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4 de Maio de 2024
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    Da inaplicabilidade do § 3º do artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro - Luciano Borghetti

    há 16 anos


    No dia 20 de junho do presente ano foi publicada a Lei nº 11.705 /2008, alterando diversos dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro - Lei nº 9.503 /97. Através dela foi imposta a chamada política de tolerância zero a quem conduzir o veículo sob influência de bebidas alcoólicas ou de qualquer outra substância psicoativa que cause dependência .

    As referidas alterações tiveram abrangência tanto no âmbito administrativo, como na esfera penal. O art. 165, que impõe sanção administrativa quanto à embriaguez no volante, ficou com a seguinte redação:

    Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência;

    Infração - gravíssima;

    Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.

    Modificou-se, também, o art. 306, com repercussão na esfera penal, agora com o seguinte texto:

    Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

    No referido artigo, incluiu-se, ainda, o parágrafo único, prevendo que o Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo .

    A citação de tais dispositivos se faz necessária, uma vez que há estrita ligação com a norma prevista no art. 277, acrescida dos parágrafos 2º e 3º, respectivamente, que assim foram publicados:

    § 2º A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. (Redação dada pela Lei nº 11.705 , de 2008)

    § 3º Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.

    Os procedimentos previstos no caput, do art. 277, estão desta forma elencados: testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado .

    Com se vê, o legislador ampliou a figura o art. 165, que antes condicionava a punição administrativa conforme o critério utilizado na norma penal do art. 306, qual seja 06 decigramas de álcool por litro de sangue. Assim, impondo ao condutor a obrigatoriedade de realização de exames de constatação da embriaguez, incluiu-se o § 3º, o qual aplica a mesma pena da contravenção daquele que for flagrado sob o efeito de álcool ou substância psicoativa, no caso de haver recusa à realização dos referidos testes.

    O problema encontra-se na mesma mensuração aplicada pelo legislador entre a norma penal e a administrativa. A equivalência de uma conduta punível administrativamente, a outra criminosa, não autoriza ao Estado sancionar o indivíduo que se recuse a produzir prova contra si mesmo. O liame diferenciador entre a previsão administrativa e o tipo penal - 06 decigramas de álcool por litro de sangue - é demasiadamente tênue.

    Ademais, cumpre observar que, para ocorrer a incidência na norma proibitiva no âmbito administrativo, necessária se faz a constatação de que o motorista esteja sob a influência de álcool, pressuposto que não está previsto no tipo penal, que exige apenas concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas [ 1 ].

    Outrossim, a previsão do art. 306 presume que tal concentração específica faz com que o condutor esteja necessariamente sob o efeito de álcool, o que deveria ser sopesado conforme a resistência individualmente averiguada (peso, altura, compleição física etc.). Irrazoável se mostra, então, a obrigatoriedade do teste de bafômetro e daquele realizado através da coleta de sangue.

    Vejamos a questão pela óptica prática. O condutor ingere determinada quantidade de bebida alcoólica antes de dirigir. Já na condução do veículo é abordado por um agente de trânsito. O agente público pede ao motorista que realize o teste do bafômetro. Sem ter como avaliar qual a quantidade de álcool por litro de sangue que possui em seu organismo, naquele exato momento, a fim de não produzir prova - pericial, cumpre salientar - contra si mesmo, sensato é que o Estado, por meio do agente que o representa, aceite sua recusa à realização do teste.

    Tal raciocínio dedutivo se dá na medida em que, na dúvida entre responder a uma sanção administrativa (art. 277, § 3º) ou a um crime (art. 306), tendo em vista a impossibilidade imediata de saber se ultrapassou, ou não, o limite do novo art. 306 - 06 decigramas de álcool por litro de sangue -, o condutor manifestar-se-á pela recusa ao exame.

    Resta, ainda, apurar a questão do teste clínico que, à primeira vista, parece ser uma prerrogativa da Administração Pública, no que concerne à fiscalização daqueles que receberam licença para dirigir. Ocorre que o art. 306 não prevê punição unicamente aos que ingerirem bebidas alcoólicas, mas também no caso de estar o indivíduo sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (grifei).

    Imaginemos a hipótese do condutor que tenha fumado maconha - cannabis sativa -, entorpecente que tem por princípio ativo tetrahidrocanabinol, definido por Portaria da ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como substância que causa dependência física ou psíquica. Seguindo a mesma linha de raciocínio já declinada, o motorista terá, sim, o direito constitucional de não realizar o teste clínico, haja vista que através deste exame será facilmente aferível os sintomas físicos ocasionados pela droga - vermelhidão dos olhos, arritmia, falta de saliva etc. Observa-se, ainda, que por meio do exame clínico poderão ser realizadas outras constatações, além da observação dos sintomas meramente físicos, como aquelas referentes à percepção sensorial do examinado. Por essa razão, o Estado não pode impor sanção àquele que não se quer ver punido penalmente.

    Ademais, tal tipificação penal pressupõe a realização de prova pericial incriminadora, antes mesmo da abertura do próprio inquérito policial, o que configura, ao menos, uma situação processual curiosa. Até porque inútil seria a instauração de um apuratório para investigar um delito que tem por característica a necessidade da prova imediata, uma vez que se perfaz em um exíguo interregno.

    Assim, não pode a Administração Pública impor uma sanção àquele que não quer se ver condenado criminalmente. Essa é a inteligência do art. , incisos II e LV , da Constituição Federal , os quais, respectivamente, assim dispõem:

    Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

    Da mesma forma, os tratados internacionais sobre direitos humanos, mais precisamente o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), recepcionado em nosso ordenamento com força, ao menos, de norma supra-legal [ 2 ], dispõe no art. 8º, 2, e alíneas g e 3, respectivamente que

    2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

    g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada e

    3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.

    Dessa forma, mostra-se juridicamente inaplicável uma norma administrativa que atente contra o Estado Democrático de Direito, fulcrado no princípio da dignidade humana, haja vista sua imposição coercitiva contrária às garantias constitucionais que asseguram a ampla defesa e a presunção de inocência, salientando-se sua inafastável repercussão no processo penal.

    1. GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante (Lei 11.705 /2008): exigência de perigo concreto indeterminado. Disponível em http://www.lfg.com.br 02 julho. 2008.

    2. Orientação recente do Supremo Tribunal Federal. Vide voto do ministro Gilmar Mendes, no RE 466.343-SP e voto do ministro Celso (norma supra-legal) de Mello, no HC 87.585-TO e RE 466.343-SP .

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