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19 de Junho de 2024
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    ARTIGO DE CONVIDADOS: Tráfico de pessoas: o que estamos punindo? - Profa. Alice Bianchini

    há 14 anos

    *Recomendo a leitura deste bem escrito artigo.

    ALICE BIANCHINI Doutora em Direito Penal pela PUC./SP Presidente do IPAN.

    A doutrina se aproxima da unanimidade quanto ao entendimento de que o bem jurídico protegido nos delitos de tráfico internacional e interno de pessoas é a moral sexual pública (Guilherme de Souza Nucci, Julio Fabbrini Mirabete, Luiz Regis Prado, dentre outros), que "é representada por um conjunto de normas que ditam o comportamento a ser observado pela sociedade, nos domínios da sexualidade" (Iara Ilgenfritz da Silva). Nada mais inadequado do que essa publicização de um bem jurídico que é eminentemente pessoal.

    Pronúncia. Excesso de linguagem. Eloquência acusatória

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    Seria imoral alguém promover ou facilitar a entrada em território nacional de pessoa que venha a exercer a prostituição ou a sua saída para o estrangeiro (tráfico internacional CP, art. 231)? E a conduta de promover ou facilitar, no território nacional, o deslocamento de pessoa que venha exercer a prostituição (tráfico interno, CP, art. 231-A), padeceria igualmente de imoralidade? O que teria de imoral em tal conduta? Que dano poderia ela causar à moral pública sexual, se, no Brasil, a prostituição não é criminalizada? Ademais disso, que sociedade seria hipócrita a ponto de criminalizar quem vende o corpo e deixar impune quem o compra?

    A fim de se responder a tais questionamentos, faz-se importante distinguir a prostituição voluntária daquela que é forçada (cf. Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças).

    Não há dúvida de que a participação involuntária na prostituição constitui tráfico, e que a proliferação das organizações criminosas voltadas para tais atividades exige enérgica e intensa ação do Estado, valendo-se, inclusive, dos instrumentos disponibilizados pelo Direito penal. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, quase um milhão de pessoas são traficadas no mundo anualmente com a finalidade de exploração sexual, sendo que 98% são mulheres. O tráfico chega a movimentar 32 bilhões de dólares por ano, constituindo-se como uma das atividades criminosas mais lucrativas (cf. Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Secretaria Nacional de Justiça).

    Há que se diferenciar, entretanto, tráfico (de um lado) de prostituição (de outro lado) voluntária, não-coercitiva, envolvendo adultos. Tal distinção não se fez presente na legislação brasileira (mesmo após alterações trazidas pela Lei 12.015/09) que, conforme anteriormente mencionado, previu sanções para condutas ligadas ao deslocamento livre de pessoas para a prostituição voluntária, denominando-as igualmente de tráfico de pessoas para fim de exploração sexual.

    A prostituição (exercida principalmente por mulheres) é problema social grave, pois suas causas se prendem principalmente a fatores como desigualdade de oportunidades, discriminação, dificuldade de acesso à justiça etc. A preocupação com a prostituição, entretanto, deve servir para suportar ações que sejam dirigidas à erradicação de suas causas. Não se encontra legitimada, para tal fim, a utilização do arsenal punitivo. O ramo repressivo do direito somente deve ser acionado quando se está diante de ataques graves a bens jurídicos relevantes (de acordo com o princípio da intervenção mínima e seus subprincípios: fragmentariedade e subsidiariedade). Sendo a prostituição voluntária (ainda que empurrada por causas sociais), não há bem jurídico-penal violado. Ora, se a pessoa é livre, inclusive para se prostituir, por qual razão aquele que promove ou facilita (ainda que seja para fazer o que prostituição é livre para fazer) a sua entrada ou a sua saída do território nacional ou o seu deslocamento dentro das fronteiras do país deve ser criminalizado?

    Situação bastante diversa, como já se deixou patente, é aquela que envolve uma ação involuntária (violência, grave ameaça ou fraude), ou quando dirigida a pessoa menor de 18 anos ou que esteja impossibilitada de manifestar a sua vontade. Como tais situações não se encontram previstas no caput dos artigos 231 e 231-A, faltou nesses tipos penais a descrição da ofensa grave a bem jurídico relevante, essencial para que se possa estar diante de uma conduta merecedora de sanção criminal. Veja-se:

    (a) a ação de colaborar para que uma pessoa se prostitua em local diverso daquele em que já o fazia em nada afeta a moral pública sexual; ao contrário, sendo a liberdade de locomoção e a liberdade privada (de agir de acordo com sua consciência) direitos fundamentais, qualquer colaboração para com elas não pode ser havida como criminosa;

    (b) se a pessoa ainda não se prostitui, o auxílio para que ela se desloque para algum lugar a fim de exercer a prostituição também em nada afeta a moral pública sexual, pois se a ação de se prostituir não é crime, por qual motivo haveria de sê-lo a de prestar colaboração para que alguém se desloque para fim não criminoso? Se por um lado a colaboração, de fato, incrementa o meretrício, por outro negar auxílio nesses casos pode dar a impressão de que o Estado hostiliza (sem que o comportamento seja criminoso) a prostituição, quando o que deve fazer é criar oportunidades legítimas para que as pessoas adultas e que voluntariamente estejam nessa situação possam, se quiserem, dar um outro encaminhamento para sua vida.

    Aliás, o já mencionado Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças (2000), ratificado pelo Brasil, ao conceituar o tráfico de pessoas o faz elencando condutas involuntárias ou, quando voluntárias, exige a presença dos elementos que caracterizam a vulnerabilidade da pessoa prostituída ou obtenção de lucro por parte de seus responsáveis. Veja-se que nossa legislação criminalizou situações (promover ou facilitar o deslocamento de alguém para o exercício da prostituição voluntária) não previstas nem sequer no documento internacional que se ocupa do tema.

    Restringir o bem jurídico dos delitos sexuais à liberdade sexual (afastando-se, portanto, a tutela da moralidade sexual) é atitude libertária, porque permite que se deixe de imprimir uma constante vigilância aos comportamentos sexuais, possibilitando que cada qual estabeleça o que lhe pareça próprio, sempre, é claro, que tal escolha não represente uma ofensa à liberdade sexual do outro.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/artigo-de-convidados-trafico-de-pessoas-o-que-estamos-punindo-profa-alice-bianchini/2495513

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