Entrevista com Luigi Ferrajoli
Por Fauzi Hassan Choukr
Fauzi Hassan Choukr, colunista do Canal Ciências Criminais, disponibilizou para nossos leitores entrevista que lhe foi concedida por Luigi Ferrajoli na data de 14/12/1997, em Roma. Pelos temas tratados, a entrevista mantém-se viva e interessante quase 18 anos depois, servindo para refletir o quanto (in) voluímos nesse período num particular momento em que a expansão do sistema penal parece ser inevitável.
FHC – Na sua obra “Direito e Razão” existe um tríplice conceito de garantismo sendo que todos eles trabalham com uma definição de soberania no sentido clássico. Pergunto-lhe: como pode operar o garantismo num mundo globalizado social e politicamente?
LF – Garantismo é antes de tudo um modelo de direito. Neste sentido significa submissão à lei a qual todos deverão ser sujeitados. É claro que o legislador está adstrito à lei e que, portanto, está vinculado a um poder soberano. Como decorrência, todos os poderes estão submetidos à vontade da lei que transformará os direitos fundamentais em direito constitucional interno. Dito isto, o grande problema que o garantismo enfrenta é também o de submeter à lei os poderes privados, além dos poderes estatais. Parece-me que o garantismo tem possibilidades de desenvolvimento que dependem de variados processos, como o constitucional e o cultural, e que fogem à tradição liberal clássica. Antes de tudo é necessário recordar que o garantismo nasce no âmbito dos direitos individuais, na tradição Iluminista como forma de limite ao poder soberano estatal (liberdade pessoal, de consciência, etc.). A segunda direção do garantismo é aquela ligada aos direitos privados. O garantismo, que sempre foi elaborado no confronto dos poderes públicos, deve ser também transposto para o confronto dos poderes privados, apenas que não há uma dimensão constitucional para isso, donde há uma ideia de onipotência do mercado…FHC – Este sentido de liberalismo então não é compatível com a ideia de garantismo.
LF – Seguramente há dois significados para as idéias de liberalismo e democracia. De um lado, democracia como exteriorização da vontade da maioria. Esta maioria poderia, nessa concepção, fazer aquilo que quisesse. Naturalmente esta é uma ideia paradoxal, autoritária, lesiva dos direitos das minorias. Esta concepção clássica de democracia é válida, mas é apenas uma das dimensões. É a dimensão política, a dimensão de quem decide, mas é necessário ter em conta em relação ao que esta decisão é tomada, daquilo que é deixado à discricionariedade para ser decidido. Mas eu defendo que a matéria decidível está circunscrita àquilo que não deve ser objeto de nenhuma decisão de poder soberano. A maioria deve estar restrita a decidir sobre as regras formais, a forma da decisão. Mas deve ficar claro que esta dimensão procedimental é insuficiente para o conceito de democracia. O constitucionalismo vinculou também o legislador, não apenas na forma de produção normativa mas também no seu conteúdo. Assim, o chamado Estado Democrático de Direito, como um sistema de limites e vínculos, corresponde a uma dimensão substancial, àquilo que não deve ser objeto de decisão pela maioria. Como decorrência, a liberal democracia, nos moldes propagados, acaba se transformando numa forma de neo absolutismo.FHC – Dentro de todo este quadro qual pode ser o papel do Poder Judiciário?
LF – O papel do Poder Judiciário é imenso, como um mecanismo impeditivo da invasão de um poder em outro, assumindo assim o principal papel, vez que constitucionalismo e garantismo significam submissão à lei. Nesse sentido, ambos geram um fenômeno relativamente novo, qual seja, o da limitação de poderes e da legalidade na atuação desse poder. É, digamos, a outra face do estado de direito, que vincula também o legislador, e assim faz crescer os vínculos e os limites legais. Neste ponto, todas as esferas de poder, púbico, privado, estatal, internacional, exigem um controle de jurisdicionalidade, com o objetivo de recompor as violações, seja através do controle de constitucionalidade ou, por exemplo, num recente fenômeno da história européia a punição à criminalidade de poder, como a corrupção, a concussão, etc., que são, de um lado, atreladas ao aumento das funções estatais, mas de outro são também elementos estruturais extremamente ligados à regulação capilar do exercício dos poderes públicos ao menos no modelo do estado de direito. Verdadeiramente, hoje, tende-se a livrar-se da jurisdição através de uma ideologia neo absolutística, que nega os vínculos legais através das desregulamentações etc. Assim o papel da jurisdição é, antes de tudo, destinado ao controle sobre a ilegalidade no exercício do poder. Não porque hoje há um poder mais corrupto do que no passado, mas porque, de um lado, aumentou a complexidade de organização do Estado e, de outro, também houve um aumento da estrutura garantística do direito. E cada aumento de garantia, isto é, de limites e vínculos, comporta um aumento no papel da jurisdição. Naturalmente a legitimação do papel do Poder Judiciário se dá pela legitimação da norma ou seja, a legitimação pelo direito penal, processo penal, processo civil, que fazem com que esse poder seja naturalmente um poder de recomposição e não de decisão.FHC – O garantismo necessita de uma estrutura cultura própria e, no Brasil, sentimos falta de uma base sólida voltada para estes valores. Este é um problema que se passa também aqui, na Itália?
