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Técnica da Interpretação Jurídica: Breviário para Juristas

Técnica da Interpretação Jurídica: Breviário para Juristas

Capítulo 3 - Lacunas

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«Sed quia divinae quidem res perfectissimae sunt,

humani vero iuris condicio semper in infinitum decurrit

et nihil est in ea, quod stare perpetuo possit

(multa etenim formas edere natura novas deproperat),

non desperamus quaedam postea emergi negotia,

quae adhuc legum laqueis non sunt innodata»

Codex Iustinianus

3.1.A história de uma falência extraordinária

O doutor Negídio, escrivão no Tribunal de Roma, presta assistência à compilação de bens de uma massa falida, fora do horário normal de serviço.

Feitas as operações, Negídio solicita o pagamento de 233.280 Liras, calculado com base na remuneração por horas do trabalho extraordinário; e isso levando em conta o tempo especificamente dedicado ao labor em si e o tempo transcorrido para ir do tribunal ao lugar da massa falida (no interior da Cidade de Roma) e retornar.

O juiz encarregado, todavia, faz o pagamento ao escrivão em uma soma menor, de 131.640 Liras. Negídio insurge-se ao tribunal, que rejeita o pedido pelos seguintes motivos 1 :

«a) Os pagamentos devidos aos escrivães são regulados pela lei número 777 de 28 de julho de 1960, cujo artigo 9 dispõe que aos funcionários do cartório judicial que procedem, fora do horário de trabalho normal, à compilação de bens é devido pela parte requerente um pagamento equivalente àquele estabelecido para o trabalho extraordinário [...], com o limite de quatro horas diárias.

O art. 10 dessa mesma lei prevê que na certidão do inventário devem ser indicados o horário de abertura e de fechamento das operações.

b) Essa última disposição significa que somente as operações efetivas de inventário devem ser retribuídas com o pagamento correspondente ao extraordinário, ou tal previsão normativa não teria qualquer sentido.

c) A resposta ao quesito, sobre se e como deve ser retribuído o tempo de acesso ao lugar do inventário, deve ser encontrada na segunda alínea do citado art. 9, que estabelece a possibilidade de cumulação do pagamento pelo trabalho extraordinário com o tratamento econômico de missão e de transferência dos dependentes estatais, previsto na lei 489 de 29 de junho de 1951. Todavia, a possibilidade de indenização por transferência (indennità di missione) não é permitida no âmbito da cidade; no caso de ida ao âmbito da própria cidade, portanto, nenhum pagamento seria devido ao escrivão, nem como indenização por transferência, nem como trabalho extraordinário.

d) [É] irrelevante para a questão o disposto no art. 2.129 do Código Civil [italiano], disposição ditada para dependentes dos entes públicos econômicos e empresas municipalizadas, e não para dependentes do Estado, para os quais não exista regulamentação específica; no caso em questão, de qualquer sorte, havia uma disciplina ad hoc».

Contra a decisão do tribunal, Negídio recorre à Suprema Corte, que acolhe sua insurgência – “por lhe assistir razão” – opinando:

que «o tempo necessário para ir da sede do cartório ao lugar do inventário e retornar, dentro da Cidade em que o próprio cartório tem sede, integra uma atividade laboral»;

que tal atividade, se exercida além do horário de trabalho, «deve ser paga como trabalho extraordinário»;

que, por fim, «tal pagamento não está sujeito ao limite de quatro horas diárias previsto no art. 9 da lei 777, de 28 de julho de 1960, sendo, pelo contrário, cumulável com o pagamento extraordinário relativo estritamente à “compilação dos inventários”, que a tal limite, por outro lado, está sujeito».

Para sustentar as duas últimas conclusões, a Corte de Cassação motiva como segue:

«Desse pressuposto [de que o tempo necessário para ir da sede do cartório ao lugar do inventário e retornar constitui atividade laboral] deriva inevitavelmente, no que diz respeito à própria disciplina constitucional invocada (art. 36 da Constituição [italiana]), que tal atividade deve ser remunerada.

