Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
17 de Junho de 2024
    Adicione tópicos

    Teoria Constitucionalista do Delito

    há 15 anos

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Teoria Constitucionalista do Delito. Disponível em www.lfg.com.br. 25 de abril de 2009.

    1. Introdução

    O Estado civilizado, para exercer o controle das condutas desviadas, necessita do Direito penal (que é a forma de controle social mais formalizada que existe). Mas não pode nunca existir pena sem crime (esse é o primeiro axioma de Ferrajoli, desenvolvido no seu livro Direito e razão [ 1 ]). E o que se entende por crime? Já que é ele (o crime, que no Brasil é sinônimo de delito) que desencadeia a drástica intervenção sancionatória estatal, importa saber o seu (preciso) conceito.

    Duas concepções se destacam : o crime deve ser visto como mera desobediência da norma ou como ofensa concreta ao bem jurídico protegido pela norma penal? Basta realizar a tipicidade formal ou também se faz necessária a tipicidade material?

    Nossa posição : em um Estado constitucional que se define, com efeito, como democrático (no sentido de que o povo é quem ostenta a máxima soberania, e não o legislador, que deve partir do reconhecimento da autonomia do homem, que é livre para orientar seu próprio destino) e de direito (que significa que o Estado não pode fazer nada fora dos limites fixados por ele mesmo), [ 2 ] e que tem nos direitos fundamentais seu eixo principal, não resta dúvida que só resulta legitimada a tarefa de criminalização primária (criminalização legal feita pelo legislador) ou de criminalização secundária (feita pelo julgador) quando recai sobre condutas ou ataques concretamente ofensivos ao bem jurídico protegido pela norma penal e, mesmo assim, nem todos os ataques, senão unicamente os mais graves (fragmentariedade) é que podem ser incriminados ou punidos.

    Em síntese: somente os ataques mais intoleráveis e que podem causar repercussões visíveis (palpáveis) para a convivência social é que devem ser castigados penalmente.

    A incidência do Direito penal fundado na pena de prisão (esse é o atual modelo de Direito penal que adotamos), que retira do agente do fato (ou lhe restringe ou lhe ameaça) o direito fundamental da liberdade, não se justifica senão quando o fato desse agente afeta concreta e gravemente (lesão ou perigo concreto de lesão) um bem jurídico de elevada relevância (digno de proteção, merecedor de proteção).

    A premissa básica da teoria constitucionalista do delito é a seguinte: a afetação concreta (não presumida), transcendental (ofensa a terceiros), grave (ofensa com significado jurídico relevante) e intolerável (insuportável) de um bem jurídico relevante (digno de proteção) é, portanto, condição sine qua non do ius poenale do ius libertatis (do Direito penal centrado na sanção privativa da liberdade), ou seja, é sua ratio essendi .

    Respeito ao princípio da proporcionalidade: se a liberdade é um bem jurídico de extremada relevância, sua eliminação ou restrição ou ameaça só se justifica quando o agente do fato, com sua conduta, tenha ofendido concreta e gravemente (lesão ou perigo concreto) bem jurídico de igual ou similar importância. O princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade) não autoriza nenhuma afetação desponderada ou desarrazoada do direito fundamental da liberdade.

    O delito como ofensa ao bem jurídico: dentro do Direito penal fundado na pena de prisão a única concepção material de delito que encontra ressonância constitucional e perfeita afinidade com o tipo de Estado democraticamente consagrado que adotamos é, portanto, a que o considera como uma ofensa desvaliosa, ou seja, concreta, transcendental, grave e intolerável.[ 3 ] De todas, essa é a concepção de delito que reputamos mais adequada, mais garantista e mais equilibrada (a mais razoável, em suma).

    A norma existe para a tutela de um bem jurídico: aliás, como já afirmava em seu tempo ARTURO ROCCO, [ 4 ] "é impossível conceber uma norma jurídica e uma obrigação jurídica que não servem à tutela de um interesse ou de um bem da vida, individual ou supraindividual, e, em conseqüência, uma violação de uma norma jurídica e de uma obrigação jurídica que não se reconduz a uma lesão ou ao menos a uma ameaça a um interesse ou a um bem jurídico, é dizer, a um dano ou a um perigo de dano em sentido jurídico [...];[recorde-se] que o dever jurídico é o meio que utiliza o Estado para tutelar de maneira preventiva um bem ou interesse humano, individual ou social, contra as manifestações de vontades, é dizer, ações ou omissões humanas, danosas ou perigosas ao bem ou interesse protegido".

