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16 de Junho de 2024
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    Por um discurso anti-punitivista e uma fé que dialogue

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Imagem: Frente Evangélica pela Legalização do Aborto/Facebook

    Existe um processo sério e cruel de culpabilização e demonização das mulheres na sociedade brasileira e também nas igrejas. Começando por um discurso que alude à figura de Eva, essa mulher originária, que “se deixou” ser tentada e “levou” o homem a cair em tentação, passando por tantas outras personagens bíblicas caracterizadas como “manipuladoras”, “enganadoras”.

    Entendemos que essas leituras inviabilizam nosso existir e invisibilizam nossas necessidades, lamentos, dores e as nossas indignações, algo que nos provoca profundo incômodo. Mesmo antes de ouvirmos pela primeira vez a palavra “feminismo” era gritante em cada uma de nós a sensação de opressão que sentíamos nas igrejas simplesmente por sermos mulheres, sensação que para nós soava muito diferente do que sempre enxergamos nas palavras e na trajetória da figura central de nossa fé, o Cristo de Nazaré.

    Nessa caminhada, nos descobrimos mulheres, negras, brancas, periféricas e evangélicas e nos deparamos com as dificuldades que estruturas formadas antes de nós nascermos, nos trariam na tentativa de viver esse evangelho comprometido com os oprimidos. Como filhas de pastores, de igrejas tradicionais, fomos formadas pela leitura da bíblia branca, ocidental e, acima de tudo, masculina. Como subsistir e sobreviver em nossos espaços de fé se dentro de nós a demanda por outros significados era tão gritante?

    Era preciso conhecer outras mulheres que haviam passado pela mesma indignação que nós e criar uma Frente ampla de mulheres que diversificasse pensamentos e promovesse construção conjunta, diálogo, sem perder os aspectos centrais que definem a nossa fé, uma fé dos pobres, que faz uma leitura bíblica popular e contextualizada, com uma espiritualidade libertadora e que propõe uma evangelização inculturada.

    Muito disso era apenas um desejo, até que em 2017, nas articulações com várias organizações feministas em torno da ADPF 442 – que reivindica que o Supremo Tribunal Federal reveja os artigos 124 e 126 do código penal, que criminalizam quem interrompe a gestação –, vimos a necessidade de se constituir um espaço de luta que reunisse mulheres evangélicas feministas.

    Tal necessidade se assentou em meio aos conflitos com as argumentações “do outro lado” que tinham um forte caráter religioso, uma argumentação extremamente pretensiosa, que falava contra a descriminalização em nome de todo o movimento Evangélico, se colocando como toda e única verdade possível. Argumento defendido por uma maioria religiosa, masculina, que acredita que pode falar em nosso nome apagando toda uma diversidade de posicionamentos políticos existentes no cristianismo. É da indignação evidenciada nesse processo que nasce a FEPLA, a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto.

    Um dos maiores obstáculos que enfrentamos desde sempre é vencer a associação de que ser pró-legalização é fazer apologia ao aborto. Os argumentos contrários múltiplos que vemos todos os dias (e também os insultos) se baseiam na defesa da vida. Entendemos que também defendemos a vida e muito do que fazemos hoje consiste em amplificar as possíveis leituras da bíblia de maneira que elas dialoguem com a contemporaneidade da sociedade brasileira, alertando sobre a dicotomia existente no que pregava o Jesus de Nazaré e o que defende a bancada conservadora hoje.

    Se existe uma compreensão de que a legislação atual não impede os abortamentos, a explicação plausível para a manutenção da criminalização da interrupção voluntária da gravidez é manter a lógica de punição dessa mulher que abortou, ou seja, mesmo compreendendo a ineficiência do sistema atual optamos por manter essa política por mero desejo de vingança. Um sentimento que jamais deveria pautar qualquer política pública e menos ainda ser aceito como posicionamento cristão, já que esse sentimento é o contra o senso da graça, perdão e misericórdia que encontramos no evangelho. É preciso considerar o livre-arbítrio e a laicidade do Estado.