Sem dúvida, de resto, a lei 777 de 28 de julho de 1960, que contém “Modificações de serviços de cartório”, destina, especificamente para os inventários desenvolvidos «fora do horário normal de trabalho», um pagamento equivalente àquele estabelecido para o trabalho extraordinário; pagamento esse que, na previsão normativa (art. 9), diz respeito estritamente à «compilação de inventários» para a qual coloca um limite de quatro horas diárias, que resultarem da abertura e do fechamento do procedimento (art. 10 da lei em exame).

Tal ausência de previsão específica, de resto, não significa exclusão (pois se assim não fosse, dever-se-ia considerar como não manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade da norma), mas simples ausência de consideração do fenômeno.

Indubitavelmente a previsão da indicação da hora de abertura e de fechamento das operações (compreendidas em sentido estrito como compilação do inventário) não é passível de interpretação no sentido da exclusão; sua função pode ser tornar possível o controle, em sede de inspeção da regularidade das operações da falência, sem que isso comporte necessariamente preclusão para outras situações não previstas em lei. Tampouco, no mesmo sentido preclusivo, pode ser interpretada a previsão da segunda alínea do citado art. 9, segundo o qual o pagamento extraordinário previsto (e, como dito, estritamente inerente à “compilação de inventários”) não é passível de cumulação com os pagamentos “eventualmente feitos pela Administração pelo trabalho extraordinário desempenhado durante o mesmo período de tempo”; por outro lado, é passível de cumulação com o previsto na lei 489 de 29 de junho de 1951, que disciplina, além disso, as atividades a serem desenvolvidas em localidades que distam pelo menos oito quilômetros da cidade da sede.

A primeira previsão, de fato, tende somente a excluir um pagamento duplo extraordinário pelo mesmo período de “compilação de inventário”. A segunda previsão diz respeito à possibilidade de indenização por transferência regulada por horas ou dias e que cobre, por outro lado, todo o período de serviço [desenvolvido] fora da sede ordinária de serviço; nisso vai compreendido o tempo de compilação de inventário cumulado com o pagamento pelo trabalho extraordinário, assumindo o relevo de uma indenização supletiva ligada a quem está fora da sede.

Resta, portanto, somente a constatação de que o tempo in itinere, como supra delineado, está fora da previsão da lei em questão; visto que esse, de qualquer sorte, e de resto, é laboral [...] e que foi desenvolvido fora do horário normal de trabalho, é trabalho extraordinário, não podendo deixar de receber a mesma remuneração do trabalho extraordinário.

Nem se pode sustentar que, prevendo o art. 9 da Lei 777/60 pagamento extraordinário somente para as atividades relativas à compilação de inventários, no limite de quatro horas diárias (notando-se a referência da segunda alínea ao primeiro, limitando a previsão normativa à compilação de inventários), o tempo in itinere deveria ser considerado trabalho não passível de remuneração. O modo de colocar e resolver a questão deve ser totalmente oposto. Partindo do pressuposto de que tal tempo integra a atividade laborativa, e que, se desenvolvido além do horário normal deve ser recompensado como trabalho extraordinário; destacado, ainda, que a lei coloca um limite diário para o pagamento de trabalho extraordinário relativo a operações individuais de compilação de inventários – o que faz com que não seja objeto de qualquer previsão o tempo in itinere, nem como pagamento, nem como limite ao pagamento; diante dessas premissas, deduz-se que o pagamento pela ida do escritório ao lugar do inventário e o retorno, estando fora da previsão limitativa, é passível de cumulação com o extraordinário estritamente necessário para a compilação do inventário. De resto, uma vez admitida a possibilidade de pagamento, incluir na limitação horária diária também o tempo de percurso teria um significado prejudicial para a própria funcionalidade do escritório, sobretudo nas cidades de grandes dimensões, em que o tempo de transporte poderia absorver boa parte do concedido para a redação das operações específicas».

Na decisão, a Corte de Cassação trata e resolve de certo modo uma questão jurídica de relevância prática imediata: segundo o direito vigente, um escrivão na posição de Negídio tem ou não direito a receber pagamento pelo tempo gasto indo e voltando do cartório ao lugar do inventário falimentar?