    2. Concepção realista do delito

    Uma das mais importantes contribuições para a formulação do delito como ofensa a um bem jurídico, nas últimas décadas, provém da doutrina italiana chamada concepção realista do delito , que afirma ser a idoneidade da conduta um requisito geral do fato punível, que opera sobre o plano do conteúdo ofensivo ou antijurídico do fato. A idoneidade, conforme NEPPI MADONA, [ 5 ] "não é um requisito mais da ação penalmente relevante, senão um juízo global formulado em relação à ofensividade do fato, do mesmo conteúdo antijurídico da figura delitiva".

    Com base, assim, no art. 49.2 do CP italiano, postula-se que a mera subsunção do fato na descrição típica não é suficiente para fundamentar a incriminação. Para a existência de um delito não basta a mera desobediência dos "enunciados verbais", senão uma violação efetiva do bem protegido. Não basta o desvalor da ação, sendo também indispensável o desvalor do resultado". [ 6 ]

    Tipicidade formal + tipicidade material: não basta, como veremos logo mais detalhadamente, a mera adequação típica formal (ou a tipicidade formal). No Estado constitucional e democrático de Direito, de onde emana a teoria constitucionalista do delito, este pressupõe também a tipicidade material, que é composta de duas exigências valorativas sumamente relevantes: (a) valoração da conduta, consoante o critério do risco proibido relevante de Roxin e (b) valoração do resultado jurídico (que deve ser concreto, transcendental, grave, intolerável, objetivamente imputável ao risco criado e que esteja no âmbito de proteção da norma penal).

    Desvalor da ação + desvalor do resultado jurídico: o delito, portanto, não pode ser uma mera desobediência à norma nem tampouco só desvalor da ação, ou seja, unicamente uma ação ou omissão dolosa ou imprudente e ilícita. Segundo a perspectiva do Direito penal da ofensividade, a ação ou omissão penalmente relevante é tão-só a que causa uma ofensa (lesão ou perigo) ao bem jurídico. O delito não se fundamenta, por conseguinte, exclusivamente na ação, senão, sobretudo, no resultado (em sentido jurídico, não naturalístico).

    Crime não é só desobediência à norma: se a ação lesiva (concretamente ofensiva) é a base do delito, não há dúvida que não pode constituí-lo jamais a simples manifestação de uma vontade contrária a uma obrigação jurídica, que se esgota na ação. [ 7 ] Para a existência do delito, para além da presença de uma ação ou omissão (uma conduta humana voluntária), também se faz necessário um resultado jurídico, que consiste numa perturbação (intolerável) do bem tutelado, isto é, de uma liberdade alheia. [ 8 ]

    Estaria este conceito material de delito em condições de cumprir a tarefa de limitar o legislador, o intérprete e o aplicador da lei? Seria um conceito garantista?

    No plano formal, desde logo, a resposta é positiva. [ 9 ] Mas também do ponto de vista político-criminal e dogmático [ 10 ] é o conceito que melhores condições reúne em termos de operatividade, efetividade e garantias.

    Mas para alcançar esse desideratum não há dúvida que é preciso fundamentar e materializar jurídico-constitucionalmente a exigência da ofensividade, que está destinada a cumprir importantes papéis no sistema jurídico-penal, por representar mais um limite tanto ao ius puniendi como ao ius poenale , ao qual estariam vinculados ao mesmo tempo o legislador, o intérprete e o aplicador da lei.

    3. Legalidade e modelo de delito como ofensa ao bem jurídico

    Não basta a mera legalidade formal: de qualquer forma, afirmar que o delito é uma ofensa a um bem jurídico e que o princípio da ofensividade conta com assento inclusive constitucional (implícito) significa revelar algo já indiscutivelmente relevante, porém, pode ainda ser muito pouco. Até porque, poderia o legislador do ponto de vista formal atender à liberal concepção do delito (estruturá-lo gramaticalmente em termos ofensivos), porém, substancialmente, não se sujeitar a nenhuma limitação em relação ao bem jurídico que deve ser selecionado para receber a proteção penal.

