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17 de Junho de 2024
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    Precisamos falar sobre a Hanseníase e as vítimas abandonadas pelo Estado

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Paciente de hanseníase em antigo hospital-colônia em Itaboraí/RJ (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

    Dentre tantos holocaustos que ocorrem no Brasil contra minorias e populações minorizadas, como indígenas, negros e negras, mulheres, este texto abordará um aspecto da luta contra o isolamento compulsório para hanseníase na época da então chamada política de profilaxia da “lepra”. Faltam-nos palavras para descrever os horrores vividos por pessoas que estiveram em instituições Colônias e também dos filhos separados dos seus pais em razão da política higienista do Estado brasileiro e dos agentes de saúde que estiveram diretamente implicados nesse verdadeiro holocausto que ocorreu no Brasil.[1]

    A política de isolamento compulsório para hanseníase no Brasil aconteceu paralelamente a outras três políticas desumanas que aniquilam, destroem, desumanizam os seres humanos, ou seja, a política de isolamento manicomial e a política de isolamento de pessoas com tuberculose. Sobre esses tratamentos, não faltam “especialistas” para citar exceções das exceções para justificar a regra do choque, da medicalização abusiva e do isolamento social e familiar.

    Este texto tem o propósito de relatar um pouco do que foi feito com as pessoas com hanseníase e seus descendentes, especialmente durante a vigência da Lei Federal de Isolamento Compulsório[2] (1949 a 1968) que abrangia os filhos que foram separados dos pais, lei essa que na prática foi executada até 1986. Além disso, pretendemos divulgar a luta dessas pessoas e do movimento social que luta por essa causa, conhecido como Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase – MORHAN.

    Inicialmente, cabe ressaltar que a hanseníase foi marcada, desde o início,por um estigma fomentado por um conceito médico-social, no qual a pessoa acometida pela doença era considerada indigna. Em razão de uma tradição judaico-cristã, a doença passou a ser vista como uma punição aos pecados. Acreditava-se que a hanseníase comprometia a alma daqueles que eram pecadores e sua manifestação cutânea confirmava essa condição. Há passagens bíblicas, chamadas de “Leis acerca da Lepra” em Levíticos, capítulos 13 e 14, em que são feitas menções à doença, tratando-a como uma praga, declarando aquele que a possui como imundo.[3] “E o sacerdote examinará a praga na pele da carne; se o pêlo na praga se tornou branco, e a praga parecer mais profunda do que a pele da sua carne, é praga de lepra; o sacerdote o examinará, e o declarará por imundo.” Levítico, 13:3.

    Esse preconceito cultural somado à legitimidade e aos discursos de autoridade da “ciência” ética reservaram às pessoas com hanseníase e aos seus filhos um lugar bastante sombrio, um verdadeiro campo de concentração onde seres humanos eram separados de suas famílias e tratados como um caso perdido. Importante ressaltar que os campos de concentrações do regime nazista seguiram as plantas de antigas Colônias da Europa para tratamento da doença.

    Com as deformidades decorrentes da doença e o preconceito enraizado na sociedade, os diagnosticados com a doença eram expulsos dos centros das cidades, passando a viver em condições sub-humanas nas redondezas.

    Já excluídos do convívio social, caminhavam com sinos para que as pessoas identificassem de longe sua situação, estando cada vez mais presente o estigma da “lepra”, tendo em vista o medo do contágio e a repugnância às lesões tão hostilizadas.

    Em 1873, na Alemanha, a Mycobacterium leprae, causadora da doença, foi descoberta pelo médico norueguês Gerhard Henrick Armauer Hansen (nome do cientista que deu origem à palavra hanseníase). Já em 1879, deu-se a confirmação de que a doença tinha origem bacteriana, caindo por terra a crença ilusória de castigo aos pecados ou maldição.

    Em 1941, foi descoberta a eficácia da sulfona, droga parcialmente utilizada até hoje no tratamento. No fim do século XIX e começo do século XX, a hanseníase passou a ser pesquisada com mais atenção, principalmente na cidade do Rio de Janeiro e em São Paulo. Foram, então, efetuadas várias tentativas de tratamentos, utilizando os pacientes como cobaias, causando-lhes mais danos do que benefícios, nos moldes do que Hitler fazia com judeus em campos de concentração.

    Em 1949, no Brasil, a lei do Isolamento Compulsório dos acometidos pela “lepra” elevou, significativamente, o número de internados nos Hospitais Colônias. Os doentes eram compulsoriamente isolados, tendo seus direitos fundamentais brutalmente violados. Perderam sua liberdade de locomoção. Perderam sua liberdade de escolha. Perderam sua identidade. Perderam sua dignidade. Havia censura de correspondências, restrições e proibições de visitas, transferências, prisões, fugas, bem como uso irrestrito de novas drogas para tratamento, ocasionando inclusive, a casos extremos de suicídios nas antigas colônias.

