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9 de Maio de 2024
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    Ambiente de trabalho deve ser foco do Direito do século XXI

    Publicado por Consultor Jurídico
    há 12 anos

    O ordenamento jurídico da modernidade foi edificado sob o binômio dever ser/sanção. As normas de conduta estabelecem determinados comportamentos. Se violados, ensejam a aplicação de certa penalidade. O Estado-juiz atua somente quando provocado, em caso de ameaça concreta ou após a ocorrência de lesão.

    A intensificação do conflito social, que marcou as últimas décadas, veio demonstrar que isso não era suficiente para que o Direito pudesse cumprir seu objetivo de dirimir conflitos e obter a pacificação social com justiça.

    Nestes tempos de sociedade líquida, como define o sociólogo Zygmunt Bauman, a estratégia de obsolescência programática, que num primeiro momento foi engendrada para estimular a atividade econômica, chegou a um impasse.

    Com efeito, o que se convencionou denominar obsolescência programada surgiu como alternativa na primeira metade do século passado, visando estimular a atividade industrial para superar a grande depressão causada pelo crash de 1929. Consistia na prática de reduzir a vida útil dos equipamentos para poder vender mais e, assim, impulsionar a retomada econômica. Com o tempo, consertar o que estava quebrado ficou tão caro, que era melhor jogar fora e comprar um novo. Jogar fora o velho produto e comprar a última novidade tecnológica devia ser estimulado, porque se as pessoas continuassem a comprar, a atividade econômica permaneceria aquecida e todos teriam emprego.

    Entretanto, a intensificação deste processo de troca do velho (embora ainda passível de conserto) pelo novo, também levou ao desperdício de grandes quantidades de matéria-prima, água e energia, não só das utilizadas na produção dos que estão sendo jogados fora, mas também dos que são freneticamente produzidos para durar pouco, o que vem causando sérias preocupações quanto ao esgotamento dos bens da natureza, provocando danos ao ecossistema e ao meio ambiente, e comprometendo as condições de vida das próximas gerações.

    Neste sentido o documento intitulado O futuro que queremos, recentemente divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU)[1], chamando atenção para a importância de uma governança ambiental, diretriz que serve de referência também para o ambiente onde o trabalhador passa grande parte de sua vida produtiva.

    Mas não é só.

    Esse modus operandi marcado pela lógica do descarte, calcado na ideia matriz de que tudo tem que ser substituído rapidamente, vem gerando uma mentalidade que passou a ser aplicada também em relação à própria pessoa do trabalhador, sua segurança, saúde, integridade física e mental.

    Este artigo se propõe a examinar tais questões, focando a análise em seus desdobramentos no meio ambiente de trabalho e os efeitos que provoca na formação de um novo padrão normativo.

    A lógica do descarte

    O intercâmbio comercial trouxe muitos benefícios para a humanidade. A troca de produtos, serviços e informações sempre se constituiu num importante motor de desenvolvimento.

    Entretanto, na contemporaneidade, a lógica da compra/venda passou a monitorar os demais atos da nossa vida, aniquilando o conceito de valor e substituindo-o pela idéia de preço. Assim, pouco importa o valor, basta saber qual é o preço.

    O mais assustador é que essa mentalidade vem sendo aplicada também ao ser humano, destituindo-o da condição de sujeito e transformando-o num objeto passível de troca, cujo preço é aferido pela possibilidade de uso. Nesta toada, pouca importância se dá às condições de segurança e saúde no meio ambiente de trabalho, pois, quando um trabalhador fica incapacitado, é mais fácil descartá-lo e substituí-lo por um novo.

    Se durante todo o século XX lutamos bravamente para impedir que o trabalho fosse reduzido a situação de mercadoria, no início deste novo século nosso desafio é maior ainda: impedir que a própria pessoa do trabalhador seja reduzida à condição de mercadoria, num momento em que a descoberta de novas tecnologias e a exigência de intensificação dos ritmos das tarefas tem precarizado o meio ambiente de trabalho, aumentando os acidentes e provocando o surgimento de novas doenças.

