens detidos indevidamente, ele teria que prosseguir com a ação de cobrança ou reintegração. Essas ações, no entanto, não previam a devolução de propriedade antes do julgamento final. E, mais importante, nas ocasiões em que a common law permitia a apreensão liminar, por meio do Estado, fornecia algum tipo de aviso e oportunidade para ser ouvida a parte que estava na posse da propriedade e um funcionário do Estado fazia pelo menos um resumo dos direitos em disputa antes de retirar os bens de uma das partes 38 .

Em adição, observou-se no julgado que

O direito constitucional de ser ouvido é um dever básico do Estado no processo decisório de retomada dos bens de uma pessoa. O objetivo deste requisito não é apenas garantir uma justiça processual abstrata para o indivíduo. Seu objetivo, mais particularmente, é proteger o uso e a posse de bens de invasões arbitrárias – minimizar reintegrações substancialmente injustas ou equivocadas, um perigo que é especialmente grande quando o Estado apreende bens mediante simples requerimento e para benefício de um particular 39 .

À vista de tais argumentos, a Suprema Corte decidiu que a retomada extrajudicial constituiria procedimento inconstitucional, por ofensa à 14ª Emenda, na medida em que afrontaria o “direito de uma pessoa usufruir do que é dela, livre de interferências governamentais” 40 . Essa “interferência” estaria consubstanciada no advento de lei regulando procedimento que antes era reconhecido apenas pela common law (sem interferência governamental “da lei”).

O entendimento, até então adstrito à legislação da Flórida, consolidou, em solo norte-americano, a ideia de que a recuperação extrajudicial somente seria possível se ocorresse sem interferência do Estado, ou, na linguagem utilizada pela jurisprudência norte-americana, sem “ação do Estado” 41 . No entanto, dali surgiria intenso debate sobre o que constitui “ação do Estado”.

Em um primeiro momento, a doutrina entendeu que a mera previsão legal (a tão só inserção do instituto no Artigo 9 do UCC) constituiria uma “ação estatal” contra o particular, uma vez que a lei é “ato do Estado”. Para essa corrente, a recuperação extrajudicial, até então reconhecida apenas pela common law, teria passado a ser inconstitucional com o advento do Artigo 9 do UCC.

Steven Kurt Sanders sustentou, em 1973, que

a tese de que a ação prevista na Seção XXXXX-503 constitui medida estatal é apoiada pelos cinco argumentos a seguir: Primeiro, a medida estatal pode ser encontrada na autotutela recuperatória porque a ação prevista na Seção XXXXX-503 é realizada de acordo com lei estadual que autoriza a recuperação por autotutela. Segundo, a reintegração por autotutela, nos termos da Seção XXXXX-503, é ação estatal na medida em que o Estado impõe que o contrato autorize a reintegração por autotutela (o Estado impõe ao não declarar, em ação judicial, que é inválido). Terceiro, a reintegração por autotutela, sob a Seção XXXXX-503, é uma medida estatal porque o Estado incentiva essa ação. Quarto, o Estado age sempre que promulga legislação. E, Quinto, o estado age quando um particular retoma os bens de outra pessoa porque a reintegração de posse é uma função do Estado e há pouca diferença substancial entre a reintegração de posse fundada em um mandado e apreensão realizada por um indivíduo 42 .

Para o autor, em primeiro lugar,

uma vez que a lei estadual autoriza o acordo previsto na Seção XXXXX-503 e, de fato, prevê que exista em contrato ainda que as partes não o prevejam, o Estado agiu dentro do significado de ação estadual da Décima Quarta Emenda, porque os direitos privados estão sendo invadidos pela força de um acordo realizado nos termos da lei estadual. Os direitos privados que estão sendo invadidos envolvem a liberdade de contratar como se queira e o direito de prévia oitiva antes da reintegração de posse. O acordo é feito de acordo com a lei estadual, porque a lei estadual autoriza a recuperação por autotutela, independentemente de o contrato a prever ou não 43 .

Em segundo lugar,

a ação estatal está presente porque o Estado aplica as disposições de recuperação por autotutela nos acordos privados de garantia. Em uma ação judicial entre particulares, não há dúvida de que a aplicação pelos tribunais da common law de um Estado constitui uma ação estatal que deve estar em conformidade com os requisitos da Décima Quarta Emenda. [...]

O Estado também está aplicando a Seção XXXXX-503 quando não a declara inválida. Não agir é agir. Observe que, pelos termos expressos do Código, as disposições de autotutela podem ser utilizadas sem ação judicial. [...] há ação estatal envolvida não apenas na aprovação da Seção XXXXX-503, mas em sua operação e em sua aplicação pelos tribunais [...] 44 .

Em terceiro lugar,

a ação estatal está presente porque a Seção XXXXX-503 autoriza e incentiva a recuperação por autotutela. [...] Duvida-se que a intenção do Estado, ao aprovar a Seção XXXXX-503, fosse autorizar, incentivar, legalizar e se envolver significativamente em reintegrações de posse pacíficas? Se não, deve-se concluir que o Estado está agindo quando um particular realiza uma reintegração de posse pacífica, conforme permitido pela Seção XXXXX-503.

A Seção XXXXX-503 nem pretende ser neutra. Primeiro, proíbe o Estado de limitar ou minorar o direito à reintegração de posse por autotutela [...]. Segundo, a Seção XXXXX-503 proíbe o judiciário de desenvolver precedentes de common law contra a autotutela. Terceiro, e mais importante, a Seção XXXXX-503 prevê disposições de autotutela nos contratos de garantia, a menos que as partes acordem em contrário. Assim, o ônus é de que as partes tomem medidas afirmativas para excluir a autotutela de seu contrato. Quarto, a Seção XXXXX-503 concede ao vendedor direitos que não foram negociados. É concedido ao vendedor o luxo de decidir se deve exercer os direitos que as partes podem nunca ter discutido e que não precisam ser previstos no contrato. [...]

O envolvimento do Estado na decisão de contratar ou não é muito menos significativo, em termos de ação estatal do que o envolvimento do Estado na redação dos termos de um contrato privado. Em uma primeira instância, o Estado simplesmente diz que você não precisa contratar se não quiser. Por outro lado, o Estado diz que, se você contratar, seu contrato conterá uma previsão de autotutela, a menos que você decida expressamente o contrário. É tomada uma decisão para incluir a recuperação por autotutela no contrato sem nenhuma ação de nenhuma das partes [...] 45 .

