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Contratos de Serviços em Tempos Digitais

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7. Função Social do Contrato Como Limite da Liberdade de Contratar e a Confiança Legítima no Resultado em Tempos Digitais

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Claudia Lima Marques

Introdução

A evolução do direito contratual tem altos e baixos, no que se refere à proteção dos vulneráveis. Após a Lei de Liberdade Econômica, que modificou o Código Civil em 2019, podemos dizer que estamos em “baixa”. Neste momento, vale a pena revisitar o artigo que escrevi, em conjunto com Bruno Miragem, para a homenagem a Ricardo Luis Lorenzetti, sobre os novos princípios e a reconstrução da autonomia privada, que teve publicação somente na Argentina. Neste artigo, analisamos, na primeira parte deste trabalho, o desenvolvimento no Brasil do princípio da boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil Brasileiro de 2002 e, em uma segunda, a função social do contrato, grande novidade de nosso Direito Privado. Anos mais tarde, elaborei um artigo sobre função social, nos contratos entre empresários e contratos com consumidores, apenas analisando casos e concluí que o princípio da função social é mal-usado para casos de consumo, prejudicando os consumidores, quando deveria ser o contrário, um princípio de limite da vontade dos fornecedores, 1 face ao impacto social dos contratos de consumo!

Gostaria de agora analisar em uma primeira parte um resumo destes dois artigos, com uma visão atualizada do Art. 421 do Código Civil de 2002 e seu impacto nos contratos de consumo por força do Art. do CDC, como um princípio “social” dos contratos, 2 em tempos que o resultado é mais importante do que a vontade inicial que criou o resultado no mercado de consumo; e – preparando os tempos digitais – do princípio da confiança (fides), que se retira do princípio da boa-fé (bona fides) 3 do Art. 4º, III, em diálogo com o Art. 422 do CC/2002 , princípio que deve ser a base para reconstrução de uma autonomia privada dos mais fracos, adaptada ao paradigma digital.

Como afirmou Orlando Gomes: “[...] o fenômeno da contratação passa por uma crise que causou a modificação da função do contrato: deixou de ser mero instrumento do poder de autodeterminação privada, para se tornar um instrumento que deve realizar também interesses da coletividade. Numa palavra: o contrato passa a ter função social.” 4 Esta concepção social do contrato tem como pressuposto a necessidade de proteção do equilíbrio entre os interesses legítimos de ambos os contratantes e da confiança dos contratantes entre si, assim como na projeção dos efeitos da relação contratual em face de toda a comunidade. 5

A promulgação no Brasil, em 2002, de um novo Código Civil unitário das obrigações civis e empresariais, o qual incorporou diversas inovações já determinadas no CDC, completou o quadro de renovação. 6 Ambas as leis, em cláusulas gerais, autorizam o Poder Judiciário a um controle mais efetivo da justiça contratual e ao exercício de uma interpretação mais teleológica, onde os valores da lei tomam o primeiro plano e delimitam o espaço da vontade, reconstruindo a autonomia da vontade do outro, do mais fraco ou do leigo. Destaque-se a relação entre as duas leis, o fenômeno que denominamos diálogo de fontes 7 , segundo o qual há entre as normas destas leis, cada qual em seu âmbito material de aplicação, uma colaboração e influência recíproca dos preceitos, a partir de uma lógica comum de proteção da confiança e dos interesses legítimos das partes na relação contratual civil e de consumo.

Ao unir estes dois temas (função social do contrato e confiança), quero analisar as transformações do novo direito dos contratos, dos séculos XX e XXI. O aspecto principal destas transformações a que se faz referência, em especial, nos contratos entre fornecedores e consumidores, é o surgimento de uma concepção social do contrato 8 . Refere-se esta noção ao fato do contrato, ao mesmo tempo que tem alta representação como expressão do poder da autonomia individual para produzir normas e efeitos jurídicos segundo a vontade das partes, também deve ser regulado em consideração aos eventuais efeitos que se produzem à comunidade e à frustração dos interesses dos contratantes em razão da realidade social de diferenças entre os níveis de poder dos diversos sujeitos envolvidos na conformação do pacto.

I.Função social dos contratos de consumo: limite da liberdade de contratar?

Um dos pontos mais inovadores 9 e, ao mesmo tempo, um dos mais herméticos 10 do novo Código Civil é o seu Art. 421, que abre o título dos “Contratos em geral” e suas “Disposições gerais” no Capítulo I. Em sua redação original, afirmava que a “liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” 11 E, com o caput modificado pela Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), hoje afirma: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.” Vejamos esta mudança e se isso se reflete na jurisprudência.

A) Função social do contrato antes da Lei da Liberdade Econômica

Sem dúvida, o contrato de consumo tem função social, tanto que o CDC em seu artigo reforça esta tese e permite assim o controle externo destes contratos individuais e coletivos. Parafraseando a famosa expressão da Constituição de Weimar, (Eigentum verpflichtet), a propriedade obriga; 12 o contrato hoje “obriga” inter partes e ainda “obriga” em relação a terceiros e/ou a coletividade, pois tem função social, neste que denominamos de Direito Privado Solidário. 13

No Brasil, muito, e bem, já se escreveu sobre a função social dos contratos, 14 em especial focando sobre sua origem, 15 influências doutrinárias, 16 seu significado, 17 sentido e extensão, 18 sua relação com a constitucionalização do direito contratual, 19 a pós-modernidade, 20 com a solidariedade, 21 com a boa-fé, 22 com a função econômica 23 e sua operatividade. 24 O Código de Defesa do Consumidor (CDC) é uma lei de proteção de um grupo, os consumidores. O CDC é lei de função social, que humaniza o Direito Privado e o abre para os interesses coletivos. 25 O artigo do CDC, depois de citar a origem constitucional do Código ou explicitar o mandamento constitucional de proteção dos consumidores, afirma que suas normas são de ordem pública e interesse social, bem explicitando que os contratos de consumo têm função social e não só interessam às partes contratantes, mas a toda sociedade. 26

