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23 de Maio de 2024
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    O perigoso esforço criminalizador: análise do tipo penal em casos de estupro

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    O Código Penal vigente considera estupro: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso”. (Artigo 213, caput. Grifos nossos.)

    No tocante aos elementos constitutivos do tipo, cabe salientar, desde já, que o art. 213 não criminalizou toda e qualquer prática de ato libidinoso sem o consentimento da vítima, mas tão somente aquelas que se operem por constrangimento mediante violência ou grave ameaça. A ausência de consentimento é um elemento implícito e necessário, mas insuficiente para a configuração desse delito, como previsto na legislação vigente.

    Quando a vítima não tem o necessário discernimento para prática do ato sexual em razão de:

    i) estar acometida por enfermidade; /p>

    ii) ter deficiência mental ou, ainda,

    iii) nas hipóteses em que não puder oferecer resistência por qualquer outro meio análogo (notadamente estado de inconsciência – sono, embriaguez, entorpecimento por medicação, coma, desmaio) a conduta se amoldará objetivamente ao tipo de estupro vulnerável (art. 217-A).

    Um dos argumentos que têm sido utilizados na análise desse lamentável caso é o de que a interpretação vigente sobre os conceitos de “constrangimento, “violência” e “grave ameaça” é fruto do machismo no meio jurídico, que restringiria tais termos ao que os homens entendem como violento ou ameaçador, desconsiderando a experiência das mulheres.

    É fato incontestável que o machismo exerce, historicamente, uma forte influência sobre a literatura e as decisões judiciais relativas aos crimes contra a dignidade sexual (antes “crimes contra os costumes”). A prática sexista de separar mulheres entre as “honestas”, que poderiam ser classificadas como reais vítimas de estupro, e as “desonestas”, as quais não mereceriam “proteção jurídica”, já esteve positivada na legislação penal e, ainda hoje, subjaz como metarregra jurídica.

    Vera Regina Pereira de Andrade, com sua precisão de costume, afirma que: “o sistema penal é ineficaz para proteger o livre exercício da sexualidade feminina e o domínio do próprio corpo. Se assim fosse, todas as vítimas seriam consideradas iguais perante a lei e o assento seria antes no fato crime e na violência do que na conjunção carnal. E elas teriam do sistema o reconhecimento e a solidariedade para com a sua dor. Não é casual que ocorra o inverso”. [1]

    No caso em comento, ninguém razoável seria capaz de negar à agredida a condição de vítima. Tampouco se nega que ela tenha sido molestada em sua liberdade sexual. A divergência se encontra na tentativa de proceder a uma exegese ampliadora do tipo penal para, com isso, fazer justiça a essa e a todas as mulheres cotidianamente vitimadas pelo machismo.

    Leia também: O perigoso esforço criminalizador: ainda sobre o caso do “estupro”

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    O que intitulamos como “esforço criminalizador” parece claramente se orientar por uma ética consequencialista que deveria, quando conveniente, relativizar princípios garantidores estampados na Constituição de 1988. De um lado, a punição do agente por importunação ofensiva ao pudor parece demasiado branda, dado o nível de lesão à dignidade da vítima. De outro, os termos empregados na decisão foram compreendidos como sinônimo de tolerância ao abuso e nova vitimização da ofendida.

    Por mais que as lutas emancipatórias travadas por movimentos feministas tenham máxima legitimidade e urgência, a tática empregada, neste caso, guarda enorme similitude com aquela utilizada pelos representantes dos movimentos de “lei e ordem”. Situado nesses termos, nossa divergência é de forma, e não de conteúdo.

    Ademais, foi exatamente esse o procedimento da maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal quando decidiram relativizar o princípio constitucional da presunção de inocência para autorizar a execução provisória da pena. Os limites do texto constitucional foram dramaticamente extrapolados para produzir uma interpretação que permitisse responder à demanda social e jurídica pelo combate à impunidade (notadamente dos acusados de colarinho branco). Sabemos, entretanto, quem serão os principais atingidos por este expediente [2].

    É nesse sentido que afirmamos: o ato odioso praticado contra essa vítima não justifica um inadvertido (e inconstitucional) alargamento dos conceitos de constrangimento, violência e grave ameaça para fins político-criminais. Esse movimento representa:

    i) uma violação do princípio da legalidade;

    ii) uma perigosa ampliação do poder punitivo que, como de costume, poderá não se restringir aos “hard cases” ou ao capítulo dos crimes sexuais.

    Ou seja, mediante a nobre intenção de proteger e amparar mulheres, se estará criando novas hipóteses criminalizadoras que poderão afetar, seletiva e arbitrariamente, a vulnerável clientela preferencial do sistema penal.

