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16 de Junho de 2024
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    Precisamos falar sobre a Hanseníase e as vítimas abandonadas pelo Estado

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Paciente de hanseníase em antigo hospital-colônia em Itaboraí/RJ (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

    Precisamos falar sobre luta antimanicomial, mas nos faltam palavras para descrever os horrores vividos por pessoas que estiveram em instituições manicomiais e também dos filhos separados dos seus pais em razão do preconceito do Estado brasileiro e dos agentes de saúde que estiveram diretamente implicados nesse verdadeiro holocausto que ocorreu no Brasil.[1]

    Este texto tem o propósito de relatar um pouco do que foi feito com as pessoas com hanseníase, especialmente durante a vigência da Lei Federal de Isolamento Compulsório[2] (1949 a 1968) e também com os filhos que foram separados dos pais. Além disso, pretendemos divulgar a luta dessas pessoas e de movimentos sociais que lutam por essa causa, como o MORHAN (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase).

    Inicialmente, cabe ressaltar que a hanseníase foi marcada, desde o início, por um estigma fomentado por um conceito médico-social, no qual a pessoa portadora da doença era considerada indigna. Devido à tradição judaico-cristã, a doença passou a ser vista como uma punição aos pecados. Acreditava-se que a hanseníase comprometia a alma daqueles que eram pecadores e sua manifestação cutânea confirmava essa condição. Há passagens bíblicas, chamadas de “Leis acerca da Lepra” em Levíticos, capítulos 13 e 14, em que são feitas menções à doença, tratando-a como uma praga e aquele que a possui, declarado como imundo.[3] “E o sacerdote examinará a praga na pele da carne; se o pêlo na praga se tornou branco, e a praga parecer mais profunda do que a pele da sua carne, é praga de lepra; o sacerdote o examinará, e o declarará por imundo.” Levítico, 13:3.

    Esse preconceito cultural somado à legitimidade e aos discursos de autoridade da “ciência” ética reservaram às pessoas com hanseníase e aos seus filhos um lugar bastante sombrio, um campo de concentração onde seres humanos eram separados de suas famílias e tratados como um caso perdido.

    Com as deformidades decorrentes da doença e o preconceito enraizado na sociedade, os hansenianos eram expulsos dos centros das cidades, passando a viver em condições sub-humanas nas redondezas.

    Já exclusos do convívio social, caminhavam com sinos para que as pessoas não acometidas pela hanseníase identificassem de longe sua situação, estando cada vez mais presente o estigma da “lepra”, tendo em vista o medo do contágio e a repugnância às lesões tão hostilizadas.

    Em 1873, na Alemanha, a Mycobacterium leprae, responsável pela hanseníase, foi identificada por Hansen (nome do cientista que deu origem à palavra hanseníase). Já em 1879 deu-se a confirmação de que a doença tinha origem bacteriana, caindo por terra a crença ilusória de castigo aos pecados.

    Em 1941, foi descoberta a eficácia da sulfona, que é a medicação utilizada até hoje no tratamento. No fim do século XIX e começo do século XX, a hanseníase passou a ser pesquisada com mais atenção, principalmente na cidade do Rio de Janeiro e em São Paulo. Foram, então, efetuadas várias tentativas de tratamentos, utilizando os pacientes como cobaias, causando-lhes mais danos do que benefícios, nos moldes do que Hitler fazia com judeus em campos de concentração.

    Em 1949, no Brasil, a lei do Isolamento Compulsório dos acometidos pela “lepra” elevou, significativamente, o número de internados nos Hospitais Colônias. Os hansenianos eram compulsoriamente isolados, tendo seus direitos fundamentais brutalmente violados. Perderam sua liberdade de locomoção. Perderam sua liberdade de escolha. Perderam sua identidade. Perderam sua dignidade. Havia censura de correspondências, restrições e proibições de visitas, transferências, prisões, fugas, bem como uso imoderado de tratamento com choques elétricos (vejam, choques elétricos!), levando, inclusive, a casos extremos de suicídios.

    E isso tudo em razão de um equívoco no nosso processo civilizatório, pois é exatamente disso que se trata uma política pública de saúde que, pautada em preconceitos, consolida premissas que justificam medidas violentas e desumanas. Ninguém está sustentando que o Estado deve se omitir em relação a doenças ou epidemias cujas razões são desconhecidas. O que estamos sustentando é que o Estado tem responsabilidade objetiva e seus agentes têm responsabilidade direta pelos abusos e pelos tratamentos cruéis impostos a pessoas que, em razão da doença, já se encontram debilitadas.