    O delito (ou seja: o tipo legal de delito) que descrevesse, por exemplo, o seguinte: causar danos socialmente relevantes à ordem pública, no plano formal (seja no que se relaciona com o princípio da legalidade, seja no que concerne ao princípio da ofensividade), poderia não receber nenhuma censura. Mas seria, evidentemente, um absurdo, porque lhe falta taxatividade, materialização do bem jurídico, especificação da ofensa etc.

    Conseqüentemente, trabalhar no sentido de materializar o conceito de bem jurídico, de revelar o verdadeiro conteúdo dos princípios limitadores do direito de punir (legalidade, ofensividade etc.) é uma obrigação impostergável da doutrina que se preocupa com o ius libertatis (isso foi o que fizemos no nosso livro Direito penal , v.1, 2. ed., São Paulo: RT, 2009).

    Toda investigação orientada a consagrar novos ou ampliar os já existentes limites materiais da mais importante atividade estatal no campo sancionador deve ser bem vinda, precisamente porque nele está inserido o clássico e polarizado conflito entre o ius libertatis e o ius puniendi , isto é, as relações entre o indivíduo e o Estado.

    A exigência de concreção da ofensividade começa, então, pela necessidade impreterível de materializar o conceito de bem jurídico (veja o livro acima citado, p. 227 e ss.).

    Se a infecundidade político-criminal dos conceitos materiais de delito até aqui desenvolvidos é patente e indiscutível, isso se deve em grande medida a que são conceitos que correspondem às diversas fases formalistas (não garantistas) da evolução do conceito de bem jurídico. Enquanto não se revelar o conteúdo material vinculante da categoria do bem jurídico, os conceitos de delito correspondentes certamente não poderão cumprir plenamente o papel de garantia que se lhe atribui.

    De qualquer modo, na medida em que o bem jurídico (já no atual estágio de sua evolução) é a expressão de uma liberdade (de uma relação social), já não se trata de um limite que seja fruto exclusivamente de exigências doutrinais, senão, sobretudo, uma emanação natural da própria Constituição e do seu eixo nuclear que é constituído pelos direitos fundamentais.

    4. Direito penal e Constituição Para mais além de recuperar as velhas e boas idéias e orientações iluministas, com todas as suas garantias, [ 11 ] o fundamental consiste em estabelecer uma estreita relação entre a função criminalizadora e o modelo de Estado adotado, isto é, entre o Direito penal e a Constituição . [ 12 ] Essa é justamente a linha que seguimos neste livro, inclusive no que concerne à questão do conceito de bem jurídico e de delito.

    O conceito de delito como ofensa a um bem jurídico, conseqüentemente, deve ser proclamado como um conceito com dimensão constitucional, apesar da inexistência de um texto normativo explícito ad hoc.

    As razões para isso são diversas. [ 13 ] Daí a defesa que se pode fazer da idéia de um conceito constitucional de delito ou de fato punível, que é sustentada na Espanha (por exemplo) por VIVES ANTÓN. [ 14 ]

    Não se discute que as disposições constitucionais quando asseguram ao legislador o direito de regular o ius puniendi [ 15 ] nada (ou pouco) indicam de modo expresso a respeito do conteúdo da conduta punível, que é o núcleo do conceito material de delito. Por conseguinte, o papel de limite material não pode ser cumprido só com o princípio da legalidade se se admite que o legislador ordinário conta com poucas restrições conceituais vinculantes no que se refere ao delito e à pena.

    A função garantista ou de segurança do princípio da legalidade se reduz a praticamente nada ou se aniquila quando se autoriza catalogar como delito qualquer tipo de conduta ou de pena ou"se se concedesse ao legislador ordinário, de modo absoluto, a possibilidade de determinar o que lhe aprouvesse; ele poderia dispor que é delito toda conduta antisocial ou que não é pena a privação da vida, desde que haja ordem governamental". [ 16 ]

    A fundamentação constitucional do conceito de delito entendido como ofensa a um bem jurídico, por conseguinte, para além da constatação de que a legalidade do delito não pode jamais significar uma atividade vazia ou arbitrária, conta com outras dimensões. Em outras palavras, o princípio da ofensividade obriga que a atividade de criminalização primária seja taxativa, clara e inequívoca e, de outro lado, determina uma das missões do Direito penal [ 17 ] ou da pena [ 18 ], que outra não é senão a de proteção de bens jurídicos.