    O conceito de laicidade supõe que as políticas não devem ser pautadas por posicionamentos ou dogmas religiosos. Se na avaliação de algumas igrejas é de que o aborto é pecado, que ensinem isso em seus espaços de culto, porém isso não pode ser elevado ao estatuto de legislação e de penalização dos corpos. É lícito defender uma ampla política de criminalização apenas baseado em uma concepção de pecado? A concepção de pecado existe na política apenas quando conveniente para setores que historicamente usam a bíblia e a fé cristã para manter privilégios, a alusão à uma leitura bíblica do Cristo que repartia riquezas e que falava contra os ricos não parece importar quando vemos a bancada evangélica se calar diante de propostas como o imposto sobre grandes fortunas, por exemplo. Se vamos pautar criminalizações baseados em concepção de pecado, que todos nós, seres humanos, sejamos encarcerados, como pecadores que somos.

    Outro ponto relevante a considerar é que nosso passado escravocrata ainda tão recente, nos coloca o desafio de contrariar em todo o tempo o racismo institucional, cravado na fundação das nossas políticas públicas. Dados estatísticos divulgados com recorrência mostram que as mulheres que hoje são encarceradas ou morrem em decorrência de abortamentos inseguros, têm pertencimento étnico-racial não branco e habitam as regiões das grandes cidades consideradas periféricas. É desafiador trabalhar todas essas questões, ainda mais em um momento de tanta polarização.

    Desde que a Frente nasceu, somos alvo dos mais variados tipos de ataques. Igrejas, grupos fascistas, transformaram nossas páginas virtuais do coletivo, bem como nossos perfis pessoais nas redes socais, o destino prioritário de seus discursos de ódio. Em pouquíssimo tempo de existência da rede, já colecionamos ameaças e xingamentos, inclusive, de algumas lideranças evangélicas midiáticas de forte expressão. Há algumas semanas, iniciamos a divulgação de um evento que irá ocorrer nos próximos dias (no próximo dia 26 de junho às 18h na faculdade de direito da Universidade Federal Fluminense), desde então temos sido alvo de ataques e ameaças.

    Acreditamos que não existe neutralidade hermenêutica ou exegética do texto bíblico, a fé é uma aposta e nós escolhemos apostar no evangelho que gera vida, libertação e autonomia. Decidimos nos levantar pra dizer que essa política de opressão não acontecerá em nosso nome.Parafraseando nossa querida companheira luterana Lusmarina: “Se em nome de Deus alguns oprimem, em nome de Deus,seremos canal de libertação”[1]. Se em nome de Deus alguns banalizam as mortes das mulheres, em nome de Deus nós as valorizamos.

    Sobre o evento do dia 26/06, desde que o evento foi ao ar, inúmeras páginas conservadoras, grupos fascistas e fundamentalistas levantaram boicotes e fizeram ameaças para tentar acabar com nosso espaço de conversa sobre o assunto. Por isso, esperamos que as pessoas que tem algum apreço pelo pouco de democracia e liberdade que nos resta, se somem nesse dia para que possamos avançar nas discussões sobre a ADPF 442 junto com as outras organizações presentes, tais como as queridas Católicas pelo direito de decidir, e Anis – instituto de bioética, além da parceria incrível com o programa de pós-graduação em Sociologia, Direito e Democracia da UFF. Esperamos que esse evento seja um passo importante para sacudir e mobilizar as pessoas sobre a urgência da garantia desse direito fundamental.

    Por fim, vale lembrar que as queridas hermanas argentinas, nos encheram de esperança nessas últimas semanas e injetaram em nós ânimo e resistência para continuar a luta. E é com uma frase que surgiu 100 anos atrás no movimento de reforma universitária de Córdoba, mas que se aplica perfeitamente a realidade das mulheres latino-americanas que juntas dizemos: “As dores que nos restam, são as liberdades que nos faltam!”

    Avante companheiras!

    Camila Mantovani e Juliana Baptista para a coluna (Fé) ministas.

    [1]Lusmarina Campos Garcia é pastora luterana, mestre em Direito e Ciências Sociais pela UFRJ e Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e foi uma das figuras centrais na reconstrução do terreiro Conceição d’Lissá, na baixada fluminense do Rio de Janeiro, alvo de ataques constantes de grupos religiosos intolerantes. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/se-em-nome-de-cristo-eles-destroem-em-nome-de-cristo-vamos-reconstruir-evangelicos-ajudam-na-reconstrucao-de-terreiro.ghtml

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