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16 de Junho de 2024

Entrevista com Luigi Ferrajoli

Por Fauzi Hassan Choukr

há 9 anos

Entrevista com Luigi Ferrajoli

Fauzi Hassan Choukr, colunista do Canal Ciências Criminais, disponibilizou para nossos leitores entrevista que lhe foi concedida por Luigi Ferrajoli na data de 14/12/1997, em Roma. Pelos temas tratados, a entrevista mantém-se viva e interessante quase 18 anos depois, servindo para refletir o quanto (in) voluímos nesse período num particular momento em que a expansão do sistema penal parece ser inevitável.

FHC – Na sua obra “Direito e Razão” existe um tríplice conceito de garantismo sendo que todos eles trabalham com uma definição de soberania no sentido clássico. Pergunto-lhe: como pode operar o garantismo num mundo globalizado social e politicamente?

LF – Garantismo é antes de tudo um modelo de direito. Neste sentido significa submissão à lei a qual todos deverão ser sujeitados. É claro que o legislador está adstrito à lei e que, portanto, está vinculado a um poder soberano. Como decorrência, todos os poderes estão submetidos à vontade da lei que transformará os direitos fundamentais em direito constitucional interno. Dito isto, o grande problema que o garantismo enfrenta é também o de submeter à lei os poderes privados, além dos poderes estatais. Parece-me que o garantismo tem possibilidades de desenvolvimento que dependem de variados processos, como o constitucional e o cultural, e que fogem à tradição liberal clássica. Antes de tudo é necessário recordar que o garantismo nasce no âmbito dos direitos individuais, na tradição Iluminista como forma de limite ao poder soberano estatal (liberdade pessoal, de consciência, etc.). A segunda direção do garantismo é aquela ligada aos direitos privados. O garantismo, que sempre foi elaborado no confronto dos poderes públicos, deve ser também transposto para o confronto dos poderes privados, apenas que não há uma dimensão constitucional para isso, donde há uma ideia de onipotência do mercado…

FHC – Este sentido de liberalismo então não é compatível com a ideia de garantismo.

LF – Seguramente há dois significados para as idéias de liberalismo e democracia. De um lado, democracia como exteriorização da vontade da maioria. Esta maioria poderia, nessa concepção, fazer aquilo que quisesse. Naturalmente esta é uma ideia paradoxal, autoritária, lesiva dos direitos das minorias. Esta concepção clássica de democracia é válida, mas é apenas uma das dimensões. É a dimensão política, a dimensão de quem decide, mas é necessário ter em conta em relação ao que esta decisão é tomada, daquilo que é deixado à discricionariedade para ser decidido. Mas eu defendo que a matéria decidível está circunscrita àquilo que não deve ser objeto de nenhuma decisão de poder soberano. A maioria deve estar restrita a decidir sobre as regras formais, a forma da decisão. Mas deve ficar claro que esta dimensão procedimental é insuficiente para o conceito de democracia. O constitucionalismo vinculou também o legislador, não apenas na forma de produção normativa mas também no seu conteúdo. Assim, o chamado Estado Democrático de Direito, como um sistema de limites e vínculos, corresponde a uma dimensão substancial, àquilo que não deve ser objeto de decisão pela maioria. Como decorrência, a liberal democracia, nos moldes propagados, acaba se transformando numa forma de neo absolutismo.

FHC – Dentro de todo este quadro qual pode ser o papel do Poder Judiciário?

LF – O papel do Poder Judiciário é imenso, como um mecanismo impeditivo da invasão de um poder em outro, assumindo assim o principal papel, vez que constitucionalismo e garantismo significam submissão à lei. Nesse sentido, ambos geram um fenômeno relativamente novo, qual seja, o da limitação de poderes e da legalidade na atuação desse poder. É, digamos, a outra face do estado de direito, que vincula também o legislador, e assim faz crescer os vínculos e os limites legais. Neste ponto, todas as esferas de poder, púbico, privado, estatal, internacional, exigem um controle de jurisdicionalidade, com o objetivo de recompor as violações, seja através do controle de constitucionalidade ou, por exemplo, num recente fenômeno da história européia a punição à criminalidade de poder, como a corrupção, a concussão, etc., que são, de um lado, atreladas ao aumento das funções estatais, mas de outro são também elementos estruturais extremamente ligados à regulação capilar do exercício dos poderes públicos ao menos no modelo do estado de direito. Verdadeiramente, hoje, tende-se a livrar-se da jurisdição através de uma ideologia neo absolutística, que nega os vínculos legais através das desregulamentações etc. Assim o papel da jurisdição é, antes de tudo, destinado ao controle sobre a ilegalidade no exercício do poder. Não porque hoje há um poder mais corrupto do que no passado, mas porque, de um lado, aumentou a complexidade de organização do Estado e, de outro, também houve um aumento da estrutura garantística do direito. E cada aumento de garantia, isto é, de limites e vínculos, comporta um aumento no papel da jurisdição. Naturalmente a legitimação do papel do Poder Judiciário se dá pela legitimação da norma ou seja, a legitimação pelo direito penal, processo penal, processo civil, que fazem com que esse poder seja naturalmente um poder de recomposição e não de decisão.