Em quarto lugar,

o legislador não promulga legislação fútil [...]. [e indaga:] “Qual é o objetivo da Seção XXXXX-503?” Se o legislador não pretendia incentivar a recuperação por autotutela e desencorajar a ação judicial, se o legislador não pretendia imunizar os particulares das repercussões legais da reintegração de posse, o que o legislador pretendia fazer? Não é irrazoável supor que as legislações de 49 estados fizeram uma “coisa fútil” ao aprovar a Seção XXXXX-503? 46 .

Em quinto lugar, afirmou que, uma vez prevista em lei, “a diferença substancial entre a apreensão por um agente do Estado com base em mandado emitido pelo Estado e a apreensão por um particular sem mandado emitido pelo Estado passa a ser apenas uma questão de forma” 47 .

Pouco tempo depois, em 1974, Dixie L. Laswell se contrapôs a essa tese, sustentando que, embora prevista em lei, a recuperação extrajudicial (o ato de recuperar) não traduziria “ação do Estado”, por não envolver auxílio (operacional) deste. Logo, ainda que prevista em lei, a recuperação extrajudicial não feriria a 14ª Emenda. De acordo com o autor,

para que uma ação estatal significativa se caracterize, deve ter havido um comportamento ativo por parte do Estado. A ação estatal não está presente na conduta privada de um indivíduo. O Estado deve estar envolvido direta ou ativamente, em vez de apenas emprestar seu apoio passivo 48 .

Argumenta que

a cláusula do devido processo da décima quarta emenda proíbe apenas a ação estatal, não a ação privada. Como a recuperação por autotutela não envolve ação estatal, não há exigência de que o devedor [...] receba notificação da reintegração de posse antes da tomada 49 .

Ancora seu pensamento na jurisprudência das cortes locais, indicando que

os tribunais distritais federais não assentem sobre se a adesão do Estado ao UCC constitui uma ação estatal significativa. A raiz do problema é determinar se o UCC apenas repisa o direito contratual à recuperação da common law ou se confere ao credor garantido um novo direito de retomar sumariamente a propriedade [...] 50 .

No caso King versus Jersey Nat. Bank (Supreme Court of New Jersey – 1974), decidiu-se que o comportamento estatal “passivo” – de apenas autorizar a autotutela recuperatória – não constituiria “ação do Estado”. Assentou-se que, ao trazer a recuperação extrajudicial para o bojo da legislação, o Artigo 9 do UCC apenas reconheceu direito já existente, não havendo inovado – e não tendo incidido, pois, na proibição contida na 14ª Emenda.

No caso em questão,

o recorrente, William B. King (autor), comprou e recebeu um automóvel de um revendedor, firmando um contrato de venda parcelada sob o qual prometeu pagar o saldo devedor mensalmente. O contrato impunha um gravame sobre o automóvel para garantir o pagamento das parcelas mensais no vencimento. O contrato previa que, no caso de inadimplência no pagamento, o saldo não pago se tornaria devido e exigível e o vendedor e a cessionária poderiam, “sem aviso ou processo legal, entrar em qualquer local onde os bens possam ser encontrados [e] pacificamente tomar posse deles”

Após a entrega do automóvel, o vendedor o cedeu ao South Jersey National Bank (Banco). O Recorrente deixou de pagar uma parcela mensal vencida (de que havia sido notificado) e o Banco invocou cláusula de vencimento antecipado, exercitando pacificamente seu direito de recuperar o automóvel sem aviso prévio ao autor, conforme o contrato o autorizava a fazer. Mais tarde, o autor se ofereceu para compensar o pagamento em falta, mas este foi rejeitado e ele foi informado de que o carro seria devolvido apenas se pagasse o total do saldo restante.

O Banco enviou ao autor um aviso de que o automóvel seria vendido em leilão público. No mesmo dia, o autor apresentou uma queixa na Divisão de Chancelaria e obteve um pedido para impedir temporariamente a venda até sua oitiva [...] 51 .

Ao se deparar com tais fatos, o tribunal entendeu que “a reintegração de posse era uma questão contratual privada e não uma ação estatal, e por isso estava imune a ataques constitucionais”. Sustentou que “essa conclusão é apoiada por uma esmagadora maioria de tribunais federais e estaduais que declararam (vários deles em tempos muito recentes) que a recuperação por ‘autotutela’ não é um ato sob o pálio das leis estaduais, e, portanto, nenhuma medida estatal ocorre” 52 .

Observou a Corte:

deve-se notar primeiro que o direito de à reintegração de propriedade por autotutela, em circunstâncias como as aqui envolvidas, longe de ser um direito criado [...] tem raízes profundas na common law e é reconhecida há séculos. [...]

O objetivo principal da inclusão de tais direitos na Lei Uniforme de Vendas com Reserva de Domínio era a proteção do comprador [...] e o mesmo se deu com a proteção do comprador no Código Comercial Uniforme. Mas nenhum estatuto ampliou o direito básico da common law, de recuperar por meio da autotutela.

Nenhum direito novo foi criado pela mera previsão desse procedimento na legislação. A codificação é apenas uma reorganização legislativa do direito já existente. A energia legislativa é gasta, mas para que o direito permaneça o mesmo. Nada foi criado ou desconstruído (pelo menos no que diz respeito à Seção 12A: 9-503 contestada), e essa atividade legislativa claramente não constitui “ação estatal” sob a Décima Quarta Emenda. [...] Como era na common law, o Estado é totalmente alheio ao processo de reintegração de posse, pelo menos até depois da retomada, quando certas salvaguardas adicionais entram em jogo para a proteção do comprador original [...].

A Décima Quarta Emenda não pretendia impor aos estados soberanos um novo padrão inflexível e doutrinário de conduta. Em vez disso, procurou preservar valores e direitos considerados inerentes à condição humana, garantindo que os Estados, como membros da união federal, jamais ousassem por lei ou outra ação interferir na partilha igualitária desses benefícios, nem suprimir nenhum, exceto pelo devido processo legal. Assim, a Emenda não cria nenhum escudo (The Civil Rights Cases, supra) contra a ação privada, por mais injusta que seja [...]. A Emenda, em vez disso, imuniza o povo da ação estatal que pode afetar afirmativa e significativamente os direitos fundamentais, tão pensados ​​como sendo inerentes à sua natureza e não criados por qualquer constituição ou outro trabalho humano.