    Nesse contexto, se revela cada vez mais insuficiente a singela resposta até hoje oferecida, consistente no pagamento de um adicional pela prestação laboral em condições de insalubridade e periculosidade, seguida de um rápido descarte do ser humano quando perde seu uso. Tal situação nos desafia a encontrar novas respostas, a fim de evitar a fratura que poderá provocar o desmoronamento do edifício normativo em relação ao meio ambiente do trabalho.

    Repristinação da questão social?

    A chamada questão social começou a aflorar com maior intensidade em meados do século XIX, em decorrência das penosas e adversas condições de trabalho, que provocavam lesões cuja reparação não encontrava resposta no direito comum.

    A necessidade de construir um novo Direito que olhasse além das teóricas categorias jurídicas codificadas, prestasse mais atenção à realidade da vida e dos fatos cotidianos, teve que percorrer um longo caminho até conseguir a edificação de uma nova base axiológica, que lhe desse suporte para a autonomia, tarefa para a qual, na América do Sul, tanto Cesarino Junior[2] quanto Américo Plá Rodriguez[3] contribuíram de forma significativa para a consolidação do Direito do Trabalho como ramo autônomo, regido por conceitos próprios, assim passando a regular o mundo peculiar das relações trabalhistas.

    Entretanto, as décadas finais do século XX registraram mudanças significativas, inclusive na maneira de trabalhar e na organização dos núcleos produtivos. A grande fábrica fordista deu lugar a conglomerados autônomos, marcados por atuação interrelacionada e pela intensificação do ritmo de trabalho.

    A utilização do telefone celular e do computador transformou as ferramentas de trabalho, aumentando as horas à disposição do empregador e invadindo os tempos da vida privada, criando, de maneira camuflada e sub-reptícia, novas formas de servidão.

    O estímulo à atividade econômica, mediante a generosa concessão de financiamentos por longo prazo, veio formatar aquilo que o sociólogo Zygmunt Bauman[4] define como vida à crédito. Explica que antes, na sociedade dos produtores, o adiamento da satisfação costumava assegurar a durabilidade do esforço do trabalho, por isso era preciso sacrificar o presente para poder gozar no futuro. Hoje, na sociedade dos consumidores, é preciso garantir a durabilidade do desejo, gozar acelerada e exaustivamente o presente, vivendo de crédito, cuja amortização se dará posteriormente, obrigando o ser humano a trabalhar intensamente para poder pagar o extenso rol dos débitos que assumiu, na pretensa satisfação de desejos que nunca terminam, gerando novas situações de servidão, que vão formar o caldo de cultura para o ressurgimento da questão social.

    Embora se apresente com nova roupagem, na verdade o que ocorre é uma repristinação da questão social do século passado, que volta com força ante a dimensão da lesão que se avizinha, exigindo novas formas de proteção jurídica para evitar que o estado de constante servidão transforme o ser humano num objeto descartável.

    Ao lado de um movimento de ascensão do individualismo, marcado pelo mote nietzschiano[5] devo completar-me de mim mesmo, e de rejeição do solidarismo, que tem reduzido a participação dos trabalhadores na vida sindical, observa-se uma preocupante intensificação das macro lesões, notadamente no meio ambiente de trabalho, trazendo para o foco da discussão a questão dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, colocando em cheque o modelo de acesso à Justiça pela categorização de interesses e direitos.

    Por isso, Cássio Scarpinella Bueno[6] chama atenção para a necessidade de aprimorar, ampliar e otimizar a eficiência do acesso coletivo à Justiça, superando a baliza da categorização. Ressalta que os direitos e interesses difusos, tanto quanto os coletivos e os individuais homogêneos, não são classes ou tipos de direitos preconcebidos ou estanques, não interpenetráveis ou relacionáveis entre si. São é esta a única forma de entender, para aplicar escorreitamente, a classificação feita pela lei brasileira formas preconcebidas, verdadeiros modelos apriorísticos, que justificam, na visão abstrata do legislador, a necessidade da tutela jurisdicional coletiva. Não devem ser interpretados, contudo, como realidades excludentes umas das outras, mas, bem diferentemente, como complementares.