O motivo de interesse da decisão em questão é, entretanto, para os presentes fins, outro. Ao decidir o caso, de fato, a Corte enfrenta, sem jamais referir expressamente, uma das ocorrências que mais cansaram – e fascinaram – a reflexão dogmática e teórico-geral, a partir do último quarto do século XIX. Aludo às ocorrências constituídas pelas chamadas lacunas “do” (ou “no”) direito 2 .

Neste capítulo, proponho-me a fornecer as linhas de um compêndio das noções que podem ser úteis, no âmbito de análises argumentativas das sentenças, para o fim de uma consciente identificação e de uma rigorosa conceituação das situações em que os juízes, em seus discursos, enfrentam e resolvem problemas atinentes à “falta de disciplina”, ou “lacunosidade”, do direito positivo. Isso não exclui, de fato e de resto, que tais noções possam ser úteis também na análise de argumentos doutrinários e, em perspectiva metateórica, das posições que atualmente circulam sobre o tema de lacunas na teoria do direito.

O compêndio inclui:

(1) um excursus sobre o “problema das lacunas” na cultura jurídica continental, no fim dos Oitocentos e no início dos Novecentos, no curso do qual mencionarei as noções de norma geral exclusiva, norma geral limitativa e espaço jurídico vazio, ainda hoje centrais no pensamento jurídico (§ 2);

(2) um reconhecimento dos requisitos mínimos de uma tipologia das lacunas, idônea a favorecer análises sem ilusões, (também) sob esse perfil, das sentenças judiciais (§ 3);

(3) uma tipologia analítica das lacunas, construída de modo a ser metodologicamente transparente, i.e., pensada de modo a considerar os modos de reconhecimento judicial das lacunas (§§ 4-9);

(4) uma revisitação de três entre as mais importantes tipologias das lacunas elaboradas na cultura jurídica continental dos Novecentos (§ 10);

(5) uma sumária exposição da disciplina da integração das lacunas “da lei”, com acenos ao funcionamento de algumas das principais técnicas utilizáveis para tal fim (§§ 11-12);

(6) um exemplo, enfim, de análise casuística conduzida segundo o cabedal de noções anteriormente delineadas (“Apêndice”).

3.2.O problema das lacunas na cultura jurídica continental

A partir do fim dos Oitocentos, as lacunas constituíram – antes de serem fonte dos problemas metodológicos a que farei referência em breve (§ 3.3.1) – um dos terrenos privilegiados sobre os quais competiram concepções opostas do direito e da ciência jurídica.

Um resumo exaustivo da questão seria, além de árduo, impertinente. Limitar-me-ei, portanto, a poucas e rápidas referências a alguns aspectos.

As lacunas não foram desconhecidas da tradição romanística. Alude a essas, com as elevadas palavras reproduzidas em epígrafe, o imperador Justiniano na Constituição Tanta, dispondo sobre a promulgação do Digesto 3 . Dessas, ainda, ocupam-se especificamente os juristas nos primeiros tratados de interpretatione in iure, a partir da segunda metade do século XV 4 . Na idade do direito comum, de resto, para além das questões ligadas à defesa dos estatutos 5 , as lacunas não constituíram problema, a não ser sob um perfil estritamente prático-forense.

No que diz respeito ao Corpus iuris civilis, em particular, tratava-se de acreditar ou desacreditar soluções concernentes a:

(a) o sujeito que, diante de uma lacuna, se sustentava que tivesse, ou devesse ter, autoridade ou competência para colma-la;

(b) a (diremos nós) relevância jurídica do resultado das operações de (diremos nós) integração do direito;

(c) os modos – considerados oportunos ou devidos – de proceder à integração do direito. Operação, essa última, que, por conta da opinião difusa de que “omnia in corpore iuris inveniuntur”, vinha compreendida como uma autointegração do direito escrito (o termo é de Francesco Carnelutti); e isso mediante o recurso a consolidados procedimentos hermenêutico-argumentativos, habitualmente colocados sob a rubrica da extensio legis e contrapostos à comprehensio legis (que corresponde àquilo que aqui é considerado como a interpretação textual das disposições).