[...] A mera passividade na ação estatal não é proibida. A ação do Estado não é invocada; está contido. Assim, como escudo e não espada, a Emenda assegura ao povo o devido processo e igual proteção das leis.

Assim, a neutralidade de estado, como aqui demonstrado em 12A: 9-503, supra, nem comandando nem proibindo a ação o quanto contratado entre as partes, está longe do incentivo estatal [...].

A própria essência da liberdade civil certamente consiste no direito de todo indivíduo invocar a proteção das leis, sempre que sofrer ofensa. Um dos primeiros deveres do governo é garantir essa proteção.

Negociar no mercado e contratar de maneira não contrária à lei, moral, honestidade ou política pública, práticas reconhecidas por longa tradição e não criadas nem proibidas por lei, não nos pareceria envolver uma questão de direitos fundamentais, nem ser ofensivo para qualquer uma das seções da Constituição de Nova Jersey invocada pelo autor. Deve-se lembrar que, por força do contrato aqui discutido, havia uma dualidade de interesse de propriedade nesse automóvel, e que “[a] resolução da questão do devido processo” (de acordo com as Constituições estaduais e federais) “deve levar em conta não apenas os interesses do comprador do imóvel, mas também os do vendedor”. [...]

O direito do credor de exercer autotutela e recuperar as garantias após a mora no pagamento da obrigação é reconhecido há muito tempo, embora com graus variados de restrição legal ao longo dos séculos [...].

De fato, [o Estado] sancionou e talvez até encorajou os credores no uso da recuperação por autotutela. Mas não entendo que esse ato seja o tipo de conduta afirmativa que tenha dado origem a uma ação estatal [...] 53 .

E foi esta a tese que prevaleceu: mesmo com o advento do Artigo 9 do UCC, a recuperação extrajudicial não infringiria a 14ª Emenda, na medida em que a legislação apenas explicitou direito antes já garantido pela common law, de retomar o bem por meio de autotutela. Pelo entendimento que se consolidou em solo norte-americano, o Artigo 9 do UCC não constitui ação do Estado contra o particular, mas meio de proteção do devedor, na medida em que estabelece requisitos para que o credor possa exercer o direito de recuperação extrajudicial, consistentes na existência de mora 54 e na não ocorrência de “quebra da paz”.

Por outro lado, o Artigo 9 do UCC não conceituou tais requisitos, tendo cabido à doutrina e à jurisprudência fazê-lo. Como assinala William E. Hogan, “o Artigo 9 do Código não responde especificamente à pergunta o que é uma ‘mora em um contrato de garantia’” 55 , razão pela qual, “na maioria das vezes, o próprio contrato de garantia deve definir as regras para determinar se a mora ocorreu” 56 . Nessa verificação (da ocorrência ou não de mora), devem ser sopesados diversos fatores, como

falha em fazer um pagamento exigido; a remoção não autorizada da caução; a apresentação de uma petição em falência ou a realização de uma cessão em benefício dos credores; a morte de um devedor individual; a dissolução ou a nomeação de um destinatário para um devedor comercial; a apreensão legal da caução; a venda ou transferência não autorizada da garantia; ou a realização de qualquer declaração fraudulenta ou falsa pelo devedor no momento da concessão do crédito 57 .

F. Anthony Mooney também traz contribuição nesse sentido:

Embora a maioria dos direitos do garantido, sob o Código, surja para o caso de inadimplência do devedor, o termo “inadimplência” não está definido especificamente no Código. Como resultado, tribunais e comentaristas declararam geralmente que as circunstâncias que constituem uma inadimplência são uma questão de acordo contratual entre as partes. [...] É geralmente aceito que um incumprimento, na ausência de um contrato específico, ocorre apenas em caso de falta do devedor em pagar ou executar suas obrigações nos termos da lei ou contrato. O UCSA condicionou expressamente o direito de retomar a uma inadimplência no pagamento ou na execução de qualquer outra condição contratual [...] a violação de um termo importante do contrato constituía uma inadimplência suficiente para invocar o direito de reintegração de posse, independentemente de o contrato assim ter sido estabelecido 58 .

O autor ressalva, porém, que nem todo incumprimento deve ser considerado “mora”. Sustenta que esta deve ser analisada de um ponto de vista material, só autorizando a recuperação extrajudicial se constituir mora substancial. Afirma:

Surgem perguntas sobre o grau de inadimplência necessário para justificar a invocação do recurso de reintegração de posse extrajudicial e se uma inadimplência menor ou meramente formal seria suficiente para esse fim. Foi sugerido que, ao lidar com esse tipo de situação, um tribunal poderia aplicar um teste de “materialidade” à inadimplência, particularmente no caso de bens de consumo [...] 59 .

Com base nessa ideia, F. Anthony Mooney sustenta que a verificação da mora deve se dar à luz da boa-fé, evitando que mero descumprimento formal leve à reintegração extrajudicial:

Quando as partes incluem especificamente no contrato o que constitui uma inadimplência para fins de reintegração de posse, deve haver alguma limitação no que diz respeito ao grau de inadimplência que justifica a reintegração de posse. Nesse sentido, foi sugerido que a obrigação de boa-fé estabelecida na Seção XXXXX-203 do Código possa ser usada para testar os motivos da parte segura na utilização da reintegração de posse não judicial. Ao avaliar a boa-fé e avaliar a necessidade de utilizar a reintegração de posse não judicial em determinado caso, o objetivo básico do instrumento deve ser mantido claramente em mente. O instrumento deve ser usado por um vendedor que considere seu direito razoavelmente ameaçado. Tendo em vista esse objetivo subjacente, parece que uma leve ou mera violação formal de dada cláusula padrão de um contrato não deve dar origem ao direito de reintegração de posse, a menos que, concomitantemente, as circunstâncias levem o vendedor a concluir razoavelmente que seu direito foi ameaçado. Por exemplo, uma disposição comum sob a forma de contratos de vendas condicionais declara que o comprador estará em mora se remover a garantia do Estado sem a permissão por escrito do garantido. Tecnicamente, o comprador ficaria inadimplente se, por exemplo, a garantia fosse um automóvel e o comprador dirigisse para outro Estado em suas férias. Permitir que o garantido recupere o veículo com base em tal falta seria manifestamente absurdo, mesmo assumindo que o devedor permanecesse em outro Estado, sem o consentimento por escrito, pois mesmo que ele continuasse pagando oportunamente suas obrigações ao garantido dificilmente se poderia concluir que seu direito estava ameaçado 60 .