    O ius puniendi é exercido para alcançar alguns objetivos (retribuição, prevenção, ressocialização etc., tudo dependendo de cada ordenamento jurídico), porém, tudo isso é feito de modo limitado, com travas formais e materiais. É demasiadamente conhecida e historicamente irrefutável a vocação autoritária do Estado (tal como esclareceu Hobbes no seu Leviatã ). [ 19 ]

    Especialmente por sua posição hierárquica elevada, é precisamente a Constituição a que orienta, de modo primordial, por meio dos seus princípios, regras e valores, direta ou indiretamente, tanto os objetivos do Direito penal como seus principais limites. [ 20 ] Um deles, dos mais relevantes, reside na proporcionalidade de toda sanção estatal. Daí se infere o seguinte: se o delito implica sempre a afetação de um bem jurídico fundamental (liberdade, patrimônio etc.), só é correto admitir sua incidência quando outro direito (de terceiras pessoas) de relevância essencial tenha sido turbado.

    Proporcionalidade (só se justifica a privação de um direito da pessoa quando ocorra afetação de outro direito de igual ou maior relevância) e transcendentalidade (que seja um direito ou um interesse de um terceiro), desse modo, emergem como dois limites irrefutáveis da intervenção penal, se é que queremos dar sentido à declaração constitucional de inviolabilidade dos direitos fundamentais. [ 21 ] Essa inviolabilidade, aliás, significa que o legislador ordinário não pode impor-lhes restrições, a não ser as que se reconduzem ao reconhecimento dos direitos de outras pessoas. [ 22 ]

    A declaração de inviolabilidade , portanto, não quer dizer que se assegura" materialmente "a intangibilidade dos direitos fundamentais ou que eles não sejam suscetíveis de ataques. Representa, tão-somente, um claro limite à atividade legislativa ordinária. O campo dos direitos fundamentais está amparado diretamente pela Constituição . Qualquer restrição deve basear-se não só em uma autorização para isso, senão especialmente em justificações razoáveis e proporcionais.

    De tudo quanto foi dito é fácil compreender quão estreita é a relação entre Constituição e Direito penal (fruto dessa estreita relação, por conseguinte, é a teoria constitucionalista do delito). O Direito penal, em outras palavras, nada mais é (ou ao menos deveria ser) que o natural campo normativo de configuração dos princípios, valores e normas constitucionais. [ 23 ]

    Tudo isso resulta ratificado particularmente pela origem comum de ambos os ordenamentos:"a ciência do Direito penal e o constitucionalismo moderno são praticamente contemporâneos: ambos nasceram ao abrigo das idéias políticas da Ilustração, no empenho de assinalar os limites do poder (inclusive e sobretudo o punitivo) do Estado. E isso não foi uma casualidade, pois ao Direito penal incumbe regular o instrumento mais temível desse poder, seu último recurso, que é a pena". [ 24 ]

    5. Consequencias dogmáticas e político-criminais decorrentes da teoria constitucionalista do delito

    Parece mais que natural que o conceito material e, porque não dizer, constitucionalista (ou teleológico-constitucional) de delito, como o que está sendo aqui proposto, precisamente porque pode (e deve) ocupar uma posição destacada no sistema jurídico-penal, tende a produzir uma série enorme de implicações:

    (a) no que se refere ao princípio da fragmentariedade : sabe-se que para a criminalização de um fato é fundamental tanto o grau de relevância do bem jurídico, em razão do seu valor para o desenvolvimento da personalidade da pessoa, como o grau de sua afetação. O nível da ofensa, portanto, joga um papel político-criminal sumamente relevante. Sublinhe-se que o merecimento da tutela penal depende fundamentalmente desses fatores. É justamente na relação que se estabelece entre a graduação da afetação do bem jurídico e o seu valor é que reside a essência do princípio da fragmentariedade, que vai indicar qual é o nível de tutela mais adequado: penal ou não penal, delito de lesão ou delito de perigo, punição da tentativa ou não, punição da modalidade culposa ou não etc. Se compararmos o bem jurídico vida e o bem jurídico patrimônio, facilmente constataremos que o nível de proteção penal é distinto: uma morte culposa é punível; um dano culposo não o é. Isso se deve ao princípio da fragmentariedade, que se destina então servir de base para a seleção do nível da tutela jurídica;

