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4 de Maio de 2024
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    Música por streaming: o que está em jogo na consulta pública promovida pelo Ministério da Cultura?

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    No dia 15 de fevereiro, o Ministério da Cultura, por meio de sua Diretoria de Direitos Intelectuais (DDI), submeteu para consulta pública (disponível até 30.03.16) uma Instrução Normativa que almeja regulamentar a cobrança de “direitos autorais no ambiente digital” que está dando o que falar. Tal ponto é ainda mais relevante se for levado em conta o fato de que está pendente de discussão no STJ um Recurso Especial (REsp 1559264) no qual se decidirá se determinados serviços de streaming de música da empresa OI devem ensejar o pagamento pelas músicas que são executadas online. Mas o que é exatamente streaming?

    Streaming é modalidade de transmissão de imagem ou som via rede de computadores que dispensa o usuário-receptor da necessidade de armazenar o arquivo correspondente àquele conteúdo, ou seja, de fazer um download do que deseja escutar, por exemplo. Por essa razão, no streaming de música, não se usa a memória física do computador (HD), mas, sim, a conexão à internet para transmissão dos dados necessários à execução do fonograma. Exemplos de serviços populares que funcionam via streaming são YouTube, Spotify, Netflix, Deezer, entre inúmeros outros.

    O streaming é gênero que se subdivide em várias espécies, dentre elas simulcasting e webcasting. Enquanto na primeira espécie há transmissão simultânea de uma programação que geralmente é produzida para um ambiente que não a internet, como, por exemplo, a transmissão de um programa de rádio ou de televisão simultaneamente via Internet, na segunda, o conteúdo é disponibilizado exclusivamente na web, com possibilidade ou não de interação do usuário na ordem da execução.

    Toda essa diferenciação teórica é importante para que se entendam as particularidades de cada serviço. No caso do simulcasting, há quem diga [1] que a cobrança seria uma espécie de bis in idem [2], tendo em vista que, via de regra, o pagamento pela execução pública daquela mesma programação já é feito quando da execução offline. No entanto, para o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), nem mesmo o simulcasting escapa e pouco importa a modalidade do serviço: o ECAD entende que deve o respectivo provedor pagar pela execução pública quando uma música é disponibilizada via streaming na internet, em qualquer tipo de serviço digital. E o que é exatamente o ECAD?

    O ECAD é uma instituição privada [3] que tem por objetivo fiscalizar e centralizar a arrecadação e distribuição dos valores relativos aos direitos autorais decorrentes da execução pública de música no Brasil. Partindo da premissa de que é praticamente impossível que um autor individualmente (ou uma gravadora) fiscalize onde e quantas vezes sua música é executada publicamente, a Lei de Direitos Autorais sempre previu a gestão coletiva desse assunto e determinou que um escritório central arrecadaria e distribuiria os valores devidos pela execução pública de músicas daqueles artistas que optaram por tal modalidade de gestão. Esse é, resumidamente, o contexto da existência e da função do ECAD.

    Entendendo o conceito de streaming, o conceito do ECAD e a hipótese em que ele é legitimado a cobrar, começamos a vislumbrar o cerne da questão que tanto se discute hoje quando o assunto é direitos autorais e música na internet. Ora, se o ECAD centraliza a cobrança e distribuição dos direitos autorais quando há execução pública de uma música, para saber se o ECAD deve cobrar pelo streaming, precisamos saber se streaming é ou não execução pública.

    Para aclarar essa dúvida, a atual Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) deveria servir de base. Deveria. Na verdade, a mera leitura da Lei não nos traz a resposta por um simples fator: ela é de 1998, quando não se imaginava o streaming de música como conhecemos hoje; ademais, a Lei apresenta um conceito totalmente circular do que é execução pública. Vejamos:

    Art. 68. (...)

    § 2º Considera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de freqüência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica.

    § 3º Consideram-se locais de freqüência coletiva os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas.

    Em outras palavras, tais dispositivos legais denotam que há execução pública quando a música é tocada em locais de frequência coletiva, ou, que há execução pública quando há execução pública (sim, de maneira circular e redundante). Nos exemplos de locais de frequência coletiva, não há qualquer um que se possa equiparar à internet, mesmo porque a internet é um meio de conexão de computadores em rede, não um “local” na concepção utilizada pela Lei de Direitos Autorais. Mas o ECAD entende que a internet é, tipicamente, um ambiente de frequência coletiva. Atenção especial merece ser dada a este ponto, porque nele residem duas possibilidades de interpretação totalmente distintas:

    Primeira (adotada pelos provedores de serviços de música online): quando uma música está disponível na internet, via streaming, ela, certamente, está acessível ao público. No entanto, se o usuário aperta o play e a ouve na tranquilidade de seu lar após um dia de trabalho ou no seu celular, com fones de ouvido, não há nada mais individualista que tais maneiras de ouvir música. Seria, então, a execução individual de algo que está armazenado em formato de acesso público. Segundo essa interpretação, não se deve confundir o meio de armazenamento com a forma de execução.