Em havendo mora, por sua vez, resolve-se o contrato. Discutiu-se, por sua vez, se, resolvido o contrato, venceria antecipadamente o débito.

Para William E. Hogan, a cláusula de vencimento antecipado 61 deve ser expressamente prevista em contrato: “Geralmente, a rota mais segura exige a inclusão dessa cláusula [de vencimento antecipado] para sua utilização em caso de violação da promessa de pagamento ou de qualquer previsão relacionada ao contrato de garantia” 62 .

Para F. Anthony Mooney, no entanto, trata-se de direito implícito do credor. Para ele, “o direito de recuperar e vender a garantia implica implicitamente o vencimento antecipado do saldo devedor do contrato e, para todos os efeitos práticos, a transação entre vendedor e comprador é sumariamente encerrada” 63 .

Contudo, William E. Hogan ressalva que, até a efetiva recuperação extrajudicial, deve ser dado ao devedor o direito de purga da mora. Pondera que, “como o objetivo básico de qualquer tipo de garantia é assegurar o pagamento da dívida, o Código não limita a um período determinado o poder do devedor de pagar a dívida e resgatar a garantia [...]” 64 .

Em sendo o caso de recuperação por autotutela, o credor deve fazê-lo sem “quebra da paz”. Mas tal conceito (“quebra da paz”) não é assente na doutrina e na jurisprudência. Ryan McRobert anota que “algumas jurisdições adotaram um teste de ponderação aplicável a todos os casos de ‘violação da paz’ [...]” 65 . Por essa técnica, a violação da paz é aferida por meio de ponderação de cinco fatores: “1) onde a reintegração de posse ocorreu; 2) o consentimento expresso ou presumível do devedor; 3) as reações de terceiros; 4) o tipo de instalação envolvida; e 5) uso de fraude pelos credores” 66 . A maioria das cortes, no entanto, não adota esse – assim chamado pelo autor – “teste de equilíbrio”. As cortes, em geral, extraem “quebra da paz” das peculiaridades do caso concreto. Observa o autor que

A grande maioria das jurisdições não emprega um teste formal de equilíbrio para aferir a quebra da paz. Em vez disso, eles se debruçam sobre as peculiaridades de cada caso [...] Os tribunais que usam um modelo baseado em fatos analisam cada caso individualmente, criando novos modelos e regras com base em fatos específicos de cada caso, que não fornecem uma orientação adequada para a determinação futura da violação da paz 67 .

Não obstante, é possível extrair dessa casuística algumas linhas gerais acerca do requisito “não ocorrência de quebra da paz”.

Há consenso de que a violência contra o devedor é considerada “quebra da paz”. Ryan McRobert ressalta que “em nenhum caso se concluiu que um ato de violência não tenha sido uma quebra da paz no contexto da recuperação por autotutela” 68 .

A essa “violência”, por sua vez, equipara-se o uso de artifícios fraudulentos. Observa F. Anthony Mooney:

Alega-se que as decisões baseadas apenas na violência real ou na ameaça de violência não fornecem diretrizes equitativas na área de reintegração de posse não judicial. Casos envolvendo violação da paz que ratificam técnicas questionáveis, como o uso de chaves mestras para entrar em instalações particulares, fiação em torno de ignições, incursões noturnas em propriedades particulares, incursões no quintal do devedor e danos à própria garantia parecem claramente estar além da atividade pacífica [...] 69 .

Entre tais artifícios a jurisprudência não inclui “alterações mecânicas do objeto”. Ressalva F. Anthony Mooney:

Pelas definições de quebra da paz que tomam por base o critério da violência, algumas jurisdições também permitem pontual alteração mecânica do objeto garantido, pelos recuperadores. A esse respeito, sustentou-se que não há quebra da paz no uso da técnica conhecida como “ligação direta”, empregada em veículos para os quais não existam chaves disponíveis, para efetuar uma reintegração de posse. O uso de arame para destrancar uma porta de carro foi considerado uma técnica de reintegração de posse permitida em um caso, e o desaparafusamento e remoção de um pequeno painel da lateral de um caminhão para destravar a porta foi considerado “inteiramente pacífico”. Pequenos danos às garantias no decurso da reintegração de posse também foram rejeitados como argumento para a quebra da paz 70 .

Mas doutrina e jurisprudência consideram “quebra da paz” não somente a violência e sim todo ato tendente à violência. Como observa Aaron Loterstein, “a questão essencial que muitas vezes subjaz às decisões dos tribunais em relação à violação da paz é se a reintegração de posse criou um risco irracional de violência [...]” 71 .

Na jurisprudência, vide Nichols versus Metropolitan Bank (Minnesota Court of Appeals – 1989):

A natureza condicional do instrumento de autotutela dada ao garantido na dicção da Seção XXXXX-503 indica que o garantido deve assegurar que não haja risco de danos ao devedor e a outros, se optar por recuperar a garantia por autotutela. O dever de recuperar a propriedade de maneira pacífica é especificamente imposto a uma “parte garantida” pelo Código Comercial Uniforme e visa a proteger os devedores e outras pessoas afetadas pelas atividades de recuperação 72 .

Por tender à violência, a objeção verbal leva à “quebra da paz”. Relata Ryan McRobert que

Os tribunais estão divididos em relação ao efeito legal de objeções verbais de um devedor à recuperação de autoajuda. Alguns tribunais sustentaram que a objeção verbal de um devedor, por menor que seja, torna qualquer apreensão uma violação da paz. Outros tribunais exigem um nível de protesto um pouco mais alto, exigindo um “protesto oral inequívoco” ou “reintegração de posse em face da objeção do devedor” 73 .