    E isso tudo em razão de um equívoco no nosso processo civilizatório, pois é exatamente disso que se trata uma política pública de saúde que, pautada em preconceitos, consolida premissas que justificam medidas violentas e desumanas. Ninguém está sustentando que o Estado deve se omitir em relação a doenças ou epidemias cujas razões são desconhecidas. O que estamos sustentando é que o Estado tem responsabilidade objetiva e seus agentes têm responsabilidade direta e objetiva pelos abusos e pelos tratamentos cruéis impostos a pessoas que, em razão da doença, já se encontram debilitadas.

    Façamos uma pequena análise sobre a Constituição de 1946 e a atual.

    A Constituição de 1946, vigente durante a Lei do Isolamento Compulsório (1949 a 1968), apesar de elencar em seu artigo 141 a inviolabilidade do direito à liberdade, não assegurava nesse dispositivo, como direito fundamental, o direito à saúde, nem mencionava o princípio à dignidade da pessoa humana, ficando evidente que a saúde pública na época não era orientada pelos princípios adotados hoje.

    Em 1953, deu-se ênfase à preocupação com a saúde pública, criando o Ministério da Saúde. Contudo, somente após a Constituição de 1988, deu-se efetiva atenção ao dever do Estado à prestação da saúde à população de forma integral.

    A Constituição de 1988 traz, em seu artigo , como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana. Quanto aos direitos sociais, há um capítulo próprio, prevendo, inclusive, o direito à saúde, que é mencionada 64 vezes na extensão do texto constitucional. Tal menção é importante para que a diferenciemos da Constituição de 1946, que somente menciona a saúde 2 vezes, não colocando-a como um direito expressamente.

    No entanto, apesar da recente conquista de direitos, através da Constituição Cidadã, o narrado em leis ainda é muito distante da realidade. Há notícias recentes narrando, além do isolamento dos usuários de drogas, a separação também dos filhos das mulheres usuárias de entorpecentes, sendo estes encaminhados à acolhimento institucional. As mães, mesmo depois de completarem o tratamento de reabilitação, ainda não tinham direito a estar com seus filhos.

    Não se pode deixar de notar a semelhança entre a separação dos filhos das usuárias de droga com a separação dos filhos dos isolados em virtude da hanseníase. Ambos foram, e no primeiro caso provavelmente ainda estão sendo, retirados compulsoriamente de seus pais, sendo entregues a outras famílias ou a uma instituição e, por consequência, privados do convívio com sua família consanguínea. Importante uma discussão mais aprofundada, em momento posterior, sobre tal tema, tendo em vista que, novamente, os direitos dos pais e dos filhos estão sendo violados, por imposição estatal, mais uma vez se repete na história do Brasil um grupo de órfãos por imposição do Estado.

    As colônias, além de ficarem em locais de difícil acesso para evitar fugas, eram cercadas por muros altos, arames, além de guardas que tinham a captura de fugitivos como uma de suas funções. A “polícia” do Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL) era temível pelas pessoas internadas e, entre aqueles que sobreviveram, chega a causar arrepios a simples lembrança daqueles momentos. As pessoas que se opunham às atitudes do DPLeram punidas, muitas vezes com prisão em solitárias, dentro de prisões construídas dentro das próprias instituições de internação.

    Tal política sanitária e, principalmente, eugenista tinha como objetivo limpar as cidades, expulsando os “indignos” do convívio social. Nessa toada, não só os doentes de hanseníase foram excluídos, mas também as mulheres traidoras, as solteiras desvirginadas, meninas violentadas pelos seus patrões, homossexuais, militantes políticos, mendigos, bem como os acometidos pela timidez, foram protagonistas da barbárie ocorrida neste período.[4]

    Como se não bastasse toda a degradação sofrida por aqueles adoentados que eram isolados compulsoriamente, seus filhos também foram atingidos por esse estigma. Apesar de nascerem perfeitamente saudáveis e sem nenhum indício da doença, estes foram, imediatamente, afastados de seus pais e levados aos preventórios, onde cresciam cercados pelamácula da hanseníase. Ademais, durante tal período, eram levadas a “estadias” em casas de famílias, onde eram submetidos, desde a tenra idade, a trabalhos análogos à escravidão, quando não explorados e abusados sexualmente. Isso tudo sob os “cuidados” dos respectivos tutores.

    Não se pode negar a condição psíquica atual dos que sobreviveram às instituições e aos preventórios, vivendo com as sequelas das desumanidades advindas da negligência estatal. Desde 1981, o MORHAN luta pela garantia e respeito aos Direitos Humanos das pessoas atingidas pela hanseníase e seus familiares, tendo como missão eliminar o preconceito e estigma em torno da doença, conscientizando a sociedade de seu tratamento e cura. O movimento já alcançou diversos de seus objetivos, bom exemplo é a Lei nº 11.520/2007, que prevê pensão especial aos submetidos ao isolamento compulsório, em razão da hanseníase que foram internos em alguma colônia no Brasil até o ano de 1986.