    (b) o conceito material de delito como o que está sendo desenhado neste livro não só reúne capacidade de compreender a ofensa (lesão ou perigo concreto) como pressuposto indispensável da punibilidade, senão também que obriga a excluir do Direito penal todas as incriminações de condutas meramente imorais (especialmente no âmbito dos delitos sexuais) ou puramente ideológicas , das cominações arbitrárias etc. [ 25 ];

    (c) todas as decisões político-criminais consistentes em ampliar ou restringir o âmbito do punível deve levar em conta o conceito material de delito sugerido, sem prejuízo, além disso, de que toda decisão sobre criminalizar ou descriminalizar determinada conduta deveria também ser precedida de investigações empíricas (criminológicas) sobre o impacto real da decisão na sociedade, o grau de danosidade social da conduta, o impacto no potencial infrator, em sua família, em seu grupo de trabalho etc. Toda decisão político-criminal que não conta com o respaldo dessas orientações criminológicas move-se num terreno movediço, oscilante e meramente intuitivo. [ 26 ]

    Com efeito, como pode o legislador cominar para a infração de uma norma penal uma sanção que tem a relevância de uma pena ou medida de segurança, que constituem as duas formas mais contundentes de reação estatal, se não conta anteriormente com suficientes dados e informações sobre a oportunidade, adequabilidade ou necessidade da medida?

    Dentre tantas outras numerosas repercussões que o conceito constitucional de delito está predestinado a provocar (no âmbito da política-criminal, na teoria do delito, na teoria da pena etc.), mais quatro, pelo menos, devem ser postas em destaque:

    1ª) A vinculação do legislador, do intérprete e do aplicador da lei penal ao referido paradigma da ofensividade: [ 27 ] o primeiro já não pode adotar técnicas legislativas incriminatórias reconduzíveis ao mero voluntarismo (à vontade) do infrator, ao seu modo de ser, ao seu modo de pensar; não é possível configurar o delito como mera desobediência à norma; ninguém pode ser castigado pelo que é ou pelo que pensa, senão pelo que faz ofensiva e intoleravelmente aos outros; os intérpretes e aplicadores da lei têm a tarefa de interpretar todos os tipos penais em termos ofensivos: de todos os significados possíveis que se extraem da literalidade legal deve-se preferir sempre o que se ajusta ao modelo de delito como ofensa a um bem jurídico, considerando-se atípicas todas as condutas não ofensivas, ainda que formalmente adequadas à descrição legal;

    2ª) A refutação das tendências penais exageradas, desproporcionalmente intervencionistas, que buscam configurar o delito não segundo o modelo marcadamente garantista que aqui se indica, senão como mera violação de um dever [ 28 ] ou de uma norma ou, mais grave ainda, como simples modo de viver;

    3ª) A incompatibilidade das concepções subjetivistas do Direito penal e do delito com as modernas Constituições (voltaremos ao tema mais adiante). Com efeito, e invocando uma vez mais a síntese de MARINUCCI/DOLCINI, [ 29 ]"elas [as Constituições] acolhem os clássicos princípios liberais da legalidade do delito e da pena, da irretroatividade da lei penal, contemplando uma idéia de delito que se reconduz não àquilo que o homem é ou quer (concepção subjetivista), senão pelo que ele faz (modelo objetivista) [...]; iluminada pela inteira fisionomia do Estado desenhado pela Constituição [...] a referência ao fato (contida no art. 25.2, da CI) revela em última instância seu tradicional significado liberal: fato é sinônimo de ofensa a bens jurídicos". Como se vê, da concepção subjetivista do ilícito penal, que o considera em última análise como um fato socialmente perigoso, [ 30 ] passa-se, sob a égide dos modernos valores constitucionais, [ 31 ] a uma concepção do delito como fato ofensivo típico, que não prescinde da necessária afetação do bem tutelado.