Confira-se o quanto decidido em Census Federal Credit Union versus Wann (Court of Appeals of Indiana, First District – 1980):

A parte garantida não pode, no processo de reintegração de posse, invadir ou entrar em residências ou outros edifícios ou espaços fechados, ou cometer qualquer crime contra a parte inadimplente, perturbar a paz ou cometer qualquer violação da paz. [...] Não é necessário consentimento à reintegração de posse pela parte inadimplente. A parte garantida pode, em reintegração de posse sem processo judicial sob o Código Ind. 26-1-9-503, retirar um bem de uma rua, estacionamento ou espaço não fechado. No entanto, mesmo na tentativa de reintegração de posse de um bem em uma rua, estacionamento ou espaço fechado, se a reintegração de posse for contestada verbalmente [...] pela parte inadimplente ou outra pessoa em controle da propriedade, a parte garantida deve desistir e buscar seu recurso no tribunal. [...] 74 .

É considerado, igualmente, “quebra da paz” – no caso, por violação ao direito de não ter o domicílio violado – o ingresso do devedor na residência do credor. Anota Ryan McRobert que:

Regra geral, o credor não pode entrar na casa do devedor sem permissão. Nas jurisdições que enfrentam essa questão, os tribunais concordam que o lar é sagrado e que uma violação da paz ocorre sempre que alguém entra sem permissão. Isso é consistente com a posição geral da lei americana de que a casa é um espaço por autotutela ocorra sem violência, o que levou os tribunais a concluir que a invasão do lar do devedor constitui automaticamente uma violação da paz 75 .

No entanto, normalmente não se considera “quebra da paz” o ingresso em quintal ou garagem:

À medida que o credor se retira do interior da residência do devedor e entra na garagem, quintal ou rua, a possibilidade de o devedor de alegar violação da paz se torna mais difícil. Nenhuma decisão concluiu que a simples invasão de propriedade do devedor [mas] sem entrar na casa constitui uma violação da paz. Em vez disso, os tribunais sustentaram que essas ofensas são uma parte necessária das reintegrações legais da posse 76 .

Da mesma forma, admite-se a recuperação extrajudicial ocorrida em via pública. Aponta F. Anthony Mooney:

Com base nas definições de violação da paz que exigem violência ou ameaça de violência, os tribunais geralmente ratificam a reintegração de posse ocorrida na ausência do devedor, quando a garantia não é retirada de dentro da casa do devedor. As recuperações de automóveis são normalmente realizadas dessa maneira, e usualmente se afirma que a recuperação de um automóvel estacionado em uma rua pública não é uma violação da paz. [...] 77 .

Tampouco se considera quebra da paz o ingresso “em propriedade” – aqui entendida a parte do imóvel que não constitua a “residência” do devedor 78 . Tal ingresso (em “propriedade”, não em “residência”) só é considerado “quebra da paz” quando traz perigo aos moradores. Conforme narra Ryan McRobert,

Os tribunais que avaliam no caso a caso se há quebra da paz na violação de propriedade, pelo credor, durante a recuperação por autotutela, consideram muitos fatores, incluindo: (1) proximidade com a família do devedor (por exemplo, se o credor invadiu o interior ou exterior da casa, no quintal ou na garagem) e (2) esforços do devedor para proteger a propriedade recuperada (por exemplo, portas fechadas, fechaduras e placas) 79 .

Não há consenso, por outro lado, quanto ao ingresso em propriedade com desrespeito a medidas de contenção, tais como placas ou fechaduras:

No entanto, os casos não são conclusivos quando o credor não invade a propriedade do devedor, mas desconsidera medidas expressas adotadas pelo devedor para proteger sua propriedade. Os tribunais geralmente sustentam que um credor que quebra uma trava ou corrente para entrar na propriedade de um devedor é culpado de violar a paz. No entanto, uma corrente de Nova York sustenta que uma violação da paz não ocorre quando um credor entra por uma porta trancada usando uma chave obtida sem autorização ou cortando fechaduras. Embora exista pouca jurisprudência considerando o desrespeito, pelo credor, do sinal de “Não invasão”, de um devedor, um caso sustentou que tal ação não constitui em si mesma uma violação da paz 80 .

Tampouco há consenso sobre se há ou não quebra da paz quando existe causação de distúrbios não ao devedor, mas a terceiros. Ryan McRobert observa que algumas cortes

parecem aderir ao princípio de que a quebra da paz ocorre apenas das interações havidas entre devedor e credor, no momento da reintegração de posse, como violência, confronto verbal ou invasão. Danos ou ameaças a terceiros imediatamente após a reintegração de posse não dão origem a uma violação da paz 81 .

E transcreve caso curioso a esse respeito:

O caso de 2008 de Chapa v. Tracier & Associates fornece um dos exemplos mais estranhos da recusa de um tribunal em reconhecer danos a terceiros como uma violação da paz. Um reintegrador, contratado pelo garantido e agindo como um agente do credor, retomou um veículo de uma rua pública quando o motorista estava ausente. O reintegrador não sabia que, no banco de trás do carro, estavam os dois filhos pequenos do devedor. Passado pouco tempo, o agente percebeu que as crianças estavam no veículo, deu meia-volta e devolveu as crianças e o veículo à mãe (Maria). O tribunal sustentou que não houve violação da paz porque não houve objeção “durante, próximo ou incidentalmente à apreensão”. Qualquer dano que tenha ocorrido depois da reintegração de posse não foi considerado, pois o tribunal se concentrou apenas na natureza da conduta do reintegrante. O tribunal chegou a essa decisão apesar dos danos causados às crianças, Maria e seu irmão, que não eram devedores, mas estavam presentes e foram diagnosticados com transtorno de estresse pós-traumático como resultado do incidente 82 .

Por fim, embora não se admita o uso de forças oficiais durante a recuperação extrajudicial – decorrência lógica da proibição contida na 14ª Emenda –, a mera “presença” de agentes do Estado – sem emprego de auxílio efetivo – é questão não pacificada. Como observa Ryan McRobert,

O comentário 3 à Seção XXXXX-609 do UCC indica que o uso das forças oficiais para efetuar uma reintegração de posse por autotutela constitui uma violação da paz. No entanto, os comentários do UCC não são vinculativos, sendo usados como auxílio na interpretação da legislação. Na interpretação e aplicação da Seção XXXXX-609, os tribunais variam quanto ao peso que atribuem à proibição aposta no comentário 3, de usar agentes oficiais na reintegração de posse por autotutela 83 .

