Subtração de uma bicicleta: é fato insignificante?
LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )
Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Pesquisadora: Patricia Donati.
Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. DONATI, Patricia. Subtração de uma bicicleta: é fato insignificante?. Disponível em http://www.lfg.com.br 06 julho. 2009.
O sujeito subtrai uma bicicleta, de R$ 70,00, de um trabalhador pobre, e, em seguida, uma garrafa de uísque (de um estabelecimento comercial). É possível aplicar o princípio a insignificância nesse caso?
Proposições possíveis, dentre outras: | Consoante a decisão do STF, (Primeira Turma), no HC 96003/MS , as respostas seriam as seguintes: |
a) sim, porque deve ser levado em conta exclusivamente o valor do objeto. | Assertiva falsa |
b) não, porque deve ser levado em conta também as posses da vítima. | Assertiva verdadeira |
c) sim, porque não importa se foram dois fatos. | Assertiva falsa |
d) não, porque importa sim serem dois fatos. | Assertiva verdadeira |
Decisão da Primeira Turma do STF: "A Turma indeferiu habeas corpus em que se pleiteava a aplicação do princípio da insignificância a condenado por 2 furtos praticados contra vítimas distintas. No caso, o paciente subtraíra para si uma bicicleta - avaliada em R$ 70,00 - e, em ato contínuo, dirigira-se a estabelecimento comercial, onde furtara uma garrafa de uísque - avaliada em R$ 21,80 -, sendo preso em flagrante. Entendeu-se que não estariam presentes os requisitos autorizadores para o reconhecimento desse princípio. Aduziu-se que o paciente, ao cometer 2 crimes de furto em concurso material, com vítimas distintas, demonstrara possuir propensão à prática de pequenos delitos, os quais não poderiam passar despercebidos pelo Estado. Asseverou-se que, embora o reconhecimento da atipicidade penal pela insignificância dependa da constatação de que a conduta seja a tal ponto irrelevante - desvalor da ação e do resultado - que não seja razoável impor-se a sanção penal descrita na lei, isso não ocorreria na espécie. Enfatizou-se que a bicicleta fora furtada de pessoa humilde e de poucas posses, que a utilizava para se deslocar ao seu local de trabalho, de modo a revelar que esse bem era relevante para a vítima, e cuja subtração repercutira expressivamente em seu patrimônio. Por fim, considerou-se que a situação dos autos fora devidamente enquadrada como infração de pequeno valor, na qual incidente causa de diminuição de pena referente ao furto privilegiado (CP , art. 155 , § 2º), distinguindo-a, no ponto, da figura da infração insignificante, que permite o reconhecimento da atipicidade da conduta. HC 96003/MS , rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2.6.2009 ". (Informativo 549 do STF).
Fundamentos da rejeição: no HC 96.003-MS , a Primeira Turma do STF não aplicou o princípio da insignificância no caso concreto descrito por duas razões: (a) porque o agente praticou dois fatos seguidos (o que revela propensão à prática de pequenos furtos); (b) a vítima era pobre (para ela a bicicleta era de grande significância).
Vetores orientativos: não temos nas leis brasileiras os critérios de aplicação do princípio da insignificância. São os juízes que estão construindo esses critérios. No HC 84.412-SP , o Min. Celso de Mello fixou os seguintes vetores: a) a mínima ofensividade da conduta, (b) a ausência de periculosidade social da ação, (c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica. Esses vetores vêm sendo observados, de um modo geral, pelos juízes e tribunais.
Caso concreto: o voto proferido pelo Min. Ricardo Lewandowski deixou claro a indispensabilidade da análise do caso concreto para a aplicação do princípio da insignificância. Todos os vetores orientadores da aplicação do referido princípio devem ser analisados concretamente.
Pontos decisivos: dois pontos foram decisivos: (a) o fato de o autor ter praticado duas subtrações seguidas; (b) o fato de a vítima ser pobre (ou seja: na aplicação do princípio da insignificância também entra em consideração o patrimônio da vítima ou a relevância do objeto para a vítima, nas circunstâncias em que ela se encontra). Por exemplo: a subtração de uma garrafa d´água, normalmente, é insignificante. Mas se o agente faz isso quando a vítima está atravessando o deserto do Saara, o fato deve ser valorado de forma totalmente distinta.
Patrimônio ou circunstâncias da vítima: a subtração de uma bicicleta pode ser ou não ser insignificante. Normalmente é. Mas no caso em comento, a mesma fora furtada de pessoa humilde que a utilizava como meio de transporte para o trabalho. Essa circunstância torna impossível a aplicação da insignificância. Foi esse o entendimento firmado pelo Ministro Lewandowski: verificou-se (acertadamente) a ausência do desvalor do resultado (consequência gerada à vítima - perda do seu meio de transporte para trabalhar, possivelmente único bem).
Para muitos, uma bicicleta pode, realmente, ser insignificante, para a vítima desse caso concreto, não. Uma coisa é furtar uma bicicleta, por exemplo, de um empresário rico e, outra, completamente distinta, é furtá-la uma pessoa nessas condições. Por isso, ressaltamos, mais uma vez, a importância da análise de cada caso concreto para a aplicação desse tão importante princípio.
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