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16 de Junho de 2024
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    O sistema de justiça criminal promove a barbárie contra os pobres e lutadores sociais

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    A criminalização da pobreza e dos movimentos populares são fenômenos cuja existência nem mesmo um observador menos atento pode deixar de notar como marca de nossa realidade nessa quadra da história.

    A aterrorizante situação das prisões brasileiras e a recente prisão de Guilherme Boulos, liderança de movimento popular (MTST) que luta pela concretização do direito fundamental à moradia (CR/88, art. 6º, caput)[1], são fatos representativos desta realidade e demonstram que, no país, a missão essencial do sistema de justiça criminal é a de servir como instrumento de contenção das classes desfavorecidas e das lutas sociais.

    Quanto à criminalização da pobreza, os dados sobre encarceramento no Brasil são também reveladores. Demonstram, muito claramente, que o público preferencial do sistema penal é composto, em sua ampla e esmagadora maioria, por jovens pobres, negros e com baixa escolaridade.

    De acordo com pesquisa divulgada pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em dezembro de 2014 o Brasil possuía a assombrosa população carcerária de 622 mil pessoas[2], constituída por 61,67% de negros, 74% de indivíduos com idade entre 18 e 34 anos e por 75,08% de detentos que nunca frequentaram a escola ou que frequentaram apenas o ensino fundamental.

    É exatamente essa parcela da população que tem sido vítima da carnificina que está ocorrendo nos presídios brasileiros e que, cotidianamente, nas periferias e no interior do país, não somente se vê privada de direitos fundamentais básicos, como trabalho, educação, saúde, terra e moradia, como também sofre com a violência praticada pelas mãos das forças de segurança do Estado, destacando-se o extermínio da juventude negra.

    Ainda de acordo com a pesquisa mencionada, os presos no país respondem, em 46% dos casos, a acusações de cometimento de crimes contra o patrimônio (furto, roubo etc.) e em 28% dos casos a acusações da prática de crimes da Lei de Drogas (entre as mulheres, o índice e de 64%), cabendo mencionar, por fim, que cerca de 40% da população carcerária é constituída de presos provisórios, ou seja, que não foram julgados sequer em primeira instância.

    A análise de Pedro Serrano a respeito desse conjunto de dados e circunstâncias é irretocável: “o que há efetivamente no Brasil é a coexistência de um Estado de Direito instituído – que governa para os incluídos economicamente – e de um estado de exceção, ao qual estão submetidos os territórios ocupados pela pobreza. […] o endurecimento da punição aos crimes relacionados às drogas e crimes contra a propriedade, como roubos e furtos, corresponde, na realidade, ao interesse da elite incluída”.

    Ou, como na precisa definição de Marcio Sotelo Felippe, vivemos no país um “estado de guerra contra os excluídos” e, “sob a complacência histórica e generalizada da sociedade”, a prisão injusta, o assassinato, a tortura e a barbárie, dentro e fora dos presídios, estão simbolicamente autorizados.

    De outro lado, se é verdade que nenhum direito fundamental foi reconhecido ou efetivado sem a luta, o sacrifício e o sofrimento dos povos, também se pode afirmar que a resposta estatal para as lutas protagonizadas por movimentos populares e pela dissidência política, em grande parte das vezes, restringe-se à repressão penal.

    É assim que, com aquele mesmo objetivo de manter os privilégios das classes dominantes, o sistema de justiça criminal também tem a missão de servir de instrumento para amedrontar, desmobilizar e neutralizar as lutas realizadas em prol do cumprimento das promessas constitucionais.

    Nos últimos anos, mudanças de entendimento jurisprudencial a respeito de direitos fundamentais relacionados à atividade punitiva estatal e a aprovação de novas leis penais e processuais pelo Congresso Nacional abriram um ciclo mais grave de autoritarismo penal no país, direcionado aos pobres, aos movimentos populares e, também, a determinados partidos políticos.

    Foi com o julgamento da Ação Penal nº 470 (mensalão) pelo Supremo Tribunal Federal que a teoria do domínio do fato, invocada agora contra Guilherme Boulos, ganhou visibilidade. Usada de forma propositalmente equivocada, foi a partir dela que se tentou conferir verniz de legalidade às acusações contra dirigentes partidários contra os quais não existiam provas suficientes para condenação.

    Mas, no início dos anos 2000, essa teoria já havia sido equivocadamente utilizada contra trabalhadores rurais integrantes do MST na região do Pontal do Paranapanema, em São Paulo. Naquele período, um grupo de promotores da região elaborou uma série de denúncias criminais sem lastro em provas concretas, baseadas somente num suposto exercício de liderança por alguns integrantes do MST sobre uma denominada “massa de manobra acéfala”.