A abordagem da cultura jurídica continental sobre as lacunas não apresenta mudanças significativas com a passagem do particularismo jurídico do antigo regime à centralização legislativa e à codificação do direito que distinguem as organizações estatais oitocentistas.

É exemplar, a propósito, a posição assumida por Jean-Etienne-Marie Portalis e por juristas da assim chamada Escola da Exegese na França napoleônica e pós-napoleônica.

Seja no Discurso preliminar sobre o projeto de Código Civil, de 1800, seja na Exposição de motivos do projeto de lei intitulado “Título preliminar: Da publicação, da eficácia e da aplicação das leis em geral”, de 1802, Portalis admite pacificamente que a legislação pode revelar-se lacunosa; sugerindo que, em tais casos, o juiz “sana a lei” recorrendo à “equidade judicial”: à “razão natural”, que pode ser encontrada nas máximas, nos usos, na jurisprudência e na doutrina 6 .

Posições análogas são sustentadas, por exemplo, nos escritos de Duranton, Toullier, Mourlon, Marcadé, Laurent, e Demolombe 7 . Com duas precisões.

Os juristas da primeira geração da Escola da Exegese, ativos até cerca de XXXXX-1830, entendem o recurso à equidade como recurso ao direito natural: e, portanto, a um fator, diremos nós, de heterointegração do direito legislativo 8 .

Por outro lado, alguns juristas da segunda geração, ativos entre cerca de 1830 e 1880, entendem o recurso à equidade como recurso a princípios e a valores intrínsecos à lei: e, portanto, a um fator, diremos nós, de autointegração do direito legislativo 9 .

É necessário observar, enfim, como o art. 4 do título preliminar do Código Napoleão – segundo o qual: “Se um juiz se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, obscuridade ou o defeito da lei, poderá ser considerado culpado de denegação de justiça” – não foi compreendido, pelos juristas da Escola da Exegese, como marca da (pré-constituída) completude do direito legislativo, mas unicamente como imposição ao juiz da proibição de non liquet. Sobre os caminhos de Portalis, François Laurent, um dos mais ilustres expoentes da Escola, configura a posição dos juízes diante das lacunas de um modo que ninguém concede à ideologia da completude do direito legislativo e à retórica montesquiana do poder judicial como poder neutro, mecânico aplicador e boca da lei 10 :

«Quando o juiz recorre ao uso, então, evidentemente esse não faz a lei, visto que o uso é também uma regra positiva, que o juiz aplica como aplica a lei. Mas é o mesmo quando recorre à equidade ou ao direito natural? Certamente não, visto que esse direito não é escrito em lugar algum. O juiz, dir-se-á, não é senão o seu órgão, não o criando, uma vez que o direito preexiste ao julgamento; se não está escrito em um código, vai esculpido pela nossa consciência. Isso é verdadeiro, mas não se pode dizer a mesma coisa do legislador? Tampouco ele cria o direito ao fazer a lei, mas é o órgão dessa justiça universal que tem seu princípio em Deus. Quando, portanto, o juiz decide um litígio no silêncio da lei, esse procede como procede o legislador, forma uma regra, que aplica, em seguida, ao litígio de que está em cargo: há somente uma diferença entre ele e o legislador, isso é, que o julgamento não tem eficácia a não ser entre as partes, ao passo que a lei obriga a todos os cidadãos [...]. Resta sempre que o art. 4º. confere aos tribunais um grande poder, e, de alguma forma, uma parte do poder legislativo».

A atribuição ao juiz de poderes paralegislativos era, de resto, percebida por Laurent e por outros exponentes da Escola como o mal menor entre a denegação de justiça, por um lado, e (o falido instituto do) recurso ao legislador (o référé législatif), de outro.

