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29 de Maio de 2024
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    A garantia do direito ao aborto como defesa do direito à vida

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Imagem: EBC

    Nos dias 3 e 6 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF), realizou uma audiência pública para debater a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação. A audiência se deu em razão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo ANIS – Instituto de Bioética, que questiona, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, os artigos 124 e 126 do Código Penal, que tipificam a realização do aborto voluntário.

    Embora não necessariamente preceda o julgamento da questão, que pode demorar anos até ser pautada, a referida audiência reacendeu um debate que há muito têm sido a tônica dos discursos e das discussões políticas. Urge a necessidade de esclarecer e desconstruir determinadas ideias que, apesar de não condizerem com a realidade, são amplamente difundidas com o objetivo de promover a desinformação geral.

    Em primeiro lugar, sobre o Direito, sabe-se que: I) leis e normas devem possuir nexo com a realidade; e II) elas devem adequar-se à evolução da sociedade. Essas premissas lógicas e básicas são largamente violadas quando se insiste em criminalizar certas práticas com as quais o melhor jeito de lidar é através da implementação de políticas públicas, uma vez que a proibição não as reduz, apenas as relega à clandestinidade, como ocorre com o aborto. Além disso, o Código Penal Brasileiro é datado de 1940, ou seja, sua elaboração se deu em um contexto social no qual a dominação sobre os corpos femininos ainda era tida como algo natural.

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    De encontro à ideia que habita o imaginário social de que as mulheres que abortam são apenas as irresponsáveis e promíscuas, o documento “Aborto e saúde pública: 20 anos de pesquisas no Brasil”[1], produzido pela Universidade de Brasília em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, afirma, com base em ampla pesquisa, que o perfil majoritário dessas mulheres é composto por jovens com idades entre 20 e 29 anos, católicas, que já possuem filho (s), e que decidiram interromper a gestação como forma de planejamento reprodutivo.

    Assim, fica claro que mulheres interrompem voluntariamente a gravidez, independentemente daquilo que a legislação penal injustamente prevê. A tipificação apenas altera o contexto no qual os procedimentos são realizados. O que difere as mulheres que decidem abortar são apenas as condições nas quais esses abortos serão realizados: mulheres que pertencem a classes mais abastadas têm maior acesso a métodos contraceptivos e, na hipótese de uma gravidez indesejada, podem recorrer a clínicas que, apesar de clandestinas, contam com bons profissionais e remédios de boa procedência, tudo em razão das altas quantias com as quais podem e que estão dispostas a arcar. Algumas até realizam o aborto no exterior, em algum dos diversos países nos quais ele é legal.

    As mulheres pobres, por sua vez, morrem ou passam por experiências traumáticas. Elas não contam com alternativas além do aborto inseguro, feito com métodos absurdamente perigosos tais como a inserção de objetos inadequados ou sem esterilização na vagina, ou mesmo a ingestão de substâncias cáusticas.

    Visto isso, e compreendido que muitas mulheres se põem em risco para que possam interromper a gravidez indesejada, depreende-se que a criminalização é uma política de classe. Assim sendo, as classes dominantes que ocupam as cadeiras do Congresso Nacional não veem interesse em expandir as políticas de saúde pública necessárias para garantir o direito ao aborto voluntário e seguro. Contraditoriamente, são também esses grupos políticos que contribuem para os altos índices de gestações indesejadas, uma vez que, em nome de um discurso falsamente moralista, combatem os principais métodos preventivos, quais sejam: a educação sexual e de gênero nas escolas, a ampliação do acesso aos contraceptivos, e a determinação do papel do Estado no auxílio ao planejamento familiar.

    O país, de maioria cristã – embora laico -, tem justamente na religião uma das principais barreiras à efetiva garantia dos direitos fundamentais das minorias políticas. Apesar dos diversos e gritantes motivos pelos quais a descriminalização do aborto se faz o melhor caminho, o debate no Brasil é pautado pelo terrorismo emocional baseado em passagens bíblicas, sobrepondo-se aos fatos e aos dados. De todo modo, embora a maior parte da população professe uma fé específica, a laicidade do Estado é um dos fundamentos de qualquer democracia, razão pela qual deve ser defendida a todo custo. Ademais:

    “Toda afirmativa deve ser racionalmente embasada e sustentada, do contrário torna-se mera arbitrariedade ou tolda interesses secundários daqueles que possuem alguma capacidade, ainda que mínima, de argumentação racional, refletindo ambas as situações em um cego e obcecado fideísmo.”[2]

    Leia também:

    Aborto como direito humano

    Por que ainda estamos discutindo a possibilidade de aborto em 2018?

    Nesse sentido, ao contrário do que aqueles que se opõem à mera existência desse debate têm afirmado, o STF não age fora de suas atribuições ao exercer o seu papel contramajoritário, que objetiva a plena aplicação das normas constitucionais ao garantir, através das decisões judiciais, os direitos fundamentais de grupos historicamente vulneráveis que não alcançam representatividade nas casas legislativas. Um bom exemplo da importância desse mecanismo de contramajoritariedade é a ocasião em que a Suprema Corte decidiu favoravelmente à equiparação das uniões homoafetivas com as heteroafetivas[3].

    Em suma: em um Estado Democrático de Direito, discussões legislativas não deveriam se pautar pela moral religiosa, dado o caráter personalíssimo desta, em detrimento daquilo que alcança a todos igualmente, que é a necessidade de garantia da dignidade da pessoa humana. A criminalização, resultante, sobretudo, da predominância de uma moral hipócrita e completamente relativa nos espaços de poder, não condiz com a função de ultima ratio para a qual o direito penal se presta. Para além de tudo isso, resta comprovado que a vedação legislativa não é o meio adequado para a redução do número de abortos realizados (haja vista o exemplo português, cuja análise será aprofundada em outra oportunidade), que é a finalidade para a qual todos os grupos envolvidos nesse debate parecem convergir.

    A política que vivenciamos hoje é falha, e frequentemente culmina na morte de mulheres. Sempre que um aborto é realizado, perde-se a oportunidade de cuidar de uma mulher e de prevenir um aborto (Débora Diniz, 2018). A única alternativa à clandestinidade, inevitável caso perdure a criminalização, é o estabelecimento de políticas públicas que ampliem o acesso à informação, e que atribuam ao SUS a responsabilidade de lidar com as mulheres que resolvem abortar, tanto no atendimento psicossocial prévio, como já na realização do procedimento.

    Embora sejam conhecidas as dificuldades do Sistema Único de Saúde para atender às demandas já existentes da população, não há justificativa para que o poder público se exima da obrigação de cuidar dessas mulheres. As lutas nesse sentido devem ser pela ampliação e melhoria da prestação dos serviços públicos, não pela restrição destes.

    O que se sabe, de fato, é que mulheres abortam, e que muitas delas, principalmente negras e pobres[4], morrem no processo. No entanto, elas não precisam morrer. A luta pelo direito ao aborto voluntário legal e seguro se faz vital, uma vez que essa se trata de uma questão de dignidade, saúde e justiça, e a perpetuação da política criminal classista hoje adotada viola deliberadamente os direitos fundamentais à autodeterminação, à saúde, à liberdade, e à vida.

    Ana Luísa Lago é graduanda em direito e estagiária do Ministério Público Federal

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