    O meio ambiente de trabalho, pela dimensão e importância que apresenta, congrega direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, cuja análise deve ser feita sob a perspectiva constitucional.

    Com efeito, a constitucionalização dos direitos trabalhistas é a resposta que vem sendo apresentada pelo sistema normativo à nova questão social surgida na contemporaneidade, apontando para a edificação de um novo padrão axiológico, que a doutrina vem sedimentando na aplicação dos direitos fundamentais também às relações entre particulares, superando o antigo modelo que os restringia às relações do cidadão com o Estado.

    Conforme já ressaltamos em outro artigo[7], uma das características mais expressivas da pós-modernidade, que marca a época contemporânea, é a intensificação das relações de poder entre os particulares. Num momento de fragilidade das instituições, o sistemático descumprimento da lei causado pelo descrédito em sua atuação coercitiva tem acirrado as disputas de poder nas relações privadas, entre as quais as trabalhistas. Quando se trata de meio ambiente de trabalho, essa relação entre particulares se reveste de especial importância, porque gera efeitos ainda mais amplos, em decorrência das consequências que pode provocar em seu entorno social.

    As conseqüências

    O direito de trabalhar num ambiente saudável e seguro, disposto no inciso XXII do artigo da Constituição Federal ao garantir a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança alberga direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

    Além disso, se reveste de inequívoca socialidade, por ser evidente o predomínio do interesse social sobre o meramente individual, assim ensejando a aplicação dos princípios da boa-fé objetiva, função social do contrato, função social da empresa e função social da propriedade, pois os efeitos provocados não atingem apenas as pessoas dos contratantes, de modo que se revela insuficiente a alternativa de apenas pagar um adicional (de insalubridade ou periculosidade) ao invés de melhorar, de forma efetiva, as condições do meio ambiente do trabalho.

    O trabalhador acidentado, descartado do processo produtivo, vai engrossar a legião dos excluídos, passando a ser sustentado pela previdência, num momento em que o modelo conhecido como Estado do bem estar social se desintegra a olhos vistos.

    Neste contexto, qual a função do Direito?

    A função promocional do Direito

    Como bem ressaltou Norberto Bobbio[8] não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a natureza deles e seus fundamentos, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.

    Assim sendo, em relação ao meio ambiente de trabalho, o direito contemporâneo não pode esgotar sua capacidade de atuação apenas na apresentação de resposta às situações de ameaça concreta, ou na função reparatória da lesão já ocorrida. A intensificação da função promocional do Direito e o estímulo à atuação preventiva mais abrangente se tornam cada vez mais importantes.

    Em relação ao trabalhador, assegurar meio ambiente de trabalho seguro e saudável evita lesões incapacitantes ainda na idade produtiva, diminuindo os custos da previdência social com afastamentos por doenças e aposentadorias precoces.

    Também evita inegável dano à sociedade, pois um trabalhador acidentado ou doente, que é encostado, leva para a exclusão social toda sua família. A queda da renda prejudica os filhos, que tem sua formação profissional comprometida, porque precisam entrar mais cedo no mercado de trabalho, a fim de contribuir para o próprio sustento.

    A intensificação do ritmo das obras de construção civil, premidas pelos curtos prazos de entrega e conclusão em virtude da Copa do Mundo, a ser realizada no Brasil em 2014, vem delinear um quadro preocupante, pois leva à inequívoca precarização das regras de segurança, o que pode aumentar, e muito, o número de acidentes e doenças profissionais.

    Portanto, é chegado o momento de ponderar que, para garantir meio ambiente saudável e equilibrado no local de trabalho não basta efetuar pagamentos por danos já ocorridos, cujos efeitos via de regra são irreversíveis e a restitutio in integrum impossível. É preciso agir antes. Nesta perspectiva, as idéias de precaução e prevenção entram no orden...

    Ver notícia na íntegra em Consultor Jurídico

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