No mesmo sentido, doutrina de Aaron Loterstein:

O fato de a Seção XXXXX-609 “não autorizar” o uso de um agente oficial não significa que a legislação o proíba expressamente. Além disso, a referência do Comentário à “assistência” dos policiais pode apenas pretender proibi-los de facilitar ativamente a reintegração de posse, em vez de passivamente manter a paz 84 .

Na jurisprudência, as cortes divergem. Segundo a análise de Ryan McRobert,

Em contraste com regra cristalina à participação de forças oficiais, os tribunais variam, na análise do que constitui quebra da paz, quanto à mera presença de agentes da lei. O Tribunal de Apelações do Arizona sustentou em Walker v. Walthall que a mera presença de um vice-xerife uniformizado no local da reintegração de posse constituía uma quebra da paz. O Tribunal de Apelações dos EUA para o Sexto Circuito, aplicando a lei de Michigan, adotou um padrão semelhante em Estados Unidos versus Coleman, mas se recusou a estendê-lo à mera vigilância realizada pelos oficiais. Em Coleman, o policial permaneceu na esquina do local da reintegração de posse e fora da vista. O Sexto Circuito concordou com a lógica do caso Walker [...]. O Nono Circuito, no entanto, discordou do caso Walker, constatando que “a mera aquiescência da polícia em ‘aguardar em caso de problemas’ era permitida durante a reintegração de posse” 85 .

Mesmo quando admitida, porém, a recuperação extrajudicial não é imune a críticas. Como ressalva F. Anthony Mooney,

a maioria das reintegrações de posse envolve compradores de baixa renda, que geralmente não têm discernimento para diferenciar abusos não permitidos nem os recursos para buscar reparação caso ocorram tais abusos. Por conseguinte, tão poucas reintegrações de posse são contestadas que as decisões existentes nos tribunais de apelação provavelmente não fornecem um reflexo verdadeiro da reintegração de posse não judicial tal como se dá no dia a dia [...] 86 .

Por essa razão, a fim de coibir abusos, assentou-se que as reintegrações por autotutela devem respeitar o FDCPA (Fair Debt Collection Practices Act 87 ). A esse respeito, Cӑ tӑ lin Gabriel Stӑ nescu adverte que,

uma vez que o Artigo 9 não distingue entre pessoas físicas e jurídicas, no caso de uma tentativa de reintegração de posse contra uma pessoa física nos termos do Artigo 9 do UCC, o repossessor também pode ser responsabilizado pela FDCPA, caso suas ações configurem alguma das práticas abusivas proibidas pela norma. No que diz respeito à origem da dívida, apenas as decorrentes de obrigações tributárias parecem estar fora da cobertura da FDCPA 88 .

Como esclarece o autor,

o FDCPA federal declarou três propósitos principais: (1) eliminar práticas abusivas de cobrança de dívidas, (2) garantir que os agentes de cobrança que cumprem a lei não sejam prejudicados pela concorrência e (3) promover ações estatais consistentes na proteção de consumidores contra abusos. Portanto, a FDCPA abrange uma série de práticas de cobrança de dívidas consideradas antiéticas, como comunicações excessivas e irracionais, assédio do devedor, declarações falsas ou enganosas, outras práticas desleais com resultados semelhantes, a maioria adotada também pelas mini-FDCPAs. Qualquer uma das práticas mencionadas (ou outras que causem efeito semelhante) seria suficiente para estabelecer a responsabilidade [...] 89 .

No que toca à cobrança de dívidas, o FDCPA

proíbe os cobradores de dívidas de se envolverem, durante a cobrança de dívidas, em qualquer conduta que possa causar assédio, opressão ou abuso a qualquer pessoa. Por “qualquer pessoa”, a lei pretendia cobrir a família, vizinhos, amigos e empregador do devedor. As práticas proibidas incluem ameaças de violência ou ferimento à pessoa física, sua propriedade ou reputação; uso de linguagem obscena ou profana; publicação de “listas da vergonha” de devedores inadimplentes; anunciar a venda de qualquer dívida na tentativa de cobrá-la; fazer chamadas telefônicas repetidas e contínuas intencionais com a intenção de assediar, abusar ou incomodar uma pessoa; ou sem divulgação da identidade do chamador, conforme previsto na lei 90 .

Feitas tais considerações, conclui-se que, não obstante adote medidas de proteção ao consumidor, o sistema estadunidense, assim como os que nele se inspiram, não são compatíveis com o brasileiro, na medida em que desnaturam a posse tal como concebe a civil law.

A posse, na civil law, pressupõe o poder de protegê-la, inclusive contra o proprietário. Por tal razão, não se pode retirar do possuidor o direito aos interditos possessórios. Como ressalta Lafayette Pereira, “o direito de invocar os interdictos é um efeito que resulta da posse desde que ella se constitue [...] independentemente das qualidades que ella póde revestir, de justa ou injusta, de boa ou de má fé” 91 . Ou seja, “a proteção dos interdictos constitui, pois, o caráter geral da posse no sentido jurídico” 92 .

Com essa ressalva, passa-se a analisar outros sistemas, muitos dos quais baseados no norte-americano.

4.1.2. Canadá

Como anota Hugh Beale, “os PPSAs [Personal Property Security Acts] canadenses seguem bem de perto a versão original do Artigo 9” 93 . A opinião é compartilhada por Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, para quem “mesmo o Quebec, um estado de civil law, ao adoptar um novo Código civil, instituiu um regime de garantias baseado no Art. 9 UCC (Livro 6, Título 3)” 94 .

De fato, as províncias e territórios canadenses conferem autoexecutoriedade às garantias, como ocorre com o Artigo 9 do UCC. Quer parecer um exagero, porém, a afirmação de que “todas as jurisdições canadenses, incluindo a província de Quebec, alcançaram perfeita uniformidade nos últimos anos [...]” 95 . Deve também ser tomada com alguma cautela a tese de que “todos os PPSAs canadenses permitem que o credor faça valer seus interesses por meio da própria garantia e com os rendimentos gerados por negócios relacionados à garantia [...]” 96 .