    Feitas estas ressalvas, passemos à análise dos elementos objetivos do tipo de estupro e, pontualmente, a considerações acerca do dolo exigido nesse crime – algo que parece ter sido esquecido no debate.

    A palavra constrangimento possui diversos significados no vernáculo, podendo ser empregada para descrever inúmeras sensações que nos causam vergonha, embaraço ou vexame. Nesse sentido, é evidente que a vítima sofreu gravíssimo constrangimento ao passar por um episódio tão deplorável. O ponto central é: qual o significado atribuído ao verbo-núcleo deste tipo penal específico?

    Nos termos do tipo penal em questão, “constranger” significa coagir; obrigar, subjugar. Quem coage o faz de algum modo – por isso a mediação com os termos “violência ou grave ameaça”. Trata-se de dominar a vontade de alguém através do emprego de um certo meio. É, em outras palavras, controlar o comportamento de outrem dirigindo sua ação ou omissão.

    Recorrer a uma suposta interpretação literal para afirmar que a lei empregou “constranger” no sentido de “humilhar” é análogo a suscitar a polissemia da palavra manga (fruta e parte da roupa que cobre o braço). Basta uma simples interpretação sistemática para verificar que o termo “constranger” está empregado em outros seis tipos penais presentes no códex, onde, em todos os casos, quer dizer exatamente a mesma coisa: coagir.

    Pois bem, se sustenta que na situação em análise a vítima foi “constrangida, mediante violência ou grave ameaça, a permitir que com ela se praticasse ato libidinoso”. De fato, estamos de pleno acordo que ejacular no pescoço de alguém configura ato de libidinagem. Ocorre que, no caso em questão, é impossível reconhecer coação, posto que a vítima não foi dominada, física ou psicologicamente, para que tolerasse a ejaculação.

    A ejaculação aconteceu enquanto a vítima estava distraída com o celular, isto é, ela não percebeu qualquer ação anterior do sujeito, tendo sido surpreendida ao sentir o esperma em sua pele. Ninguém pode ser coagido sem ter tido contato anterior com o coator. É, portanto, descabido afirmar que a vítima foi obrigada pelo agressor a se manter inerte ou a realizar qualquer movimento permissivo.

    Neste episódio lamentável, embora a vítima não tenha consentido que nela se ejaculasse, também não foi forçada, através de violência ou grave ameaça, a permitir tal ato. O indiciado simplesmente praticou conduta libidinosa sem que a vítima percebesse previamente.

    Apenas por exercício de imaginação, se o agressor tivesse segurado o pescoço da vítima ou feito qualquer gesto intimidativo que a deixasse sem reação, estaria configurado o tipo objetivo de estupro. Contudo, trata-se de uma situação peculiar onde o agente não chegou a tocar na vítima (coação física) ou a fazer qualquer ameaça verbal ou gestual (coação moral).

    Nesse sentido, pela ausência de domínio físico ou moral, do ponto vista técnico-jurídico de uma dogmática comprometida em limitar o poder punitivo, não se pode falar que a vítima tenha sido constrangida, o que afasta a incidência do art. 213 do CP.

    Entretanto, por amor ao debate, examinemos o conteúdo semântico das expressões violência e grave ameaça no âmbito do crime de estupro.

    Quanto ao conceito de violência, são muitos os filósofos e sociólogos que tentam lhe dar tratamentos distintos, formulando, para fins de exemplo, a noção de violência simbólica, donde a vítima sofre uma violência moral ou psicológica sem que, para isso, tenha sido empregada nenhuma coação física. Se empregarmos essa acepção, parece-nos evidente que a vítima sofreu, sim, violência. Entretanto, não é essa a forma de violência disciplinada pelo tipo penal em debate.

    O elemento normativo do tipo (“violência”) sempre foi compreendido, pela doutrina e pela jurisprudência, como sinônimo de emprego de força física apta a dominar a vontade da vítima. Confessamos nosso desconhecimento sobre qualquer literatura da dogmática penal que defendesse conceito diverso do que foi acima delineado.

    Diante da comoção causada pelo caso, passou-se a defender que o ato de “ejacular no pescoço da vítima” seja compreendido como violência para fins de configuração do elemento normativo do tipo de estupro.

    Sugeriu-se, também, que como o ato de cuspir configuraria “violência ou vias de fato” para fins de tipificação do crime de injúria real, com mais razão a ejaculação deveria ser tida como violência nos termos do art. 213 do Código Penal.