    4ª) A tipicidade penal, portanto, doravante, será sempre compreendida também em sentido material e garantista e dela (também) faz parte, como requisito explícito ou implícito, a ofensa ao bem jurídico, seja na forma de lesão, seja na de perigo concreto. [ 32 ] Essa ofensa constitui a essência do resultado jurídico relevante (ou seja: desvalioso), que pressupõe seis exigências: o resultado jurídico deve ser (a) concreto, (b) transcendental, (c) grave, (d) intolerável, (e) objetivamente imputável ao risco criado e (f) que esteja no âmbito de proteção da norma penal.

    Disso também se infere, obviamente, que o princípio da ofensividade está destinado a funcionar como critério hermenêutico de extraordinário valor, em virtude do qual resulta impossível sancionar penalmente todos os comportamentos que concretamente não chegam a 'perturbar' ou afetar o bem consagrado normativamente. Para que um ato humano seja considerado penalmente relevante, além da materialização (exteriorização) de uma vontade criminosa, que é exigência do princípio do fato, faz-se necessário um plus , que é precisamente a ofensa (a iniuria ) ao bem jurídico tutelado.

    Precisamente nos tristes momentos históricos de eclipse mais aguda do princípio da ofensividade é que mais arbítrio se cometeu contra a liberdade humana. No tempo do nazismo, quando se prescindiu por completo não só do bem jurídico como da sua necessária ofensa, o delito foi configurado como mera desobediência à norma e todas as atrocidades daí derivadas são amplamente conhecidas.

    Como bem ressaltou ZAFFARONI, [ 33 ]"o injusto concebido como lesão a um dever é uma concepção positivista extremada [...]; é a consagração irracional do dever pelo dever mesmo. Não há dúvida que sempre existe no injusto uma lesão ao dever [uma violação à norma imperativa], porém o correto é afirmar que só existe essa violação quando se afeta o bem jurídico tutelado. Não se pode interromper arbitrariamente a análise do fato ou do fato punível e se a ação não prejudica terceiros, deve ficar impune, por expressa disposição constitucional".

    6. No Direito penal da ofensividade não há espaço para o perigo abstrato

    Se a primeira exigência (emanada da teoria constitucionalista do delito) orienta que o resultado jurídico deve ser concreto, resulta claro que o Direito penal da ofensividade é incompatível com o perigo abstrato (ou presumido). Não há espaço no Direito penal fundado na pena privativa de liberdade para o perigo abstrato. A jurisprudência brasileira, entretanto, nem sempre segue esse paradigma liberal e democrático (mas, constitucionalmente falando, é um equívoco da jurisprudência, continuar admitindo o perigo abstrato).

    1. FERRAJOLI, Luigi, Direito e razão - teoria do garantismo penal, 2. ed., tradução de Ana Paula Zomer Sica e outros, São Paulo: RT, 2006, p. 91 e ss.

    2. Assim, FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. La ley del más débil, cit. Prólogo de Perfecto Andrés Ibañez. Madrid: Trotta, 1999. p. 19.

    3. Cf . GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no Direito Penal. São Paulo: RT, 2002 e Décima segunda seção - v. 1.

    4. ROCCO, Arturo. L´oggeto del reato e della tutela giuridica penale. Torino: Fratelli Bocca, 1913. p. 147.

    5. Cf . NEPPI MODONA, Guido. I concetti di idoneità degli atti e idoneità dell'azione: strutura e accercamento, citado por NICOLÁS GARCÍA RIVAS,. La rebelión militar en Derecho penal, Castilla-La Mancha: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 1990. p. 157.

    6. Depois da criação da referida concepção realista por GALLO (cf . referências em GARCÍA RIVAS, Nicolás. El poder punitivo en el Estado democrático. Cuenca: Ed. de la Universidad de Castilla-La Mancha, 1996. p. 47), numerosos autores seguem a mesma linha no sentido de considerar o delito como um fato humano ofensivo ao interesse protegido (cf . referências em PALLADINO. Principio de ofensività: verso un'estensione della sua portata? Caazione Penale, 1999, p. 3.212 e ssss., que aponta como seguidores da doutrina MARINI, BRICOLA, VASSALLI, FIORE etc.). Destaque especial merece MANTOVANI que, a partir da sua formação humanista e liberal invejável, transformou-se num dos mais ardorosos defensores do Direito penal da ofensividade.