De modo geral, a legislação das províncias e dos territórios segue o que dispõe o Uniform Personal Property Security Act. A norma prevê, como regra, que, em ocorrendo mora, o credor pode executar o contrato na forma nele prevista, incluindo a autotutela recuperatória 97 , desde que não se afigure algo sem razoabilidade 98 . A jurisdição tem papel predominante de aconselhar, além de operar correções pontuais 99 , não impedindo que as partes ponham em prática as garantias autoexecutáveis 100 .

Desde que as partes hajam assim convencionado, o credor, notificando os devedores 101 , tem direito de tomar a garantia 102 , alienando-a em seguida e procedendo à distribuição do produto 103 . Essa alienação pode se dar em venda pública ou privada, assegurado direito de retenção, durante tempo razoável 104 , para obtenção de condições comerciais favoráveis 105 . Deve ser precedida de notificação dos devedores e de eventuais outros credores da garantia, com antecedência de quinze dias, a menos que o bem seja perecível ou que haja fundado receio de desvalorização 106 .

Havida a alienação, extinguem-se os direitos tanto de credor como de devedor 107 , que não poderão se voltar contra o comprador de boa-fé 108 . Se o produto exceder o valor da dívida, as sobras deverão ser repartidas a credores de grau inferior, aos demais interessados na garantia e, por último, ao devedor 109 .

Possibilita-se, por fim, que o credor tome a garantia em satisfação da dívida. Nesse caso, porém, o devedor, os demais interessados na garantia e os credores de grau inferior deverão ser notificados 110 e poderão ofertar objeção 111 . Além disso, é dado ao devedor ou a qualquer outro interessado o direito de purga da mora, evitando-se a transferência do bem 112 .

Tais regras, do Uniform Personal Property Security Act, são as que, de modo geral, guiam as normas de províncias e territórios. Mas ressalva deve ser feita a Québec.

O sistema Québécois se estrutura de outra maneira. O Código Civil de Québec trata as garantias como “hipotecas”, enfatizando consistirem em direito real que confere ao credor direito de sequela. Em caso de mora, é dado ao credor que tome a coisa, para que posteriormente a venda ou a aproprie em pagamento, mas desde que respeitando as regras previstas na lei civil 113 .

Tal hipoteca pode recair sobre móveis e imóveis, com transferência ou não da posse; em havendo transferência do bem móvel, pode ser chamada de “penhor” 114 .

Em se tratando do penhor, a garantia nasce com a posse da coisa, desde que consentida 115 . Essa posse não pode ser perturbada pelo devedor, a menos que ocorra abuso por parte do credor 116 . Por outro lado, em havendo mora, pode o credor administrar a coisa, vendê-la por alienação privada ou pública ou tomá-la em pagamento da dívida 117 . Para exercer tais direitos, o credor precisa, antes, proceder a uma notificação 118 , chamando o devedor para purga da mora 119 . Passado o prazo da notificação, procede à tomada da coisa, voluntária ou forçada 120 . A apropriação voluntária ocorre extrajudicialmente 121 . Quando forçada, perante os tribunais 122 . Uma vez com a coisa, o credor pode utilizá-la para pagamento da dívida, mas, se metade da obrigação já tiver sido cumprida, deverá obter prévia autorização judicial 123 . Pode, em vez disso, vendê-la, inclusive por iniciativa privada 124 , desde que adotando meios comercialmente razoáveis 125 .

Feita a ressalva de que o sistema Québécois apresenta estrutura diversa do Uniform Personal Property Security Act canadense, calha a síntese de Hugh Beale, segundo o qual, no Canadá, o sistema de garantias

geralmente fornece pelo menos o seguinte:

– quando a garantia é um recebível ou outra forma de pagamento, dado em garantia ao garante, este pode aplicar o dinheiro etc. à satisfação da obrigação garantida, após dedução de despesas razoáveis;

– apossar-se da caução em caso de inadimplência do devedor;

– alienar a garantia de maneira comercialmente razoável, mas somente após notificação, a menos que a garantia esteja sendo alienada em mercado organizado;

– o adquirente adquire a garantia livre de ônus, sem assumir deveres em relação a qualquer credor de nível mais baixo ou ao devedor;

– a parte garantida deve contabilizar e distribuir qualquer excedente;

– a parte que se apossa da garantia para satisfação da dívida, mas apenas se o devedor (ou qualquer outra parte que teria o direito de ser notificado de uma venda) não se opuser; e

– ao devedor (ou a qualquer outra parte que teria direito a ser notificada da venda) é dado remir a dívida a qualquer momento, antes da alienação da garantia 126 .

Trata-se, de fato, de um sistema que tomou de empréstimo o espírito do Artigo 9 do UCC. No entanto, em sede jurisprudencial, mitiga o pragmatismo dos estadunidenses, dando palco à boa-fé.

No caso Before the Bridge Senior K-9 Rescue, julgado em 2019 pela Court of Queen Bench of Manitoba, decidiu-se que a mora deve ser substancial, não se autorizando que a retomada extrajudicial ocorra em todo e qualquer caso, ainda que prevista contratualmente. Cuida a ação de uma

moção buscando a posse provisória de um cachorro chamado Nicolas, pendente de julgamento. Os autores obtiveram Nicolas da ré Before the Bridge Senior K-9 Rescue Inc. (BTB). Posteriormente, Nicolas voltou à posse da BTB. Há uma disputa entre as partes sobre quem tem direito à posse de Nicolas 127 .