    Como se sabe, a expressão “violência” está prevista em diversos dispositivos do Código Penal, não apenas em tipos penais, mas na parte geral, onde uma série de normas penais benéficas estão condicionadas a inocorrência dessa elementar típica. Ao todo são 75 (setenta e cinco) vezes em que o legislador utilizou o termo.

    A título de exemplo, pensemos no delito de roubo – consumado pela subtração de “coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência”. A interpretação aqui é rigorosamente a mesma que se faz no estupro: coação física, emprego de força.

    Imaginemos que o agente cuspa no rosto da vítima, sem proferir qualquer palavra e, depois, aproveitando a distração, lhe subtraia “suavemente” o celular. A prosperar o entendimento defendido, o agente teria cometido não o crime de furto, mas o de roubo, posto que a cusparada deveria ser lida como ato de violência. Esse é apenas um exemplo trivial do que pode vir a acontecer em decorrência do alargamento do sentido de expressões incriminadoras.

    Suponhamos, contudo, que se proceda a abertura semântica, ignorando a vedação de retroação da jurisprudência in malam partem, chegando a conclusão de que é possível considerar o ato perpetrado por Diego Novais como “violência”. Ainda assim não haverá crime de estupro, pois este foi o ato libidinoso praticado e não o meio utilizado para constranger a vítima a praticar ou tolerar ato sexual.

    “A violência e a grave ameaça são o modo de execução do crime e não a forma final da prática do ato. Deve-se levar em conta que “conjunção carnal” e “outro ato libidinoso” são elementares do crime de estupro e que somente se chega ao verbo nuclear “constranger” através dos modos de execução violência ou grave ameaça”. [3]

    A expressão “grave ameaça” não é, tal como “violência”, exclusividade do tipo penal de estupro, visto que se encontra citada 23 (vinte e três) vezes no Código Penal.

    O tipo penal estupro é caracterizado apenas pela ameaça grave, isto é, a ameaça que efetivamente imponha medo, receio, temor na vítima e que lhe seja de capital importância, opondo-se à sua liberdade de querer e de agir. Consiste, portanto, em intimidação, na ameaça de um mal grave e sério, capaz de impor medo à vítima.

    Nesse ponto, uma das mais interessantes considerações realizadas pelos críticos da decisão judicial em análise não pode ser ignorada. Sustentou-se que conduta de um homem que se masturba perante uma mulher é meio capaz de impor à vítima terror suficiente para que ela se torne incapaz de reagir, frustrando sua livre manifestação de vontade. Desse modo, se o agente se masturba diante da vítima, causando-lhe estado de pânico que a deixa paralisada e depois pratica com ela ato libidinoso, estaria configurado o tipo objetivo do crime de estupro.

    Como sempre se admitiu que a grave ameaça possa ser feita por meio de gestos, parece coerente compreender a masturbação direcionada à vítima, em certos contextos, como instrumento apto a produzir coação moral. É também razoável supor que essa possibilidade não tenha sido antes aventada em razão do machismo que se faz presente nos tribunais e na Academia.

    Todavia, ainda que admitamos tal entendimento, ele não se aplicaria ao caso em exame por, pelo menos, dois motivos:

    Ainda que houvesse tipo objetivo de estupro na situação hipotética apresentada, haveria graves problemas para se extrair o dolo do agente. Mediante esta análise destrinchada do tipo penal de estupro, percebe-se que não pode ser imputada ao agente a prática do delito descrito no artigo 213 do Código Penal.

    Lucas Sada é Advogado do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH). Roberta Moreira de Araujo, advogada militante e especialista em Direito Penal e Processual Penal. Thiago Araujo é Professor de Direito Penal e Criminologia (UFRJ). Este artigo foi dividido em 3 partes e serão publicados na semana do dia 11 de setembro no Justificando. Leia o anterior aqui: O perigoso esforço criminalizador: ainda sobre o caso do “estupro”

    [1] (Grifos nossos). ANDRADE, Vera Regina. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des) ilusão. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2014, p. 155.

    [2] “Não ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória” não vedaria a possibilidade de aplicação de pena após o acórdão condenatório em nome da efetividade da jurisdição criminal. Afinal, a Constituição não disse “é proibida a prisão”, apenas utilizou “não considerar culpado”.

    [3] (Grifos nossos) Nucci, Guilherme de Souza ; Alves, Jamil Chaim ; BARONE, Rafael ; BURRI, Juliana ; CUNHA, Patrícia ; ZANON, Raphael . O crime de estupro sob o prisma da Lei 12.015/2009 (arts. 213 e 217-A do CP). IN: Revista dos Tribunais, v. 902. São Paulo, 2010, pp. 395-422.

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