LF: Sim, por certo. A realização de um modelo garantista está apoiado numa cultura garantística, fundada no respeito aos direitos do Homem. Então, a jurisdição se torna um poder ambivalente ou um “contra-poder”, que tem a missão de proteger as classes menos favorecidas do poder dos mais fortes. Mas, por outro lado, apresenta o mesmo perfil do poder tradicionalmente considerado. As garantias penais e processuais penais, por sua vez, são técnicas de minimização do poder institucionalizado. E são particularmente relevantes estas “instituições-chave” inseridas na Constituição. É certo que, no Parlamento, há a vivificação da democracia política, mas são estas garantias que permitem um controle da legalidade e evitam o autoritarismo. Assim, a atuação prática dessas garantias está a exigir uma típica cultura, uma típica formação que, de um lado, possibilite uma independência em relação aos poderes do Estado e, de outro, que sensibilize para os direitos civis e políticos, em especial em relação aos mais desfavorecidos.FHC – Aproveitando o realce da necessidade de uma maior atenção aos hiposuficientes, como o senhor entende o conteúdo da fórmula jurídica “direito subjetivo público” em face da construção teórica do garantismo?
LF – A expressão nasce na cultura alemã do século passado e, depois, transfere-se para a italiana, pela obra de Santi Romano. Na construção italiana, a fórmula “direito público subjetivo” está intimamente ligada à concessão de direitos pelo Estado com o objetivo de diminuir o papel dos direitos fundamentais. Isto porque, em sua origem, era uma ideia organicista e decisionista do Estado, de caráter ante-iluminista, ante-jusnaturalístico, que nega o caráter social do Estado. O direito público subjetivo procuraria encerrar, então, uma auto-limitação, uma auto-obrigação, do poder estatal, que é uma ideia que, de fato, nega o caráter, por assim dizer, da existência de direitos contra o Estado. Tudo isto está na base de uma certa visão que justifica a impossibilidade da existência de direitos fundamentais e mesmo de jurisdição contra o Estado. Mas na Europa há uma verdadeira revolução de paradigma constitucional e jurisdicional que vai de encontro ao denominado direito público subjetivoFHC – Muitas vezes se argumenta que não podem andar juntas as idéias de garantismo e eficiência. Na sua visão, qual o conceito que se pode ter de eficiência para o direito e processo penal a partir de uma ótica garantística?
LF – Há de ser distinto o conceito de eficiência para o direito e o processo penal. Para o direito penal há uma submissão da lei penal à lei fundamental, e o sistema processual será eficiente se realizar a tutela dos direitos fundamentais, estes nas suas mais variadas expressões, como a propriedade, honra, liberdade, etc. Mas, por um outro lado, as expressões garantia e eficiência tendem a se confundir, para traduzir a menor intervenção penal possível e a máxima realização da tutela dos direitos fundamentais. Surge, então, de um outro lado, aquilo que chamo de “reserva de Código”, que dá uma a certeza do direito e, digamos, sua procedibilidade. Tais não se voltam contra o julgador, mas contra o legislador, que se vê limitado sobretudo na produção de legislações excepcionais, propagandísticas que, lamentavelmente, formam a maior parte do acervo de normas penais. Voltando um pouco à garantia no seu aspecto processual, esta também compreende a correta aplicação da lei, ainda que, em certas ocasiões, não se atenda à opinião pública. No entanto, o sistema como apontado é o único capaz de conferir a necessária credibilidade no funcionamento da jurisdição, fazendo uma maior aproximação do mecanismo da jurisdição e da população, que sente confiança na movimentação da máquina judicial a partir do respeito que esta confere às garantias fundamentais. O reverso da medalha produz a justiça privada, a fuga da jurisdição.
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