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24 de Maio de 2024
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    Vice-PGR defende cotas raciais em audiência no STF

    há 14 anos

    A vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, defendeu a política de ação afirmativa para reserva de vagas no ensino superior ao falar em nome do Ministério Público Federal durante audiência pública realizada na manhã de hoje, 3 de março, na sala de sessões da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). O evento, que vai até sexta feira, foi convocado pelo ministro Ricardo Lewandowski com o objetivo de subsidiar a corte, com as informações trazidas por especialistas e autoridades governamentais, nos julgamentos de processos que questionam o sistema de cotas raciais adotados por universidades brasileiras.

    Após afirmar que a Constituição de 1988 representou uma ruptura com a ordem anterior e um projeto de futuro para a sociedade, a vice-procuradora-geral abordou essa ruptura em três perspectivas: filosófica, jurídica e política, procurando traçar um histórico do que foi esse momento anterior à promulgação da nova Carta da Republica. Segundo Duprat, na vertente filosófica, a ordem anterior correspondia ao iluminismo, ao período do racionalismo kantiano, em que o sujeito é único, sem qualidades, indefinido e representativo de todos os outros sujeitos.

    Na vertente política, ela lembra que o grande episódio dessa conjuntura foi a Revolução Francesa, com o princípio da igualdade que ela proclamou, e a instituição do Estado-nação, em que os direitos dos cidadãos eram tratados de forma homogênea. "Um direito, em princípio, indiferente às diferenças", explicou.

    Ela afirma que esse ambiente, com a pretensão de absoluta homogeneidade, perdurou até a Segunda Guerra Mundial, quando começaram a ocorrer as pressões por transformações. Duprat lembra que, na vertente filosófica, essa denúncia da colonização do diferente pelo sempre igual, que vem de Nietzsche, de Heidegger, Foucault, Derrida e vários outros, mostra que essas grandes verdades universais sempre são um recorte eleito de uma realidade multifacetada. A realidade é extremamente plural para poder ser recortada em verdades universais.

    A vice-procuradora-geral procura demonstrar que essa visão de homogeneidade foi um produto de dominação de um grupo que se sagrou vencedor e que conseguiu impor a sua língua, visão de mundo, valores e cultura, mas que os movimentos sociais começam a denunciar essa farsa da igualdade de todos perante a lei. A década de 60 é pródiga em movimentos, como o feminismo, por exemplo, mostrando que se a mulher for tratada igual ao homem, aquilo que lhe é mais peculiar, como o aleitamento, a maternidade, lhe são dados prejudiciais no trabalho, na vida política. E vários outros movimentos, o movimento dos homossexuais, dos negros, dos índios, sempre mostrando que essa situação de igualdade de todos perante a lei, da igualdade formal, é uma situação que lhes desfavorece. E a outra coisa que se denuncia é que o direito, rigorosamente, ele nunca foi alheio à diferença, pelo contrário, tratou delas cuidadosamente, mas elegeu um determinado modelo que lhe interessava.

    Ela destacou que o direito anterior à Constituição de 88 trabalhava com classificações binárias: era de um lado homem heterossexual, de outro mulher; de um lado branco, de outro negros, índios; de um lado adulto, de outro lado criança, adolescentes, idosos; de um lado são, de um lado doente; de um lado proprietário, de um lado despossuído. A esse primeiro grupo ele [o direito] deu um valor positivo, e a esse segundo grupo ele deu um valor negativo. O sujeito de direito, portanto, desse período, ele tem cara, ele tem sexo, ele tem cor, ele tem condição financeira. Ele é homem, masculino heterossexual, é branco, é proprietário, é são e é adulto. Esse é o sujeito de direito da sociedade hegemônica. Aos demais, o direito coloca um determinado dado que o desqualifica perante o direito. A mulher, em relação à sua incapacidade relativa até pouco tempo atrás; os índios, que só conseguiam a sua possibilidade de ingresso na sociedade nacional quando se livrassem da sua identidade. Então era o fenômeno da emancipação que permitia ao índio fazer parte da sociedade nacional. Enfim, crianças, adolescentes, idosos, pessoas portadoras de deficiência, eram absolutamente invisíveis para esse direito e não considerados rigorosamente sujeitos de direito. Segundo a procuradora-geral, o mais grave é que esse direito reservava a presença no espaço público apenas ao sujeito ideal, ficando todos os demais confinados.

