Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
17 de Junho de 2024

Estado deve tutelar direito à vida independentemente de questões religiosas

Publicado por Consultor Jurídico
há 10 anos

Iniciado o julgamento do HC 268.459/SP, pelo Superior Tribunal de Justiça, os ministros Maria Thereza de Assis Moura e Sebastião Reis Júnior, da 6ª Turma, votaram no sentido da inexistência de crime em relação aos pais que não autorizaram a transfusão de sangue para o filho por questões religiosas, com superveniente evento morte; entendendo se tratar de figura atípica, uma vez que o procedimento médico poderia ter sido realizado mesmo à revelia da família.

Essa questão traz a baila, novamente, a importante discussão entre o balanceamento da liberdade religiosa com a laicidade do Estado, pois se a Constituição consagra a liberdade de crença, como obrigar que os pais renunciassem à sua fé, constrangendo-os a autorizar eventual transfusão de sangue? Mas, se o Estado é laico, como deixar de proteger o direito à vida e, consequentemente, não punir a morte do filho causada pela ausência de transfusão de sangue não autorizada pelos pais em virtude de confissão religiosa?

A interpretação da Carta Magna brasileira, que manteve nossa tradição republicana de ampla liberdade religiosa, ao consagrar a inviolabilidade de crença e cultos religiosos, deve ser realizada em sua dupla acepção, pois protege o indivíduo e as diversas confissões religiosas de quaisquer intervenções ou mandamentos estatais, ao mesmo tempo em que assegura a laicidade do Estado, prevendo total liberdade estatal em relação aos dogmas e princípios religiosos.

A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois, sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, deuses ou entidades, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto, bem como, o direito de não acreditar ou professar nenhuma fé, devendo o Estado respeito ao ateísmo.

A coerção à pessoa humana, de forma a constrangê‑la a renunciar sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de ideias, filosofias e à própria diversidade espiritual, pois a proclamação constitucional da liberdade religiosa é a verdadeira consagração de maturidade do reconhecimento à liberdade de pensamento e livre manifestação de expressão, garantindo-se a ideia fundamental de tolerância religiosa e a vedação à qualquer tipo de imposição estatal de uma religião oficial em ferimento ao foro íntimo individual.

A interligação entre as ideias de liberdade religiosa e livre manifestação de expressão é histórica e fundamental, tanto que a primeira emenda à Constituição norte‑americana assegura a liberdade de culto, de expressão e de imprensa, afirmando que o Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos, ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de reunir‑se pacificamente, e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos.

O caso julgado pelo STJ, no tocante à aceitação da diversidade de dogmas religiosos, assemelha-se ao famoso caso “West Virginia State Board of Education v. Barnette, 319, U. S. 624 (1943), decidido pela Corte Suprema Americana, onde adeptos da seita “Testemunhas de Jeová” obtiveram sua exclusão da obrigatoriedade de saudação à bandeira norte-americana em colégio estaduais, pois afirmavam que tal “ato patriótico”, previsto em lei, era contrário a “proibição bíblica de adoração a imagens gravadas”, tendo o Juiz Jackson, em defesa da liberdade de crença religiosa, afirmado que “quem começa a eliminar coercitivamente as discordâncias logo a seguir está exterminando os que discordam. A unificação compulsória de opiniões só consegue a unanimidade do túmulo”.

A plena liberdade religiosa deve assegurar o respeito à diversidade dos dogmas e crenças, sem a hierarquização de interpretações bíblicas e religiosas que vem acarretando tantos sofrimentos desde as cruzadas e guerras santas até os atos de terrorismo em nome da fé. O respeito à fé alheia é primordial para a garantia de segurança de nossa própria fé, pois a verdadeira liberdade religiosa consagra a pluralidade, como bem lembrado por Thomas More em sua grande obra, ao narrar que “as religiões, na Utopia, variam não unicamente de uma província para outra, mas ainda dentro dos muros de cada cidade, estes adoram o Sol, aqueles divinizam a Lua ou outro qualquer planeta. Alguns veneram como Deus supremo um homem cuja glória e virtude brilharam outrora de um vivo fulgor”.

O respeito a esse direito fundamental consagrado como garantia formalmente prevista pelas diversas constituições democráticas, lamentavelmente, ainda, não se transformou em uma realidade universal, mas se mantém no campo da utopia como um mandamento fundamental, conforme também lembrado por Thomas More: “os utopianos incluem no número de suas mais antigas instituições a que proíbe prejudicar uma pessoa por sua religião”.

Os votos proferidos por ambos os ministros do STJ seguiram o mandamento fundamental consagrado por Thomas More em Utopia: “Como prejudicar os pais por sua religião”? Como condená-los criminalmente pelo fato de professarem a fé em que acreditam e por suas condutas seguirem seus dogmas?

O direito à vida, não obstante, é consagrado constitucionalmente e o Estado tem a obrigação de tutelar esse primordial direito fundamental, independentemente de questões religiosas ou proibições de pais ou parentes à transfusão de sangue ou outros procedimentos médicos contrários aos seus dogmas, com no caso em questão, sob pena de comprometimento de sua laicidade, que deve ser preservada.

O Estado deve respeitar todas as confissões religiosas, bem como a ausência delas, e seus seguidores, mas jamais sua legislação, suas condutas e políticas públicas devem ser pautadas por quaisquer dogmas ou crenças religiosas, pois como bem ressaltado pelo ministro Marco Aurélio, “as garantias do Estado secular e da liberdade de culto r...

Ver notícia na íntegra em Consultor Jurídico

  • Sobre o autorPublicação independente sobre direito e justiça
  • Publicações119348
  • Seguidores11018
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações507
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/estado-deve-tutelar-direito-a-vida-independentemente-de-questoes-religiosas/134441033

Informações relacionadas

Alberto Jorge Souto Ferreira, Advogado
Artigoshá 4 anos

No Brasil existe a pena de morte?

Artigoshá 6 anos

Inviolabilidade e indisponibilidade do direito à vida - conceitos diversos

Dra Lorena Lucena Tôrres, Advogado
Notíciashá 6 anos

Direito à vida: análise entre Brasil e Roma

Adriano Mendes Teixeira, Estudante de Direito
Artigoshá 8 anos

Os crimes de tortura e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana

Justiça Federal do Estado de Goiás
Notíciashá 13 anos

Direito à vida norteia decisão.

1 Comentário

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)
Valterdes Rodrigues
9 anos atrás

Matéria muito boa, informativa e bem pesquisada. Mas acho que em vista do modo como foi desenvolvida, o tema deveria ser em forma de pergunta em vez de uma afirmação; afinal tudo que lemos aí dá a entender que o Estado esta 'abusando' do poder ao priorizar o direito à vida sobre o direito à liberdade de crença. Se formos analisar mais a fundo descobriremos que o Doutor Juiz decide que uma transfusão de sangue se faz necessária ou até obrigatória baseando-se nas informações que recebe, muitas vezes na calada da noite, do Doutor Médico. Quantas vezes as informações são 100% exatas, sem preconceito e realmente pelo bem-estar da pessoa por inteiro? E quando nas pressas da urgência o médico toma uma decisão errada? Quantas vezes uma transfusão de sangue é realmente necessária em comparação com a realidade do excesso de uso de bolsas de sangue por interesse meramente financeiro? O assunto é delicado. Não? O maior problema é que muitas pessoas (membros do Estado ou não) são delicadas (quando não desqualificadas) demais para tomarem decisão sobre a vida alheia. continuar lendo