Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
6 de Maio de 2024

Frankenstein e a hybris do mercado de fetos

Publicado por Luiz Perico
há 9 anos

Tem sido relativamente ignorado no Brasil o escândalo da venda de órgãos de fetos (“parcialmente nascidos”, às vezes) para pesquisas por funcionários da Planned Parenthood, nos EUA. Funcionários de alto escalão da ONG foram flagrados por câmeras escondidas negociando com atores se passando por “pais” interessados em vender o feto, cujas partes seriam aproveitadas por laboratórios em pesquisas científicas

Lá, tem levantado um acirrado debate e uma onda de protestos, principalmente por parte de religiosos. Além da questão do aborto (espinhosa o suficiente), há a questão da “capitalização” dos fetos e do seu uso pela ciência.

Episódios como esse sempre me lembram do mito criado por Mary Shelley, o Prometeu Moderno, Frankenstein. Prometeu desafiou os deuses pelo fogo; Frankenstein (Victor, o doutor, o monstro não tem nome), já vivendo em um mundo “desencantado”, desafiou os segredos da vida em nome do conhecimento e do progresso científico.

Os antigos gregos trabalhavam com o conceito de “hybris”, algo como “desmedida”, falta de prudência. Hybris era a soberba (do latim “superbia”, o que sobra, o que supera) que levava os homens a desafiar os limites do humano e do divino, a transgredi-los, sendo inexoravelmente atingidos pela nêmesis divina, o castigo dos deuses. Prometeu, em sua hybris, desafiou Zeus e roubou o fogo (essa primeira forma de técnica e ciência) para a humanidade; por isso, foi acorrentado para ver eternamente o seu fígado ser comido pela águia de dia – para regenerar de noite e ser comido novamente no dia seguinte, num ciclo interminável de sofrimento.

Já o Prometeu Moderno, doutor Frankenstein, estudioso das ciências naturais, dá vida a um grande homem montando-o com pedaços humanos. Na verdade, o “grande homem” é um monstro horrendo que traria a morte àqueles a sua volta e a tragédia da sua própria história (a do doutor – mas também a da criatura). O antigo Prometeu foi punido pelos deuses; o moderno, por sua própria obra. Ou, dito de outra forma, pelos deuses.

Em nossos tempos, o tempo científico de Frankenstein, o estado positivo de Comte, a hybris atende pelo nome de razão e o fogo, ciência, técnica. Os deuses, dizem, são apenas mitos, há mesmo quem diga que Deus morreu, não está mais entre nós, e “se Deus não existe, tudo é permitido”, já disse o existencialista Sartre. Como Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki demonstraram há 70 anos de forma irrefutável, a razão não reconhece limites morais.

Contra a desmedida de Victor Frankenstein, levanta-se a religião, o dogma, esse “repositório dos mistérios eternos”. Sempre se entra em discussões bioéticas, costuma-se acusar religiosos de impor suas crenças e impedir o avanço científico. Talvez a religião, guardiã do mistério da “imago Dei”, do segredo da sacralidade da dignidade da vida (e da morte) humana, seja o último refúgio da bioética da vida humana, o profeta a nos alertar para o monstro que estamos criando e que se vingará de nós – em outras palavras, nos alertar para a nêmesis dos deuses a vingar nossa hybris.

Como Creonte teve que decidir o que fazer com os corpos de Etéocles e Polinice, hoje, Leviatã tem que decidir como tratará com os corpos humanos (os vivos e os mortos) na era da razão instrumental. Vai ter que decidir se ouve os clamores de Antígona de que as leis divinas, não escritas e atemporais, os homens não podem revogar, que todo doutor Frankenstein pode ser um doutor Fausto, que alguns estão dispostos a vender a alma ao demônio em nome da ciência (e de um punhado de notas verdes, não nos esqueçamos disso).

Antes que tenha que ouvir Tirésias.


(Originalmente publicado em http://www.jornalarcadas.com.br/coluna-frankensteinea-hybris-do-mercado-de-fetos/ )

  • Publicações11
  • Seguidores4
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações105
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/frankenstein-e-a-hybris-do-mercado-de-fetos/232877484

0 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)