No mesmo período, na cultura germânica, nenhum jurista negava que o direito legislativo ou o direito consuetudinário pudessem se revelar lacunosos. Todavia, era opinião corrente, mesmo que em virtude de pressupostos ideológicos e de aparatos conceituais diferentes, que as lacunas pudessem ser colmadas:

(a) com base no nexo “orgânico”, ou na “íntima conexão”, entre os “institutos jurídicos”, ou entre as diversas componentes de cada instituto (Savigny); ou, ainda,

(b) relevando “as máximas jurídicas que, escondidas no espírito do direito pátrio, não apareceram na convicção imediata e nas ações dos membros do povo, nem nos enunciados do legislador; e que, portanto, tornam-se visíveis somente como produto de uma dedução científica” (Puchta); ou, por fim,

(c) mediante a apuração do “pensamento efetivo”, ou “do espírito” da “própria totalidade do direito” (Windscheid) 11 .

Uma relevante mudança nas abordagens doutrinárias sobre o tema das lacunas aparece, como referido, entre o fim do século XIX e o início do século XX. Nesse período, as lacunas foram apresentadas e percebidas como a fonte de um problema bem diferente e bem mais grave do que os tradicionais problemas prático-forenses até agora debatidos 12 .

Isso ocorre, aparentemente, porque algumas correntes da doutrina jurídica continental – entre as quais, principalmente, o Movimento pelo direito livre (Freirechtsbewegung) e a Jurisprudência dos interesses (Interessenjurisprudenz), na Alemanha, e a Escola científica do direito, na França – pretenderam servir-se das lacunas – e precisamente: da ideia de que, no direito, as lacunas existem, e lacunas não podem não existir – para perseguir alguns objetivos de política cultural e institucional (não sempre identificadas, de resto, de modo a distinguir claramente uns dos outros). Entre esses objetivos, é necessário pelo menos mencionar três.

Um primeiro objetivo consistia em evidenciar os limites de um particular modelo de organização jurídica: e, notadamente, da organização estatalista centralizada, herdeira dos estados absolutos do século XVIII, sob o particular perfil da pretensão do estado ao monopólio, não somente da força, mas também da produção de normas jurídicas mediante legislação (crítica do estado legislativo monopolista).

Um segundo objetivo consistia em liquidar a corrente doutrinária que se sustentava ser um baluarte teórico daquele modelo de organização: i.e., a concepção positivista do direito – polemicamente denominada “escolástica” por um dos seus mais célebres detratores, Hermann U. Kantorowicz –, uma vez que portadora da ideia de que toda a disciplina do viver social pode ser reconduzida ao direito estatal, e notadamente à legislação, que consistiria em um conjunto (sistema) coerente e completo de preceitos jurídicos (crítica do positivismo jurídico como teoria estatal-legislativa do direito) 13 .

Um terceiro objetivo, por fim, consistia em desacreditar a tese – de metodologia prescritiva – da possibilidade de autointegração hermenêutica da legislação: segundo a qual o direito legislativo, apesar de incompleto, seria, todavia, completável, e deveria ser completado, com o auxílio de um conjunto de instrumentos interpretativos e argumentativos tradicionais, sem qualquer necessidade de recorrer a fatores externos (entre os quais, por exemplo, o direito natural). Tratava-se, aqui, de substituir o tradicional método jurídico “autorreferencial” (informado pelo ideal – diremos nós – da chamada “autonomia do jurídico”) por outros métodos de “pesquisa do direito” (Rechtsfindung). Esses últimos, sendo informados de seu turno pelos recentes desenvolvimentos das ciências sociais (entre os quais, sobretudo, na sociologia), eram tidos como mais adequados para satisfazer as exigências de previsibilidade e controlabilidade das decisões judiciais, além de mais idôneos para garantir a (devida) sintonia entre a aplicação do direito e a contínua evolução da realidade social (crítica do método jurídico tradicional).

O potencial subversivo da ideia de que – contrariamente àquilo em que os positivistas acreditavam, ou queriam fazer crer – o direito estatal seria inevitavelmente lacunoso foi percebido com clareza (e temido, talvez de maneira excessiva), na Itália, pelo juspublicista Donato Donati.

No capítulo inicial da primeira monografia que apareceu na Itália sobre o tema, Il problema delle lacune dell’ordinamento giuridico, de 1910, Donati enumera não menos de seis diferentes perfis sobre os quais a existência de lacunas comprometeria os pilares institucionais ou ideológicas de um moderno “estado constitucional” democrático 14 .