    Segunda (adotada pelo ECAD): A música disponibilizada via streaming é executada via internet, que, por definição, é um ambiente público, de frequência coletiva. Há nessa hipótese, então, efetivamente, uma execução pública toda vez que um usuário aperta o play, razão pela qual é devida compensação financeira por essa modalidade de utilização musical.

    Se a música disponibilizada via streaming estiver sendo utilizada para sonorização de uma festa em uma balada, com aglomeração de pessoas, não há grandes dúvidas de que a cobrança é devida, nos termos dos artigos 68, I e II e 99 da Lei de Direitos Autorais. Do mesmo modo, não há dúvidas de que é incabível a cobrança do ECAD quando o usuário adquire uma música, ainda que por meio da internet, e execute de forma individual, para sua própria audição. A complexidade e a controvérsia do tema surgem quando a situação é híbrida, ou seja, quando a música está publicamente acessível, via streaming (ainda que o acesso dependa da contratação de um serviço), mas sua execução, em determinado intervalo de tempo e espaço, ocorre apenas para o próprio usuário.

    Esquivando-se dos complexos argumentos fático-jurídicos ora brevemente expostos, a Instrução Normativa, posta em consulta pública pelo Ministério da Cultura, disciplina a cobrança pelo streaming partindo do pressuposto de que a interpretação correta é a segunda das duas expostas acima, ou seja, deve ser recolhido valor porque há, efetivamente, execução pública. No entanto, nem a Lei (de 1998!), nem o Judiciário deixam isso claro, tendo em vista que até mesmo o Superior Tribunal de Justiça aparenta ainda não ter formado totalmente seu convencimento para julgamento do Recurso Especial mencionado de início.

    Todos os elementos ora analisados indicam que a Instrução Normativa não resolve a polêmica; ao contrário, traz mais lenha à fogueira da discussão sobre os direitos autorais musicais e a internet. De todo modo, Ministério da Cultura, ECAD, Poder Judiciário, gravadoras, artistas e provedores de serviços de streaming não podem deixar de observar o foco principal do debate: o usuário, que efetivamente aperta o play da discussão. É o interesse do usuário na música online que fez o debate se acirrar, e também é o interesse do usuário que pode vir a mudar de rumo.

    O sucesso dos modelos de negócio das plataformas de streaming lícito de música ocorre, fundamentalmente, porque o usuário enxerga neles uma possibilidade de amplo acesso a conteúdo, de modo financeiramente justo e totalmente lícito. Se a licitude de tal modelo for colocada em xeque, ou se o preço subir, o usuário buscará meios alternativos (e não necessariamente legítimos) de consumir o conteúdo. Depois de muitos anos de significativos esforços de vários setores do mercado e da sociedade contra a pirataria e o download ilegal de música na internet, não seria coerente estimular, ainda que indiretamente e sem intenção deliberada, o regresso dos usuários à ilicitude.

    Luis Fernando Prado Chaves é advogado especialista em Direito Digital e Eletrônico no escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados, pós-graduado em Propriedade Intelectual e Novos Negócios pela FGV DIREITO SP e colaborador do Grupo de Ensino e Pesquisa em Inovação (GEPI) da FGV DIREITO SP.
    Guilherme Cunha Braguim é advogado especialista em Direito Digital e Eletrônico no escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados e pós-graduado em Propriedade Intelectual e Direito Autoral pela Escola Superior de Advocacia da OAB de São Paulo (ESA).
    REFERÊNCIAS 1 Como já afirmou o Desembargador Natan Zelinschi de Arruda do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao proferir seu voto, na qualidade de relator, em ocasião de julgamento de recurso de apelação (Apelação n. 0173652-06.2010.8.26.0100, Data de Julgamento: 24/04/2014, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/04/2014) 2 Expressão originalmente extraída do Direito Penal e aplicada, nesse caso, por analogia para se referir à impossibilidade jurídica de que uma pessoa seja “punida” mais de uma vez pelo mesmo fato. 3 Necessário não deixar dúvidas de que o pagamento ao ECAD tem destinação totalmente privada e, portanto, não possui natureza de tributo. Assim, é errado dizer que o Governo, a partir da Instrução Normativa posta em consulta pública pelo Ministério da Cultura, pretende criar tributo sobre a música na internet.
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