A ré BTB foi fundada por Judy Smith-Hill (“Sra. Smith Hill”) e constitui “uma instituição de caridade registrada cuja missão é ajudar a resgatar e reabilitar cães idosos e encontrar para eles casas permanentes e amorosas” 128 . Os autores, por sua vez, “são casados e residem em Winnipeg. Desde o início dos anos 2000, eles tiveram um ou mais dachshunds como animais de estimação da família” 129 e queriam adotar mais um. Por isso procuraram a ré. Contudo, a ré “não possui instalações físicas; em vez disso, conta com uma rede de famílias adotivas para alojar seus cães até a adoção” 130 . Em não tendo instalações físicas, realiza adoções por aplicativo de celular, o qual contém “várias cláusulas que os demandantes aceitaram digitando seus nomes. De importância para esse caso é a [...] ‘cláusula de reintegração de posse’” 131 , segundo a qual

A Before the Bridge Senior K-9 Rescue se reserva o direito de reaver qualquer cão adotado no caso de o adotante ter motivos para acreditar que o cão está sendo maltratado, alojado em condições inseguras ou potencialmente insalubres, ou se as informações fornecidas neste formulário forem descobertas falsas 132 .

Os autores aderiram a essa cláusula e a ré intermediou a adoção de um cão então pertencente a terceira pessoa, chamada Brenda Johnson. Assim é que

a autora Rudiak visitou a casa de Brenda Johnson (Johnson) [e] lá, ela conheceu Nicolas, o cão no centro desse litígio, que Johnson estava anunciando à adoção em nome da BTB. Rudiak levou Nicolas para sua casa naquela noite. Em 10 de maio de 2018, Rudiak pagou US$ 250 à BTB por meio de transferência eletrônica 133 .

“Na época em que adquiriram Nicolas, os autores tinham três outros dachshunds: Daisy Too, Toby e Izzie. Um mês depois, em junho de 2018, os autores adquiriram um quinto cachorro, um filhote de dachshund chamado Jazz” 134 . No entanto, Jazz era um cão de temperamento difícil e acabaria mordendo Nicolas.

Durante uma viagem, os autores “levaram dois de seus cães com eles e tomaram providências para que os outros três recebessem cuidados enquanto estavam fora” 135 . Quanto a estes, “resolveram que a amiga Donna Kennedy (Kennedy) cuidaria de Jazz e Izzie durante as férias inteiras [...] [e] de Nicolas apenas nos primeiros dias da viagem, após os quais ele passaria ficar com a Sra. Johnson [...]” 136 . Mas, “cerca de uma hora depois que os cães foram deixados, Kennedy entrou em contato com os autores e disse que Jazz havia mordido Nicolas na orelha” 137 . Ao saber do fato, “Johnson tomou Nicolas de Kennedy [e,] por volta de 19 de fevereiro de 2019, Nicolas foi colocado sob os cuidados de outra família adotiva da BTB” 138 . Para obter a posse de Nicolas, foi utilizada a reintegração de posse extrajudicial, sob o argumento de que havia sido pactuada no momento da adesão, pelo aplicativo.

Tais fatos levaram diversas questões ao tribunal. A primeira, “estabelecer se a cláusula de reintegração de posse vincula os autores. A cláusula está contida em um aplicativo de adoção on-line que os autores enviaram quando se inscreveram para adotar um cão cerca de cinco meses antes” 139 . Quanto a isso, a ré argumentou que “os autores foram aceitos como adotantes de Nicolas levando em conta um contrato, e que, de acordo com esse contrato, o BTB tinha o direito de recuperar Nicolas caso tivesse motivo para acreditar que ele estava sendo maltratado [...]” 140 . Argumentou, também, que “as partes tinham liberdade contratual e que a cláusula de reintegração de posse não violaria nenhuma proibição legal [...]” 141 .

Superada a validade da cláusula de reintegração extrajudicial em instrumento de adesão, caberia, então, “provar que tinha o direito de exercer esse direito de reintegração de posse” 142 . Ou seja, superada a questão legal, a ré teria, ainda, que demonstrar os pressupostos fáticos para a reintegração extrajudicial do cão.

Antes de analisar essas duas questões, o tribunal se debruçou sobre a validade da reintegração extrajudicial “em geral”. Para tanto, apoiou-se no precedente Devoe versus Long (Suprema Corte de New Brunswick – 1951), no qual se decidiu que,

Sob as autoridades de nosso tribunal, parece que o proprietário pode ingressar pacificamente em depósito no qual esteja guardada a coisa [...]. Nesses casos, o réu pode fazer ingressar no depósito do autor para a retomada, mas desde que essa entrada possa ser feita em paz e não cometendo uma violação da paz 143 .

Afirmou o julgador que, “embora considere que provavelmente há boas razões políticas para desencorajar instrumentos de autotutela em relação a animais de estimação [...] não estou preparado para concluir que os autores tenham fundamentos para demonstrar que tais instrumentos não estavam disponíveis à ré [...]” 144 . Ressalvou, contudo, que outras ponderações haveriam de ser feitas: primeira, a necessidade de notificação (não realizada) antes da reintegração; segunda, as circunstâncias do caso, que indicam ter havido desrespeito à boa-fé na reintegração extrajudicial.

Sustentou que a ré agiu sem razoabilidade, o que quebrou o dever de proceder honestamente, ínsito à boa-fé. Concluiu:

É apropriado reconhecer um novo dever da common law que se aplica a todos os contratos como uma manifestação do princípio geral de boa-fé: um dever de proceder honestamente, que exige que as partes sejam honestas umas com as outras no cumprimento de suas obrigações contratuais. [...] O incidente do verão anterior envolvendo Jazz e outro cachorro é de pouca ou nenhuma relevância para Nicolas. [...] Acho que a decisão de retomar Nicolas parece particularmente sem razoabilidade. [...] Os réus deverão entregar Nicolas aos autores até 16 de agosto de 2019. Confio que o advogado possa tomar providências para que isso ocorra sem a assistência do tribunal. Se necessário, os autores podem incluir uma disposição na ordem em que o xerife retira Nicolas dos réus ou de qualquer outra pessoa que possua Nicolas e dá-lo aos autores 145 .

Ainda que com as ressalvas feitas à singularidade de Québec, o Canadá adotou um sistema inspirado no Artigo 9 do UCC. Contudo, claramente trouxe para o ordenamento o princípio da boa-fé, mitigando os poderes de reintegração extrajudicial da garantia tal como concebidos pelo sistema norte-americano.

4.1.3. Romênia

A Romênia se inspirou no modelo norte-americano e aprovou Código Civil que, em diversos pontos, quase que reproduz o Artigo 9 do UCC. Como …

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28 de Maio de 2024
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/4-a-desjudicializacao-das-garantias-garantias-autoexecutaveis/1620615809