Em primeiro lugar, a presença de lacunas – ou seja, a verificação de situações em que “o ordenamento jurídico” não oferece “para cada caso uma norma a ser aplicada” – constituiria um obstáculo insuperável à realização do ideal de legalidade da jurisdição. Como poderia um juiz, mesmo que animado pelo mais puro sentimento de fidelidade à lei, cumprir com seu dever de decidir cada controvérsia apresentada à sua cognição de acordo com as normas do direito, se, identificado o direito com o direito estatal (e, em particular, com a legislação), esse último não oferecesse qualquer regra pré-constituída aplicável? 15 .

Em segundo lugar, a presença de lacunas daria vez a delicadas questões em matéria de “teoria das fontes”. Se o direito estatal é lacunoso, deve-se concluir que poderiam existir algumas relações entre cidadão e cidadão, ou entre cidadão e estado, ou ainda entre os diversos órgãos do estado, cuja composição seria confiada a regras ou a métodos extrajurídicos. Quais regras, todavia? Quais métodos? Onde “o direito estatal não existe, – pergunta-se Donati – existe a anarquia ou existe um direito não estatal, (digamos inclusive a palavra) um direito natural?”. Donati sugere, portanto, que, sob esse perfil, a lacunosidade do ordenamento jurídico estatal possa comportar – contanto que não se creia no direito natural, ou, ainda, se duvide da sua eficácia reguladora – a impossibilidade, para o estado, de garantir a paz social, e a consequente, paradoxal, presença simultânea, para um mesmo conjunto de indivíduos, do ordenamento estatal com um estado de natureza (hobbesiano).

Em terceiro lugar, a presença de lacunas evidenciaria a ilusão do ideal de separação entre legislação e jurisdição: compreendida como separação funcional entre um poder que produz normas jurídicas gerais, por um lado, e um poder que simplesmente aplica tais normas a controvérsias concretas, por outro. Se, de fato, o direito legislativo é lacunoso, e o juiz tem o dever de decidir qualquer controvérsia que lhe seja apresentada, então o juiz não poderá deixar de criar ele próprio a norma a ser aplicada ao caso não disciplinado pela lei, fazendo as vezes de legislador.

Em quarto lugar, a presença de lacunas colocaria em dúvida a ideia, tradicional, de que a interpretação é, ou poderia ser, uma atividade puramente cognitiva. Pela seguinte razão: interpretação (presume Donati) é recognição de uma vontade normativa; no caso de lacunas, todavia, não existe, por definição, qualquer vontade normativa que possa ser reconhecida pelo intérprete; consequentemente, os métodos tradicionais de interpretação, pensados para o conhecimento da vontade do legislador, revelam-se totalmente inadequados para enfrentar as lacunas 16 .

Em quinto lugar, a presença de lacunas colocaria em dúvida o ideal de uma ciência jurídica pura e cognitiva, cuja tarefa consistiria unicamente na reconstrução sistemática do direito positivo tal como é. Se o direito é lacunoso, de fato, a ciência jurídica, a fim de não ter sua utilidade notoriamente reduzida para a prática do direito, deveria também elaborar propostas sobre como colmar as lacunas da legislação, desembocando, assim, no campo da “política”.

Em sexto lugar, e por fim, a presença de lacunas e a consequente, inevitável, politização da atividade jurisdicional, imporiam uma revisão da organização do poder judicial, com o fim de reconduzir a esse a operação sob o império dos princípios da representação e da responsabilidade política 17 . Um juiz burocrata, como o juiz nos modernos estados constitucionais, gozaria, de fato, do poder de criar direito, ao lado do órgão legislativo: sem, entretanto, ter sido designado pela “vontade popular”; nem ser politicamente responsável diante do eleitorado por suas escolhas normativas.

Donati, de resto, sustenta que todas essas ameaças à integridade institucional e às ideias inspiradoras do estado constitucional-democrático moderno podem ser fugazes, visto que se …

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30 de Maio de 2024
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/capitulo-3-lacunas-tecnica-da-interpretacao-juridica-breviario-para-juristas/1250396034