    7. Neste nosso livro é adotada, em suma, uma concepção liberal de Direito Penal, que acentua o aspecto objetivo da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, deixando de conferir primazia ao componente subjetivo da atividade humana. Não obstante, certo é que existem concepções ecléticas que admitem o delito como lesão ou perigo ao bem jurídico e ao mesmo tempo a violação de uma obrigação. E seria o ponto de encontro e de justo equilíbrio entre duas concepções: liberal e ético-social (cf . ROMANO, Mario. Comentario sistematico del codice penale. Milano: Giuffrè, 1992. p. 284. v. I.).

    8. Nos itens que seguem esse tema será abordado detalhamente.

    9. Cf . DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Costituzione e política dei beni giuridico. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano, Giuffrè, 1994, p. 333 e ss.

    10. O modelo de delito como ofensa a um bem jurídico conta com força vinculante de um princípio constitucional, que se impõe seja ao legislador, seja ao intérprete (cf . MAZZACUVA, Nicola. Diritto penale e Costituzione, Introduzione al sistema penale. Torino: Giappichelli, 1997. p. 87.

    11. Veja-se FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. La ley del más débil, cit., p. 15 e ss.; HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el producto en Derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, p. 15 e ss. No sentido de que é impossível uma volta ao velho e bom Direito Penal liberal cf . SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del Derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Cuadernos Civitas, 1999, p. 115, que afirma:" o Direito Penal liberal que certos autores pretendem reconstruir agora na realidade nunca existiu como tal ".

    12. Cf . BRICOLA, Franco. Teoría generale del reato, Scritti di Diritto penale. Dottrine generali. Teoria del reato e sistema sanzionatorio. Milano: Giuffrè, 1997, p. 541 e ss.; GARCÍA RIVAS, Nicolás. El poder punitivo en el Estado democrático, cit., p. 44 e ss."A legitimidade do Direito Penal ou do poder punitivo do Estado provém, pois, do modelo fixado na Constituição e dos Pactos e Tratados internacionais [...] e junto a esta legitimação extrínseca do Direito Penal, há também uma legitimação intrínseca, representada por uma série de princípios [...]"(cf . MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho penal: parte general. 3. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1998, p. 77). Já nos anos setenta SANTIAGO MIR PUIG realçava o debate dogmático nos limites da Constituição : cf . Función de la pena y teoría del delito en el Estado social y democrático de derecho, passim, Barcelona: Bosch, 1979.

    13. Cf ., por exemplo, a fundamentação constitucional apresentada pela doutrina italiana para fundamentar a constitucionalização do princípio de ofensividade.

    14. Cf . VIVES ANTÓN, Tomás S. Estado de Derecho y Derecho penal, Comentarios a la legislación penal, Derecho penal y Constitución. Cobo del Rosal (Dir.) Bajo Fernández (Coord.). Tomo I. Madrid: Edersa, 1982. p. 20 e ss. Em 1977 ao mesmo tempo em que concebia o" conceito constitucional de delito "o autor firmava a ata de defunção do imperativismo por considerá-lo incompatível com a 'referência valorativa da Constituição' (cf . GARCÍA RIVAS, Nicolás. El poder punitivo en el Estado democrático, cit., p. 44).

    15. Quanto ao Direito espanhol cf . art. 25 CE; Alemanha, art. 74, n. 1, GG; Brasil: CF , art. 22 , I e 5.º, inc. XXXIX; Italia: art. 25. 2.

    16. Assim, VIVES ANTÓN, Tomás S. Estado de Derecho y Derecho penal, cit., p. 20.

    17. Assim, ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Madrid: Civitas, 1997. p. 51. v. 1.

    18. Cf . MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal: parte general, cit., p. 212.

    19." Não obstante, o príncipe deve fazer-se temer de maneira que, se não consegue o amor do povo, pelo menos evita seu ódio "(cf . MAQUIAVEL, Nicolás. O príncipe. Trad. Eli Leonetti Jungl. Madrid: Austral, 1999. p. 116);" É uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a abusar dele "(MONTESQUIEU. O espírito das leis. Livro Décimo Primeiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 163).

    20. Sobre a posição da Constituição como parâmetro da validez do conteúdo de todas as normas do ordenamento jurídico cf . PERALTA, Ramón. La interpretación del ordenamiento jurídico conforme a la norma fundamental del Estado. Madrid: Servicio de Publicaciones de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, 1994. p. 122 e ss.