FHC – O garantismo necessita de uma estrutura cultura própria e, no Brasil, sentimos falta de uma base sólida voltada para estes valores. Este é um problema que se passa também aqui, na Itália?

LF: Sim, por certo. A realização de um modelo garantista está apoiado numa cultura garantística, fundada no respeito aos direitos do Homem. Então, a jurisdição se torna um poder ambivalente ou um “contra-poder”, que tem a missão de proteger as classes menos favorecidas do poder dos mais fortes. Mas, por outro lado, apresenta o mesmo perfil do poder tradicionalmente considerado. As garantias penais e processuais penais, por sua vez, são técnicas de minimização do poder institucionalizado. E são particularmente relevantes estas “instituições-chave” inseridas na Constituição. É certo que, no Parlamento, há a vivificação da democracia política, mas são estas garantias que permitem um controle da legalidade e evitam o autoritarismo. Assim, a atuação prática dessas garantias está a exigir uma típica cultura, uma típica formação que, de um lado, possibilite uma independência em relação aos poderes do Estado e, de outro, que sensibilize para os direitos civis e políticos, em especial em relação aos mais desfavorecidos.

FHC – Aproveitando o realce da necessidade de uma maior atenção aos hiposuficientes, como o senhor entende o conteúdo da fórmula jurídica “direito subjetivo público” em face da construção teórica do garantismo?

LF – A expressão nasce na cultura alemã do século passado e, depois, transfere-se para a italiana, pela obra de Santi Romano. Na construção italiana, a fórmula “direito público subjetivo” está intimamente ligada à concessão de direitos pelo Estado com o objetivo de diminuir o papel dos direitos fundamentais. Isto porque, em sua origem, era uma ideia organicista e decisionista do Estado, de caráter ante-iluminista, ante-jusnaturalístico, que nega o caráter social do Estado. O direito público subjetivo procuraria encerrar, então, uma auto-limitação, uma auto-obrigação, do poder estatal, que é uma ideia que, de fato, nega o caráter, por assim dizer, da existência de direitos contra o Estado. Tudo isto está na base de uma certa visão que justifica a impossibilidade da existência de direitos fundamentais e mesmo de jurisdição contra o Estado. Mas na Europa há uma verdadeira revolução de paradigma constitucional e jurisdicional que vai de encontro ao denominado direito público subjetivo

FHC – Muitas vezes se argumenta que não podem andar juntas as idéias de garantismo e eficiência. Na sua visão, qual o conceito que se pode ter de eficiência para o direito e processo penal a partir de uma ótica garantística?

LF – Há de ser distinto o conceito de eficiência para o direito e o processo penal. Para o direito penal há uma submissão da lei penal à lei fundamental, e o sistema processual será eficiente se realizar a tutela dos direitos fundamentais, estes nas suas mais variadas expressões, como a propriedade, honra, liberdade, etc. Mas, por um outro lado, as expressões garantia e eficiência tendem a se confundir, para traduzir a menor intervenção penal possível e a máxima realização da tutela dos direitos fundamentais. Surge, então, de um outro lado, aquilo que chamo de “reserva de Código”, que dá uma a certeza do direito e, digamos, sua procedibilidade. Tais não se voltam contra o julgador, mas contra o legislador, que se vê limitado sobretudo na produção de legislações excepcionais, propagandísticas que, lamentavelmente, formam a maior parte do acervo de normas penais. Voltando um pouco à garantia no seu aspecto processual, esta também compreende a correta aplicação da lei, ainda que, em certas ocasiões, não se atenda à opinião pública. No entanto, o sistema como apontado é o único capaz de conferir a necessária credibilidade no funcionamento da jurisdição, fazendo uma maior aproximação do mecanismo da jurisdição e da população, que sente confiança na movimentação da máquina judicial a partir do respeito que esta confere às garantias fundamentais. O reverso da medalha produz a justiça privada, a fuga da jurisdição.
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