    Façamos uma pequena análise sobre a Constituição de 1946 e a atual.

    A Constituição de 1946, vigente durante a Lei do Isolamento Compulsório, apesar de elencar em seu artigo 141 a inviolabilidade do direito à liberdade, não assegurava direito à saúde, nem mencionava o Princípio à Dignidade da Pessoa Humana, ficando evidente que a saúde pública na época não era orientada pelos princípios adotados hoje.

    Em 1953, deu-se ênfase à preocupação com a saúde pública, criando o Ministério da Saúde. Contudo, somente após à Constituição de 1988, deu-se efetiva atenção ao dever do Estado à prestação da saúde à população.

    A Constituição de 1988 traz, em seu artigo , como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana. Quanto aos direitos sociais, há um capítulo próprio, prevendo, inclusive, o direito à saúde, que é mencionada 64 vezes na extensão do texto constitucional. Tal menção é importante para que a diferenciemos da Constituição de 1946, que somente menciona a saúde 2 vezes, não colocando-a como um direito.

    No entanto, apesar da recente conquista de direitos, através da Constituição Cidadã, o narrado em leis ainda é muito distante da realidade. Há notícias recentes narrando, além do isolamento dos usuários de drogas, a separação também dos filhos das mulheres usuárias de entorpecentes, sendo estes encaminhados à acolhimento institucional. As mães, mesmo depois de completarem o tratamento de reabilitação, ainda não tinham direito a estar com seus filhos. Tal medida foi determinada, tão somente, por uma portaria da Vara Cível da Infância e da Juventude de Belo Horizonte/MG e por duas recomendações do Ministério Público.

    Não se pode deixar de notar a semelhança entre a separação dos filhos das usuárias de droga com a separação dos filhos dos isolados em virtude da hanseníase. Ambos foram, e no primeiro caso provavelmente ainda estão sendo, retirados compulsoriamente de seus pais, sendo entregues a outras famílias ou a uma instituição e, por consequência, privados do convívio com sua família consanguínea. Importante uma discussão mais aprofundada, em momento posterior, sobre tal tema, tendo em vista que, novamente, os direitos dos pais e dos filhos estão sendo violados, por imposição estatal.

    As colônias, além de ficarem em locais de difícil acesso para evitar fugas, eram cercadas por muros altos, arames, além de guardas que tinham a captura de fugitivos como uma de suas funções. A “polícia” do Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL) era temível pelas pessoas internadas e, entre aqueles que sobreviveram, chega a causar arrepios a simples lembrança daqueles momentos. As vozes que se opunham às atitudes do DPL eram punidas, muitas vezes com prisão em solitárias, dentro de prisões construídas dentro das próprias instituições de internação.

    Tal política sanitária e, principalmente, eugenista tinha como objetivo limpar as cidades, expulsando os “indignos” do convívio social. Nessa toada, não só os hansenianos foram excluídos, mas também as mulheres traidoras, as solteiras desvirginadas, meninas violentadas pelos seus patrões, homossexuais, militantes políticos, mendigos, bem como os acometidos pela timidez, foram protagonistas da barbárie ocorrida neste período. [4]

    Como se não bastasse toda a degradação sofrida por aqueles adoentados que eram isolados compulsoriamente, seus filhos também foram atingidos por esse estigma. Apesar de nascerem perfeitamente saudáveis e sem nenhum indício da doença, estes foram, imediatamente, afastados de seus pais e levados aos preventórios, onde cresciam cercados pela mácula da hanseníase. Ademais, durante tal período, eram levadas a “estadias” em casas de famílias, onde eram submetidos, desde a tenra idade, a trabalhos análogos à escravidão, quando não explorados e abusados sexualmente. Isso tudo sob os “cuidados” dos respectivos tutores.

    Não se pode negar a condição psíquica atual dos que sobreviveram às instituições e aos preventórios, vivendo com as sequelas das desumanidades advindas da negligência estatal. Desde 1981, o MORHAN luta pela garantia e respeito aos Direitos Humanos das pessoas atingidas pela hanseníase e seus familiares, tendo como missão eliminar o preconceito e estigma em torno da doença, conscientizando a sociedade de seu tratamento e cura. O movimento já alcançou diversos de seus objetivos, como a Lei nº 11.520/2007, que prevê pensão especial aos submetidos ao isolamento compulsório, em razão da hanseníase.