    Igualdade material - Duprat destacou que a Constituição de 1988 reconhece o caráter plural da nossa sociedade e recupera o espaço antológico da diferença, expressamente nos artigos 215 e 216, quando trata da cultura e dos grupos formadores da sociedade nacional, e ao tratar, ao longo do texto, dos negros, índios, da mulher, dos portadores de deficiência, dos remanescentes de quilombos, das crianças e dos idosos. Ela fala de cotas, especificamente, para mulheres no mercado de trabalho, fala de cotas nos cargos públicos para as pessoas portadoras de deficiência. Porque as cotas, antes de atentar contra o princípio da igualdade, elas realizam a igualdade material. Elas, por outro lado, são a porta de entrada para que essas instituições assumam o caráter plural. O suposto saber universal veiculado pela universidade é ainda o saber do grupo hegemônico, é ainda o saber do grupo que por muito tempo logrou esse espaço de permanência na sociedade nacional.

    Para a vice-procuradora-geral, quando se fala de meritocracia, fala-se de mérito a respeito desse tipo de saber. Por que nós temos tanta dificuldade de implementar uma disciplina nas escolas públicas que trata da história dos povos indígenas e dos afrodescendentes? E nas universidades o estudo dos índios e negros? Porque não tem quem as conte. Porque ainda a escola é ocupada por esse grupo e pela sua história, e pela visão que ele tem da história dos outros. Essa é a grande dificuldade da mudança. Os espaços públicos ainda estão ocupados por esse grupo hegemônico". Segundo ela, as cotas permitem a inclusão no espaço de público dessa multiplicidade da vida social.

    Deborah Duprat refletiu sobre o porquê de as cotas, com esse recorte étnico-racial, incomodarem tanto e procurou desqualificar aquele surrado argumento de que não existem raças, afirmando tratar-se de uma visão positivista e naturalizante de raça. É óbvio que raça, nessa visão biológica, não existe. Isso aí não tem nenhuma dificuldade, o Supremo já disse isso naquele caso das publicações anti-semitas". Destacou, no entanto, a raça é questão de linguagem, é questão de como o conceito é ressemantizado, reformulado e apropriado por todos:"Por quem olha e vê naquilo raça e por quem é vítima e colhe aquilo também como projeto de mobilização.

    Miscigenação - Ela também questionou a miscigenação, afirmando que esta também foi uma construção da visão colonial. A miscigenação consta desde as ordenações pombalinas e é uma engenharia social para as colônias, tão curiosa que o casamento inter-racial dessas leis é possível para o homem, mas não é possível para a mulher branca. Então é uma estratégia de povoamento, uma estratégia de gerar força, mais escravos para aquele mercado. Ela citou uma lei de imigração brasileira de 1945, que estimulava a vinda dos trabalhadores europeus para o Brasil para"preservar e desenvolver na composição étnica da população as mais desejáveis características de sua ancestralidade européia". Para Deborah Duprat, a miscigenação, muito mais do que um retrato da nossa sociedade, é uma retórica oficial.

    A vice-procuradora-geral também comentou sobre o incômodo que causa na sociedade o critério adotado do auto-reconhecimento, na sua opinião o único critério possível. Porque apenas na sociedade hegemônica é que o grupo que tem o poder tem o poder também das classificações e das definições, de estabelecer fronteiras, de dizer quem está dentro e quem está fora. Numa sociedade plural, cada um tem essa possibilidade de dizer quem é. E afirmar quem é traz consequências muito além do mero ingresso numa universidade, do mero ingresso num concurso. Afinal, dizer que você é negro, traz consequências posteriores ao ingresso, traz consequências para o mercado de trabalho.

    Secretaria de Comunicação Social

    Procuradoria Geral da República

    (61) 3105-6404/6408

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