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16 de Junho de 2024
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    Crime de embriaguez ao volante e ativismo punitivista do STJ (Parte 1)

    há 14 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

    Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

    SILVIO MACIEL

    Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ex-Delegado de Polícia no Estado de São Paulo, professor universitário de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Constitucional e professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes.

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. MACIEL, Silvio. Crime de embriaguez ao volante e ativismo punitivista do STJ (Parte 1). Disponível em http://www.lfg.com.br - 21 janeiro. 2010.

    Decisão do STJ, Quinta Turma, HC 132.374-MS: "No HC, pede-se o trancamento de ação penal diante da falta de justa causa porque não houve o exame de alcoolemia. Segundo o Min. Relator, para a configuração do crime de trânsito descrito no art. 306 da Lei n. 9.503/1997 (CTB), a realização da perícia, quando possível, torna-se imprescindível. Entretanto, ressalvou as hipóteses em que a perícia não é realizada porque, na comarca, não há os equipamentos necessários à realização do exame ou em razão da recusa do acusado em submeter-se aos exames de alcoolemia. Nesses casos, observou ser possível concluir o estado de embriaguez quando ele é perceptível por testemunhas ou pelo exame clínico, de acordo com preceitos doutrinários estabelecidos em medicina legal. Dessa forma, esclareceu que, quando não é possível realizar o exame para indicar a concentração de álcool no sangue, há outros tipos de prova (testemunhal ou exame clínico) que atestam, indubitavelmente, o estado de embriaguez do motorista, o que admite a aplicação do art. 167 do CPP. Observou ainda que, no caso dos autos, o exame de alcoolemia não foi realizado por falta de equipamento hábil na comarca, além de não ficar esclarecida a razão pela qual não se fez o exame de sangue. Porém, houve o exame clínico e, por essa razão, há suficientes indícios de materialidade do crime, sendo precipitado o trancamento da ação penal. Diante do exposto, a Turma denegou a ordem de habeas corpus. HC 132.374-MS, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 6/10/2009".

    Conforme Luís Roberto Barroso[1], o princípio do devido processo legal, nos Estados Unidos, passou por duas fases: a primeira, de caráter puramente processual ( procedural due process ) limitava-se apenas a uma garantia sobre a regularidade do processo penal (depois estendida para os processos civil e administrativo), ou seja, apenas uma garantia de contraditório, ampla defesa, direito à presença de advogado etc. Impedia qualquer invasão do Judiciário na apreciação da injustiça ou arbitrariedade do ato legislativo. A segunda fase, de caráter substantivo, (substantive due process), ao contrário, "tornou-se importante instrumento de defesa dos direitos individuais, ensejando o controle do arbítrio do Legislativo e da discricionariedade governamental", permitindo o controle pelo Judiciário sobre a razoabilidade e racionalidade das leis e demais atos do Poder Público.

    Essa dimensão substantiva do devido processo legal, que causou uma ascensão do Judiciário só comparável com a que ocorreu quando da introdução do controle judicial de constitucionalidade das leis (1803, caso Marbury vs Madison), teve seu ponto culminante com a revolução progressista promovida pela Suprema Corte Americana, sob a presidência do Justice Earl Warren, ensejando o chamado ativismo judicial, é dizer "a intervenção dos tribunais no mérito de certas valorações legislativas e administrativas" [2] para a proteção de direitos e garantias individuais. O Judiciário, portanto, despindo-se dos ranços positivistas, dentre os quais o da neutralidade do Juiz, passou a ter um papel de protagonista (e não mero expectador) na construção da defesa dos direitos fundamentais (principalmente das minorias). Esse intervencionismo judicial na proteção inflexível das liberdades teve especial relevo, sobretudo no âmbito do processo penal (ex. Miranda v. Arizona, 1966 direitos dos investigados e acusados em processo criminal). A Warrens Court conduziu à "criminal procedure revolution", ou seja, uma "reformulação da base constitucional do processo penal estaduniense"[3].

    Mas essa "jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais"[4], construída pela Suprema Corte Americana, sofreu e sofre muitos influxos históricos, inclusive no Brasil. Recentemente, o insigne Boaventura de Sousa Santos falou em um tal e atual ativismo judicial conservador que "neutraliza avanços". O sociólogo português e professor catedrático da Universidade de Coimbra colocou assim seu pensamento: "está em curso uma contrarrevolução jurídica em vários países latino-americanos. É possível que o Brasil venha a ser um deles. Entendo por contrarrevolução jurídica uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas pela via política, quase sempre a partir de novas Constituições"[5].

    Guardadas as devidas proporções e com os devidos ajustes (já que ativismo judicial tem muito a ver com decisões envolvendo questões políticas, como direito das minorias), podemos tomar por empréstimo a expressão de Boaventura para nos referirmos a uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça proferida em relação ao crime de embriaguez ao volante. A decisão, de cunho utilitarista e um verdadeiro exercício de punitivismo a qualquer preço, vai na contramão do bom papel desempenhado pelo Poder Judiciário (inclusive pelo próprio STJ) na aplicação constitucional do direito penal e do direito processual penal. Explica-se:

    O texto art. 306 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) que define o delito de embriaguez ao volante sofreu, com o advento da Lei 11.705/08, duas importantes alterações em sua estrutura típica.

    A primeira das modificações (que não nos interessa no presente artigo) foi a supressão da expressão final do tipo penal, "expondo a dano potencial a incolumidade de outrem", que transformou o delito, antes de perigo concreto, em delito de perigo abstrato (ou delito de preparação, segundo WOHLERS), ressalvado o entendimento doutrinário da inconstitucionalidade dessa categoria de crimes (v.g. Luiz Flávio Gomes e Cezar Roberto Bitencourt)[6].

    A outra alteração foi a substituição da expressão "sob a influência de álcool" pela expressão, "com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas". É este ponto que nos interessa aqui.

    [1] Interpretação e Aplicação daConstituiçãoo. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, pp. 218-222.

    [2] Idem ibidem.

    [3] TEBET, Diogo. Ativismo Judicial e Processo Penal: mais Warrens Court e menos Law And Order. São Paulo: Boletim do IBCCRIM n. 205.

    [4] Idem.

    [5] Folha de São Paulo, 4 de dezembro de 2009.

    [6] Ressalte-se que essa nova natureza do crime possui reflexos processuais relevantes, uma vez que nos delitos de perigo abstrato o ônus da acusação limita-se a demonstração da realização da conduta, ao contrário do que ocorre nos delitos de perigo concreto, nos quais o órgão acusatório deve comprovar, além da prática da conduta, também a situação de perigo concreto gerada. Nos delitos de preparação o ônus processual acusatório é menor.

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