    Essas acusações geraram diversos processos criminais e prisões preventivas decretadas por um mesmo juiz, mas não se sustentaram perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, como nos precedentes a seguir:

    “[…] A mera circunstância de esses acusados serem reconhecidos de forma notória como líderes do movimento conhecido como M.S.T. não determina, automaticamente e apenas em razão disso, a condenação de todos eles, mesmo porque, como foi salientado pela própria sentença, não se pode confundir o conjunto dos participantes desse movimento, que possui fins em tese legítimos, com a ação de alguns de seus integrantes cujas condutas tenham se apartado daqueles fins que caracterizam o dito movimento. Por outras palavras, não há fundamento legítimo para a condenação de alguém apenas por ter sido rotulado como integrante do M.S.T., sob pena de avançar-se por decisão condenatória ditada por odiosa presunção de culpa, mesmo porque entre nós a responsabilidade penal objetiva não encontra agasalho.” (TJSP, Apelação nº 9190632-25.2003.8.26.0000, da Comarca de Teodoro Sampaio, Des. ANTONIO LUIZ PIRES NETO, 2ª Câmara de Direito Criminal, j. 08/08/2011).

    “[…] Não é porque se veja ligado ao MST, que o trabalhador há de ser um tumultuário, um agressor da paz coletiva, um invasor irresponsável de terras muitas vezes produtivas. A responsabilidade objetiva, felizmente, de há muito não faz parte do nosso ordenamento jurídico penal. […].” (TJSP, HC nº 9010318-21.2002.8.26.0000 (386.660-3/9) da Comarca de Teodoro Sampaio, 2ª Câmara de Direito Criminal, Rel. Des. CANGUÇU DE ALMEIDA, j. 10/02/2003).

    “Quadrilha ou bando, furto qualificado e incêndio qualificado. Ocorrência da prescrição em abstrato da pretensão punitiva do crime de quadrilha ou bando. Absolvição na origem. Materialidade comprovada. Autoria, no entanto, duvidosa. Palavras testemunhais e das vítimas insuficientes a embasar condenação. Teoria do domínio do fato. Não aplicação. Inexistência de provas a comprovar o tamanho da influência dos acusados sobre seus liderados. Prova fraca. Prudência a recomendar o ‘non liquet’. Absolvição necessária. Apelo improvido.” (TJSP, Apelação nº 9182934-02.2002.8.26.0000 (993.02.030397-9), 4ª Câmara de Direito Criminal – Comarca de Mirante Paranapanema, Des. Rel. LUIZ SOARES DE MELLO, j. 07/02/2006).

    Embora os movimentos populares, notadamente os do campo, tenham obtido êxitos nos tribunais ao questionar a criminalização da luta social, isso não foi suficiente para evitar que muitos juízes e promotores continuassem a tratar a questão social como caso de polícia.

    Como já abordado nesta coluna em distintas ocasiões, trabalhadores rurais vinculados ao MST de Goiás respondem a processo criminal relacionado a ocupações de terra, no qual são acusados da prática do delito de organização criminosa previsto no art. e , da Lei 12.850/2013. Em razão dessas imputações, dois dos denunciados permanecem presos em caráter provisório. Contra eles também foi invocada a teoria do domínio do fato.

    Seguindo o mesmo receituário, mais recentemente, em dezembro de 2016, também no contexto da luta pela reforma agrária, a justiça do Paraná recebeu contra 19 trabalhadores rurais denúncia criminal acusando-os, dentre outros delitos, da prática do crime de organização criminosa. Dentre estes, 14 estão com prisão preventiva decretada.

    É assustador que, com base em distorções muito (in) convenientes da referida teoria, trabalhadores e trabalhadoras rurais tenham sido submetidos aos horrores da prisão e que, por ocasião do julgamento da ação penal nº 470, a chancela para essas distorções tenha sido dada diante dos holofotes televisivos por ninguém menos que a mais alta corte de justiça do país.

    Diante deste cenário, o reconhecimento de que o sistema de justiça criminal brasileiro está posto a serviço da barbárie contra os pobres e contra os lutadores sociais é o ponto de partida da longa batalha que devemos travar em defesa da dignidade humana. Se existe esperança, ela está na capacidade reagirmos.

    [1] E também Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, art. 25.

    [2] O Brasil ocupa o 4º lugar no ranking de encarceramento mundial, antecedido por Estados Unidos (2.217.000 presos), China (1.657,812 presos) e Russia (644.000 presos).

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