    21. Cf . CE, art. 10.1 ; CI, art. 13 . Quanto à brasileira: art. 5.º, caput.

    22. Cf . VIVES ANTÓN, Tomás S. Estado de Derecho y Derecho penal, cit., p. 11. Veja-se ainda: SPASARI, Mario. Fatto e reato nella dommatica del codice e della costituzione, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, año XXXIV, Milano, Giuffrè, 1991, p. 1.124 e ss.

    23. Sobre os valores constitucionais e sua influência no conceito de delito veja-se CARVALHO, Márcia Domitila Lima de. Fundamentação constitucional do Direito Penal. Crimes econômicos. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Legalidade, culpabilidade e justiça social. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1992. p. 41 e ss.); GARCÍA RIVAS, Nicolás. El poder punitivo en el estado democrático, cit., p. 45.

    24. Assim, VIVES ANTÓN, Tomás S. Estado de Derecho y Derecho penal, cit., p. 19.

    25. Veja-se ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, cit., p. 52 e 56.

    26. Cf . GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Directrices político-criminales del código penal español: un análisis crítico, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, RT, año V, n. 19, julio-septiembre/1997, p. 19, que assinala:"Que o Direito Penal não deve dissociar-se da experiência criminológica, nem do debate político-criminal, é hoje já um postulado pacífico na comunidade científica, uma vez concluída a histórica e infrutuosa rivalidade entre o mundo das 'togas negras' e o das 'batas brancas'. Prescindindo do saber científico criminológico, garantia do acerto e de rigor, as decisões do legislador não têm outro direcionamento que a arbitrariedade, o puro voluntarismo, ou, no melhor dos casos, a mera intuição".

    27. Nesse sentido, MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de Diritto penale, cit., p. 315, que chamam a atenção para a posição da Corte Constitucional italiana que, sem enfrentar o problema da constitucionalização do princípio de ofensividade, adverte o dever do juiz de examinar em cada caso concreto a lesividade (ofensividade) da conduta (S. de 11.07.1991, n. 333).

    28. Veja-se COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás S. Derecho penal: parte general. 4. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996, p. 295-296,"que analizaran la cuestión sobre si el delito podría ser concebido como"infracción de un deber"a partir del art. 20.5 , CP . La conclusión es en sentido negativo, reafirmándose que el delito exige una conducta contraria al bien jurídico.

    29. Cf . MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale, cit., p. 314.

    30. Existen dos concepciones distintas que consideran el delito como"hecho socialmente peligroso": una de carácter social y otra típica de los países socialistas. Sobre la última, llamada concepción 'sustancialista' del delito cf . MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale: parte general. 3. ed. Padova: Cedam, 1992. p. 204-205.

    31. Precisamente la sumisión del Derecho penal a los llamados valores constitucionales diferencia los modernos Códigos punitivos en igual medida que la configuración de los propios Estados: así GRANADOS CALERO, Francisco. Los valores constitucionales en el nuevo código penal , Poder Judicial, Madrid, Consejo General del Poder Judicial, 1986, n. 28, p. 38.

    32. Cf . LAGHI, Licia. Comentarios a la S. de 13.11.97, de la Corte de Cassazione. Sez. I penale, L´Indice Penale, 1999, cit., p. 288.

    33. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Teoría del delito. Buenos Aires: Ediar, 1973. p. 226.

    • Sobre o autorTradição em cursos para OAB, concursos e atualização e prática profissional
    • Publicações15363
    • Seguidores876049
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações5969
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/teoria-constitucionalista-do-delito/1022725

    Informações relacionadas

    Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
    Notíciashá 15 anos

    No que consiste a teoria constitucionalista do delito? - Leandro Vilela Brambilla

    Teoria Constitucionalista do Direito Penal

    Guilherme Cruz do Nascimento, Advogado
    Artigoshá 6 anos

    Conceito de Culpabilidade

    Guilherme Nascimento Neto, Advogado
    Modeloshá 3 meses

    [Modelo] Recibo de aluguel/locação

    Tribunal de Justiça de São Paulo
    Notíciashá 11 anos

    Emissora de TV é condenada a pagar indenização por ‘pegadinha’

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)