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20 de Junho de 2024
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    A criminalização da pobreza no Brasil

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Foto: Fernanda Valente

    Caos carcerário (137 mortes em presídios somente em 2017), criminalização de movimentos sociais e violência policial em reintegração de posse em terreno (abandonado há anos) ocupado por 700 famílias (3000 pessoas), que deverão se virar para encontrar outro teto. O que esses fatos têm em comum? Tudo. Todos eles escancaram a utilização do aparato penal/policial para uma finalidade bem definida: instituir e manter as desigualdades sociais tal como elas são. Em outras palavras, criminalizar todos os meios de sobrevivência do povo pobre.

    Darci Ribeiro já dizia que as elites brasileiras sempre viveram, e ainda vivem, com muito medo da emancipação das classes oprimidas. Para o escritor, “Boa expressão desse pavor pânico (sic) é a brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a predisposição autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem vigente”.[1] Tão logo seja necessário, a superestrutura estatal está a postos para esmagar a mínima ameaça ao poder que se diz “constituído” (constituído por quem e para quem?).

    Nunca é demais repetir: o drama carcerário (e basta que eu me lembre das mães, avós e filhos dos presos mortos para imaginar seu desespero) é sintoma direto da insana, ineficiente, irracional e racista – dentre outros predicados negativos – “guerra às drogas”. Qualquer morador das periferias do Brasil preso em flagrante com mais de 6 ou 7 porções de droga está praticamente condenado a cumprir uma prisão preventiva inconstitucional (pois baseada na garantia da ordem pública), a não ter nenhuma de suas alegações levada em consideração e a cumprir sua reprimenda em regime fechado num dos estabelecimentos prisionais do Brasil – os quais dispensam apresentações.

    Segundo dados do Infopen, em 1990, havia, no país, um total de 90 mil presos. Em dezembro de 2014, o número já chegava a 622.202, um aumento de mais de 575% (Infopen, 2016, p.15-20). O número de acusados ou condenados por tráfico de drogas não passava de 10% do total. Em dezembro de 2014, já eram 28% os presos pelo mesmo crime, que passou então a ser o maior responsável pelo encarceramento no país, superando o roubo, que tinha 25% (Infopen, 2016, p.34). Isso sem falar que 40% dos encarcerados são possivelmente inocentes, pois presos provisoriamente, sem condenação definitiva.

    E certas autoridades ainda aparecem com um discurso de endurecimento do “combate ao tráfico”. Como querer que a situação melhore, se fazemos sempre a mesma coisa? O desencarceramento é a única solução. Não tem jeito. A descriminalização e posterior regulamentação da produção, comércio e consumo das drogas hoje ilícitas são para ontem, se não quisermos que o crime organizado assuma o controle de vez.

    A criminalização dos movimentos sociais é outra faceta do uso do Estado para instituir e garantir uma ordem de desigualdade baseada na contradição capital-trabalho assalariado.

    Os pobres têm tão somente o direito de servir as elites, seja como funcionários, seja como consumidores, seja como lavadores de carros, seja como empregadas domésticas. Caso saiam dessa linha, entra em cena a repressão penal, visando sempre produzir indivíduos dóceis e úteis (Foucalt) para a expansão do capital.

    O que dizer então da especulação imobiliária, que produz milhões de moradores de favelas e de rua. Só no Rio de Janeiro há quase quinze mil pessoas em situação de rua, número que triplicou em três anos. Os preços dos imóveis e dos aluguéis estão altíssimos, graças à invasão (aqui sim podemos falar em invasão) das incorporações imobiliárias, que passam com seus tratores por cima do que precisar, inclusive áreas verdes ambientalmente importantes. Como podemos pensar na possibilidade de um pai ou uma mãe de família que recebe (quando recebe) um salário mínimo – ou algo próximo a isso – pagar um aluguel de R$ 900,00, R$ 1.000,00 (e olha que estamos falando de aluguéis baratos)?

    Enquanto isso, propriedades e mais propriedades não atendem sua função social (art. , XXIII, da CF), mas tão somente a função especulativa, e obrigam grande parte de nosso povo a viver em condições precaríssimas. Quando os pobres se organizam para exigir do poder público que cumpra sua função de garantir moradia digna (art. , da CF), a resposta é polícia, justiça e repressão.

    Tudo isso só pode nos trazer uma conclusão: o Brasil insiste na criminalização da pobreza. As estratégias de sobrevivência de um povo que tem pouquíssimas chances de encontrar um trabalho digno e viver em condições razoáveis são rapidamente criminalizadas e reprimidas. Vender DVD’s piratas ou vender drogas é crime, vender cerveja e água na praia ou vender produtor na 25 de Março é proibido, organizar-se para garantir terra para plantar ou imóveis para morar é crime organizado. Claro, pois não se imagina que um filho das classes média ou alta precise fazer nada disso para sobreviver. Sujeita-se a isso não tem outra opção (salvo raríssimas exceções).

    Recordações históricas são sempre importantes: Zumbi foi perseguido e morto pela turma de Domingos Jorge Velho por não aceitar o jugo e a injustiça da escravidão; Martin Luther King foi criminalizado e preso por ter se organizado para garantir direitos à população negra dos Estados Unidos; o mesmo aconteceu com Mahatma Gandhi, por defender a população indiana massacrada pela colonização inglesa, e com Nelson Mandela, que amargou 27 anos de prisão por não aceitar o apartheid na África do Sul.

    Por que glorificamos os líderes revolucionários do passado e criminalizamos os atuais? Os erros históricos estão aí, para quem quiser ver.

    Bob Marley alertou lá atrás:

    Eles não querem nos ver unidos

    Tudo que eles querem de nós é nos manter nervosos e brigando

    Eles não querem nos ver vivendo juntos

    Tudo que eles querem é nos ver matando uns aos outros.[2]

    Às famílias dos presos mortos nos massacres, aos presos injustamente, às famílias desalojadas de suas casas e aos integrantes dos valiosos movimentos sociais brasileiros (cujos nomes não vou citar para não correr o risco de deixar algum de fora): recebam toda minha solidariedade.

    Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil – Law Enforcement Against Prohibition.

    [1] O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. Ed. Cia das letras. São Paulo: 1995, p. 23-24.

    [2] Tradução livre do original. Música: Top rankin. Artista: Bob Marley. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o882ycTCVLc.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/a-criminalizacao-da-pobreza-no-brasil/419628121

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