Em 2017, analisei decisões de 2013 a 2017 27 do Superior Tribunal de Justiça: a saber, 50 decisões, que utilizam a expressão função social do contrato na argumentação da ementa e 70 acórdãos que citam o Art. 421 do CC/2002 , além de 15 acórdãos que citam o parágrafo único do Art. 2.035, como fonte de decisão. Parte da doutrina considera que a função social se diferencia em contratos existenciais/de consumo ou em contratos empresariais. 28 Assim examinarei apenas as decisões que envolvam contratos de consumo e procurarei levantar as decisões que já citam a nova versão do Art. 421, para uma parte final.

Na concreção da cláusula geral do Art. 421 do CC/2002 , procurarei destacar a interpretação dos ditames de ordem pública e interesse social do Art. do CDC e do parágrafo único do Art. 2.035 do CC/2002 , em se tratando de relações de consumo. 29 Sempre à procura do sentido e efeito e das potenciais aplicações deste princípio. 30

Segundo ensina Flávio Tartuce, a função social dos contratos é “um princípio, de ordem pública, pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, visualizado e interpretado de acordo com o contexto da sociedade.” 31 A doutrina é unânime quanto a tratar-se de princípio 32 e a jurisprudência do e. Superior Tribunal de Justiça denomina inclusive de princípio de sobredireito ao lado da boa-fé. 33

No Código Civil de 2002, vem positivado como cláusula geral, necessitando, pois, de um esforço de concreção do intérprete. Alguns doutrinadores criticam o texto do Art. 421, quanto à forma, preferindo a ementa proposta por Ricardo Fiúza; 34 outros, quanto à alegada vagueza 35 e insegurança 36 que criaria. Neste texto, quero apenas destacar sua potencialidade para transformar o direito privado brasileiro, como fator de consolidação da nova teoria contratual e da aplicação – indireta ou pela lei posta – de direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal de 1988 no novo direito privado.

Inicie-se citando os ensinamentos de Paulo Luiz Netto Lôbo: “No Código a função social não é simples limite externo ou negativo, mas limite positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar. Esse é o sentido que decorre dos termos “exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (Art. 421, CC/2002 )” 37 previsto na versão original do Código, antes da alteração procedida pela Lei da Liberdade Econômica. Duas são as lições do mestre das Alagoas, primeiro que, na literalidade do texto do Art. 421 do CC/2002 , a função social é um “limite”, tanto um limite aqui chamado de “negativo” ou de atuação, mas também como um limite “positivo”. Comparando novamente com a cláusula geral da boa-fé, os doutrinadores alemães assim o dizem da boa-fé, que se trata sempre de medida de decisão (Entscheidungsmasstab): ou se está de acordo com a boa-fé ou contra, logo se determino a (conduta de) boa-fé, já decidi o caso: violou ou não a boa-fé objetiva! Parece ser o mesmo com a função social, ou ela está presente e exige cumprimento (eficácia interna, entre as partes, ou externa, na sociedade e terceiros em relação ao contrato ou transubjetiva) ou não.

Aqui na segunda lição de Paulo Lôbo, com a concreção da cláusula geral do Art. 421, há ao mesmo tempo a “determinação do conteúdo da liberdade de contratar” naquele caso decidido. Neste sentido, relembre-se que o parágrafo único do Art. 2.035 do CC/2002 esclarece ser a função social do contrato é princípio de ordem pública. E, considerando que tem ligação com a confiança, merece citação o Enunciado 363 do CJF, que afirma esta natureza de ordem pública ou de decisão das cláusulas gerais, afirmando: “Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, sendo obrigação da parte lesada apenas demonstrar a existência da violação.”

Quanto a esta posição hierárquico-sistemática da função social do contrato, mister frisar que está ligada fortemente à ordem pública (de direção), uma ordem pública de origem constitucional, como especificam o Art. do CDC, sobre a função social dos contratos de consumo e no parágrafo único do Art. 2.035 do CC/2002 , que cuida dos conflitos de leis no tempo. Também o Enunciado 23 do CJF reforça esta ideia de ligação da função social do contrato com os direitos fundamentais, direitos sociais (moradia, educação, saúde e outros) e direitos coletivos stricto sensu (função ambiental dos contratos), afirmando: “A função social do contrato, prevista no Art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.”

Por fim, concordando com Flávio Tartuce, quando afirma existir uma eficácia interna e uma eficácia externa da função social, assim dividirei a análise dos julgados. A eficácia externa da função social, para lá das partes, é posição majoritária, e há enunciado do CJF sobre a função interna. O Enunciado 360 do CJF sobre o Art. 421 do CC/2002 afirma: “O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes.”

Segundo Miguel Reale, a função social do contrato trata-se de “princípio condicionador de todo o processo hermenêutico”, 38 oriunda da diretriz da “socialidade”. A socialidade é “objetivo do novo Código no sentido de superar o manifesto caráter individualista da lei vigente [ CC/1916 ], feita para um país eminentemente agrícola, com cerca de 80% da população no campo. Hoje em dia, vive o povo brasileiro nas cidades, na mesma proporção de 80% (...). Daí o predomínio do social sobre o individual”. 39 Impõe o Código Civil de 2002, assim, a função social do contrato (Art. 421), 40 a interpretação a favor do aderente nos contratos de adesão (Art. 423), a natureza social da posse, a facilitação da usucapião para moradias (arts. 1.238, …

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28 de Maio de 2024
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