    No entanto, ainda há muitas lutas importantes a serem alcançadas e discutidas política e judicialmente. Como se sabe, a Organização Mundial da Saúde considera que saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na ausência de doença. Essa concepção é consagrada na Lei 8.080/90, que no seu artigo , parágrafo único, dispõe: Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.

    O que não se sabe, pois não se fala sobre tratamento psiquiátrico e luta antimanicomial todos os dias nos meios de comunicação, é que os tratamentos psiquiátricos tradicionais aniquilam, destroem, desumanizam os seres humanos que deveriam estar sendo humanizados e reinseridos no convívio social pacífico.

    Ressentimentos e ódios sociais à parte, a Constituição Federal e as leis que regulamentam o tratamento com presos e pacientes de hospitais psiquiátricos, optaram pela recuperação, e não pela degradação completa daqueles que, normalmente, já chegam aos estabelecimentos penitenciários muito degradados, em razão da própria condição social em que vivem.

    Virgílio Afonso da Silva[5] explica que a proporcionalidade deve observar critérios fundamentais, quais sejam: 1- verificar se existe adequação, ou seja, se o meio é apto para alcançar o resultado pretendido; 2- se há necessidade, ou seja, se a realização do objetivo perseguido não puder ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido; 3) se existe a proporcionalidade em sentido estrito, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva.

    Dessa forma, cabe analisarmos sobre a proporcionalidade, precipuamente, da separação ocorrida entre os pais isolados e os filhos saudáveis. A apartação sofrida não era imprescindível para que não houvesse a contaminação dos filhos, havendo outros meios, menos radicais, para garantir a existência salubre dos mesmos, mostrando a inexistência da necessidade de tal medida. A adoção pela separação dos pais e filhos desestruturou toda a base familiar dessas pessoas, comprometendo suas vidas e seu psicológico. Destarte, não há equilíbrio entre a medida restritiva adotada, o que visavam alcançar e a violência a vários direitos fundamentais.

    A confiança no paciente e o desenvolvimento de ações voltadas aos familiares e responsáveis é essencial à constituição de vínculos afetivos imprescindíveis para a compreensão e aceitação do transtorno mental, garantindo a continuidade do tratamento após a desinternação.

    Atualmente, os portadores da hanseníase recebem remédios gratuitos e se tratam em casa, com acompanhamento médico nas unidades básicas de saúde, logicamente dentro dos limites, bastante conhecidos por todos os brasileiros, do Sistema Único de Saúde. Não se pode deixar de mencionar que, apesar dos avanços, a cada ano, o Brasil registra 30 mil casos novos de hanseníase, sendo considerado o segundo país em quantidade de hansenianos. O MORHAN, com o apoio de todos os seus voluntários, luta pelo fim da hanseníase.

    Buscamos, juntamente com o MORHAN, amenizar a bagunça e sujeira feita pelo Estado, não só por meio de sua negligência, mas também pelas suas ações em concordância ao isolamento e por tudo que foi imposto aos hansenianos e demais envolvidos.

    Thiago Flores é Advogado, militante do Morhan e mestrando em Ciências Sociais pela Puc Minas.

    Pedro Pulzatto Peruzzo é Doutor em Filosofia do Direito pela USP e Professor na PUC/Campinas.

    Bruna de Oliveira Zaparoli é acadêmica no curso de Direito da PUC/Campinas.

    Juliana Simonassi Garcia Duarte é acadêmica no curso de Direito da PUC/Campinas.

    Brenno Tardelli é diretor de redação do Justificando e advogado.

    [1] Sobre isso. Ler o livro Holocausto Brasileiro.

    ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

    [2] BRASIL. Lei 610/1949. Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1949.

    [3] “E o sacerdote examinará a praga na pele da carne; se o pêlo na praga se tornou branco, e a praga parecer mais profunda do que a pele da sua carne, é praga de lepra; o sacerdote o examinará, e o declarará por imundo.” Levítico, 13:3 – BÍBLIA. A. T. Levíticos. In: BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. p.678-686.

    [4] ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. In: Os loucos somos nós.São Paulo: Geração Editorial, 2013. p. 13-17.

    [5] SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. In: Revista latino-americana de estudos constitucionais. Coord.: Paulo Bonavides, n. 1, Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

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