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1 de Maio de 2024

Direitos humanos, novo hediondo.

Publicado por Izabella Maia
há 4 anos

No dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Tendo em vista este olhar histórico, adota-se as lições de Norberto Bobbio, que em seu livro “Era dos Direitos”, sustenta que “os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direito), para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais”.

É em face do crescente processo de internacionalização dos direitos humanos que há de se compreender seu sistema internacional de proteção.

O movimento de internacionalização dos direitos humanos constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Se a 2ª. Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução. É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional.

Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania. Inspirada por estas concepções, surge, em 1945, a Organização das Nações Unidas. Em 1948 é aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como um código de princípios e valores universais a serem respeitados pelos Estados.

A Declaração de 1948 inova a gramática dos direitos humanos ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que é marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos, sendo a dignidade humana o fundamento dos direitos humanos. Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais. A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção destes direitos - forma-se, assim, o sistema normativo global de proteção dos direitos humanos, no âmbito das Nações Unidas. Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos.

Neste sentido, cabe destacar que, até junho de 2000, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 144 Estadospartes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 142 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 119 Estados com 155 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 165 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes. O elevado número de Estados-partes destes tratados simboliza o grau de consenso internacional a respeito de temas centrais voltados aos direitos humanos. Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência 3 do sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional, por sua vez, integrado pelo sistema americano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos.

Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias do Direito dos Direitos Humanos. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos envolve quatro dimensões: a celebração de um consenso internacional sobre a necessidade de adotar parâmetros mínimos de proteção dos direitos humanos; a relação entre a gramática de direitos e a gramática de deveres; ou seja, os direitos internacionais impõem deveres jurídicos aos Estados (prestações positivas ou negativas); a criação de órgãos de proteção (ex: Comitês, Comissões e Relatorias da ONU, destacando-se, como exemplo, a atuação do Comitê contra a Tortura; do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, das Relatorias especiais temáticas – Relatoria especial da ONU para o tema da tortura; relatoria para o tema da execução extrajudicial, sumária e arbitrária; relatoria para o tema da violência contra a mulher; relatoria para o tema da moradia; da pobreza extrema,…) e Cortes internacionais (ex: Corte Interamericana de Direitos Humanos, Tribunal Penal Internacional,…); e a criação de mecanismos de monitoramento voltados à implementação dos direitos internacionalmente assegurados (ex: a sistemática dos relatórios e das petições). Feitas essas breves considerações a respeito dos instrumentos internacionais de direitos humanos, passa-se à análise do impacto que exercem no plano político e jurídico.

Para compreender o impacto jurídico destes tratados, a primeira regra a ser fixada é a de que os tratados internacionais só se aplicam aos Estados-partes, ou seja, aos Estados que expressamente consentiram com sua adoção. Como dispõe a Convenção de Viena: "Todo tratado em vigor é obrigatório em relação 4 às partes e deve ser observado por elas de boa fé.” Complementa o artigo 27 da Convenção:"Uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não cumprimento do tratado."Afirma-se assim a importância do princípio da boa-fé na esfera internacional, pelo qual cabe ao Estado conferir cumprimento às disposições de tratado com o qual livremente consentiu.

Ora, se o Estado no livre e pleno exercício de sua soberania ratifica um tratado, não pode posteriormente obstar seu cumprimento, sob pena de responsabilização internacional. Além do princípio da boa fé, outro princípio a merecer destaque é o princípio da prevalência da norma mais benéfica. A respeito, elucidativo é o artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos que, ao estabelecer regras interpretativas, determina que “nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados”. Consagra-se, assim, o princípio da norma mais favorável, seja ela do Direito Internacional, seja ela do Direito Interno. Na lição lapidar de Antonio Augusto Cançado Trindade:"(...) desvencilhamo-nos das amarras da velha e ociosa polêmica entre monistas e dualistas; neste campo de proteção, não se trata de primazia do direito internacional ou do direito interno, aqui em constante interação: a primazia é, no presente domínio, da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos consagrados da pessoa humana, seja ela uma norma de direito internacional ou de direito interno." Nesta ótica, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. Considerando os princípios da boa fé e da prevalência da norma mais benéfica, há que se avaliar o impacto dos tratados de direitos humanos no âmbito interno e no âmbito internacional.

No plano interno, constata-se que os tratados internacionais de direitos humanos inovam significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados - ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos. Em todas estas três hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. Neste sentido, os instrumentos internacionais de direitos humanos invocam a redefinição da cidadania, a partir da incorporação, ampliação e fortalecimento de direitos e garantias voltadas à proteção dos direitos humanos, a serem tutelados perante as instâncias nacionais e internacionais. É fundamental a interação entre o catálogo de direitos nacionalmente previstos e o catálogo de direitos internacionais, com vistas a assegurar a mais efetiva proteção aos direitos humanos. Impõe-se ainda ao Estado o dever de harmonizar a sua ordem jurídica interna à luz dos parâmetros mínimos de proteção dos direitos humanos – parâmetros estes livremente acolhidos pelos Estados.

No plano internacional, os tratados internacionais permitem o monitoramento internacional do modo pelo qual o Estado está implementando o tratado. Ao ratificar os tratados de direitos humanos, contraindo as obrigações internacionais dele decorrentes, o Estado passa a aceitar o monitoramento internacional no que se refere ao modo pelo qual os direitos fundamentais são respeitados em seu território. O Estado passa, assim, a consentir no controle e na fiscalização da comunidade internacional quando, em casos de violação a direitos fundamentais, a resposta das instituições nacionais mostra-se falha ou omissa. Enfatize-se que o Estado tem sempre a responsabilidade primária relativamente à proteção dos direitos humanos, constituindo a ação internacional uma ação suplementar, adicional e subsidiária, que pressupõe o esgotamento dos recursos internos para o seu acionamento. É sob esta perspectiva que se destaca a atuação dos Comitês e Comissões da ONU e do próprio Tribunal Penal Internacional (a ser ainda instalado). A ação internacional tem também auxiliado a publicidade e a visibilidade das violações de direitos humanos, o que oferece o risco do constrangimento político e moral ao Estado violador, o que tem permitido avanços e progressos na proteção dos direitos humanos. Vale dizer, ao enfrentar a publicidade das violações de direitos humanos, bem como as pressões internacionais, o Estado é praticamente “compelido” a apresentar justificações a respeito de sua prática, o que tem contribuído para transformar uma prática governamental específica, no que se refere aos direitos humanos, conferindo suporte ou estímulo para reformas internas.

Quando um Estado reconhece a legitimidade das intervenções internacionais na questão dos direitos humanos e, em resposta a pressões internacionais, altera sua prática com relação à matéria, fica reconstituída a relação entre Estado, cidadãos e atores internacionais. Estas dimensões são capazes de realçar a dupla dimensão dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, enquanto: a) parâmetros protetivos mínimos a serem observados pelos Estados e b) instância de proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas. Objetiva-se, de um lado, a observância de parâmetros protetivos mínimos e, ao mesmo tempo, busca-se impedir retrocessos e arbitrariedades e propiciar avanços no regime de proteção dos direitos humanos no âmbito interno. Esta é a maior contribuição que o uso do sistema internacional de proteção pode oferecer: propiciar progressos e avanços internos na proteção dos direitos humanos em um determinado Estado. Enfim, pode-se concluir que, com o intenso envolvimento da sociedade civil, o sistema internacional constitui poderoso mecanismo para reforçar a proteção dos direitos humanos em nossas regiões, invocando uma cidadania revitalizada e ampliada, pautada na prevalência absoluta da dignidade humana.

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