    No entanto, ainda há muitas lutas importantes a serem alcançadas e discutidas política e juridicamente. Como se sabe, a Organização Mundial da Saúde considera que saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste apenas na ausência de doença. Essa concepção é consagrada na Lei 8.080/90, que no seu artigo , parágrafo único, dispõe: Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.

    Ressentimentos e ódios sociais à parte, a Constituição Federal e as leis que regulamentam o tratamento de pacientes de hospitais psiquiátricos, optaram pela recuperação, e não pela degradação completa daqueles que, normalmente, já chegam aos estabelecimentos de tratamento muito degradados, em razão da própria condição social em que vivem.

    Virgílio Afonso da Silva[5] explica que a proporcionalidade deve observar critérios fundamentais, quais sejam: 1- verificar se existe adequação, ou seja, se o meio é apto para alcançar o resultado pretendido; 2- se há necessidade, ou seja, se a realização do objetivo perseguido não puder ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido; 3) se existe a proporcionalidade em sentido estrito, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva.

    Dessa forma, cabe analisarmos sobre a proporcionalidade, precipuamente, da separação ocorrida entre os pais isolados e os filhos saudáveis. A apartação sofrida não era imprescindível para que não houvesse a contaminação dos filhos, havendo outros meios, menos radicais, para garantir a existência salubre dos mesmos, mostrando a desnecessidade de tal medida desde a década de 1940 com a descoberta da sulfona para o tratamento da doença. A adoção pela separação dos pais e filhos desestruturou toda a base familiar dessas pessoas, comprometendo suas vidas e sua integridade psíquica. Destarte, não há equilíbrio entre a medida restritiva adotada, o que visavam alcançar e a violência a vários direitos fundamentais.

    A confiança no paciente e o desenvolvimento de ações voltadas aos familiares e responsáveis é essencial à constituição de vínculos afetivos imprescindíveis para a compreensão e aceitação de qualquer tratamento, garantindo a continuidade do tratamento após a fase de internação.

    Atualmente, as pessoas com hanseníase recebem remédios gratuitos e se tratam em casa, com acompanhamento médico nas unidades básicas de saúde pertencentes ao Sistema Único de Saúde – SUS. Não se pode deixar de mencionar que, apesar dos avanços, a cada ano, o Brasil registra 30 mil casos novos de hanseníase, sendo considerado o segundo país do mundo em novos casos da doença e o número um, em prevalência de casos e diagnósticos em crianças. O MORHAN, com o apoio de todos os seus voluntários, luta pelo fim da hanseníase no Brasil. Luta por uma política pública de reabilitação para aquelas pessoas que possuem sequelas deixadas pela doença. Luta pela preservação do patrimônio material e imaterial da história da hanseníase. Luta pela reparação dos danos sofridos pelos filhos que foram separados dos seus pais, vítimas dessa política pública devastadora. Em resumo, luta por dignidade e visibilidade, para que erros do passado não sejam repetidos em nome de uma política de saúde.

    Juntamente com o MORHAN, é importantíssimo divulgar e conscientizar a sociedade no que tange as violações de direitos feitas pelo Estado brasileiro, não só por meio de sua negligência, mas também pelas suas ações em concordância ao isolamento compulsório e por tudo que foi imposto às pessoas atingidas pela hanseníase e seus familiares.

    Thiago Flores é Advogado, militante do Morhan e mestrando em Ciências Sociais pela Puc Minas.

    Pedro Pulzatto Peruzzo é Doutor em Filosofia do Direito pela USP e Professor na PUC/Campinas.

    Bruna de Oliveira Zaparoli é acadêmica no curso de Direito da PUC/Campinas.

    Juliana Simonassi Garcia Duarte é acadêmica no curso de Direito da PUC/Campinas.

    Brenno Tardelli é diretor de redação do Justificando e advogado.

    [1] Sobre isso. Ler o livro Holocausto Brasileiro.

    ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

    [2] BRASIL. Lei 610/1949. Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1949.

    [3] “E o sacerdote examinará a praga na pele da carne; se o pêlo na praga se tornou branco, e a praga parecer mais profunda do que a pele da sua carne, é praga de lepra; o sacerdote o examinará, e o declarará por imundo.” Levítico, 13:3 – BÍBLIA. A. T. Levíticos. In: BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. p.678-686.

    [4] ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. In: Os loucos somos nós.São Paulo: Geração Editorial, 2013. p. 13-17.

    [5] SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. In: Revista latino-americana de estudos constitucionais. Coord.: Paulo Bonavides, n. 1, Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

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