Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
19 de Maio de 2024

Violação ao direito de acesso à justiça: é preciso falar sobre direitos humanos

Publicado por Justificando
há 9 anos

No ano de 2001, na cidade mexicana de Juárez, uma menina de 15 – Esmeralda Monreal – desapareceu. Uma semana depois, no mês de novembro, ela foi encontrada assassinada, no lugar conhecido como “Campo Algodonero”. As investigações antes e depois de o corpo ter sido localizado – sem rosto e sem cabelos – foram irregulares e inconsistentes. As buscas do corpo pela polícia demoraram, a família não foi informada das primeiras evidências. As autoridades policiais informaram que a ausência do rosto e dos cabelos deveu-se à ação de animais e do vento, ainda que o restante do corpo estivesse intacto. A família não foi informada do resultado da autópsia, não assistiu a colocação do corpo no caixão, não teve acesso aos exames de DNA. As autoridades informaram laconicamente que os responsáveis estavam presos e, assim, deram o caso por encerrado. Não houve processo penal. A família de Esmeralda foi vítima de ameaças e de maus tratos por parte das autoridades públicas. Além de Esmeralda, Cláudia Gonzáles e Laura Monárrez tiveram o mesmo destino trágico, no mesmo lugar.

A Comissão interamericana de direitos humanos apresentou o caso à Corte interamericana de direitos humanos, conhecido como caso “Campo Algodonero”. Em 16 de novembro de 2009, a Corte proferiu sentença contra o México dizendo que esse Estado não cumpriu os seus deveres de investigar e de garantir o direito à vida, à integridade pessoal e à liberdade das vítimas. Por tais razões reconheceu ter o México violado os direitos de acesso à justiça e à proteção judicial previsto nos artigos 8.1. e 25.1 da Convenção Americana.

O “demônio do feminicídio” é mais uma vez experimentado no México. A imprensa internacional noticiou no último final de semana a morte de mais de 15 adolescentes do sexo feminino na cidade de Ecatepec. Resta saber se, desta feita, o México irá cumprir na integralidade a sentença do caso “Campo Algodonero” que, entre outras determinações, impôs o dever de condução eficaz do processo penal e que os órgãos policiais e judiciais assegurem recursos humanos e materiais necessários para o desempenho de suas atribuições de forma independente, imparcial e que os procedimentos sejam públicos.

Esses dois casos são tomados aqui apenas como exemplos de um universo bastante amplo de violações do acesso à justiça que, como se sabe, envolve em sua ampla concepção, entre outros, o dever de respeito ao juiz natural independente e imparcial, ao devido processo legal, ao contraditório, à ampla defesa e à publicidade. Os tribunais regionais de direitos humanos, é sabido, tem reiteradamente condenado inúmeros países europeus e latino-americanos por desrespeito às garantias processuais. Esse, pois, é um problema de democracia.

Com efeito, se podemos considerar ser a jurisdição o “habitat” do acesso à justiça e do devido processo legal, não só porque deve ser independente e imparcial, mas também porque, ser assim, implica em materializar, na prática, a igualdade das partes, é possível também afirmar que embora existam diferentes tradições jurídicas, os Estados que assumem a democracia como o pilar estruturante da vida em sociedade, estão comprometidos com o acesso efetivo à justiça.

No marco do direito internacional dos direitos humanos não há mais dúvida do lugar que os textos internacionais reservam às garantias do processo. Essa valorização, que conheceu intenso crescimento após o fim da Segunda Guerra Mundial, foi incorporada em inúmeros textos constitucionais e é alvo de preocupação de muitos países que transitam ainda hoje de regimes autoritários para a democracia.

Mas também devemos pensar que se trata de um problema agudo em cenários contemporâneos vividos por países que já conheceram níveis superiores de democracia e, atualmente, vivem mergulhados em regimes escandalosamente ditatoriais, do que é exemplo a Síria. Veja-se que o site da FIDH – Federação internacional de Direitos Humanos -, noticia o destino trágico do sírio Bassel Khartabil, engenheiro em tecnologia de informação e defensor da liberdade de expressão, preso desde 2012 pelos serviços de informações militares, sem que lhe fossem asseguradas quaisquer das garantias processuais e cujo paradeiro é desconhecido. Assim como nós, na América Latina, vivemos a experiência em passado recente, da atuação arbitrária de tribunais militares, os tribunais da Síria deste Século XXI também são tribunais de exceção, que tramitam a portas fechadas e onde os acusados não têm o direito de defender-se.

A diferença em relação aos continentes europeu e latino-americano é que a falta de uma Corte regional de direitos humanos no mundo árabe, deixa as vítimas relegadas à justiça nacional que, neste caso, é sabidamente inefetiva, embora tenha a Síria ratificado o Pacto de direitos civis e políticos da ONU em 21 de abril de 1969 e de cujo texto pode ser extraída a responsabilidade assumida por esse País de respeitar as garantias do processo.

O compromisso em manter a justiça afinada e alinhada ao devido processo legal – ou com o processo equitativo – está inscrito no artigo 14 do Pacto Internacional de direitos civis e políticos quanto, antes, no artigo 6º, § 1º da Convenção Europeia dos direitos do homem. A jurisprudência da Corte Europeia de direitos do homem tem imposto aos estados do Conselho europeu o reconhecimento desse direito às partes dos processos, qualquer que seja a jurisdição a que elas estejam submetidos. Os dispositivos 8.1.e 25.1. da Convenção americana, antes mencionados, também impõem as mesmas obrigações aos estados latino-americanos, seja ao tempo em que foi necessário aplicá-los para repelir e sancionar os efeitos das violações aos direitos humanos praticadas em nosso continente, no período das ditaduras militares, seja para dotá-los de efetividade material com relação ao tempo presente em que a democracia prevista nas Constituições está muito distante daquela que se pratica, como no caso mexicano, aqui tomado como exemplo.

De fato, o feminicídio no México e a negativa em garantir o acesso à justiça e o devido processo legal aos familiares das vítimas, quanto a negativa ao cidadão sírio do direito ao juiz natural, imparcial e independente e ao direito de defesa, são exemplos de microcosmos que somados formam o cosmos global das amplas violações às garantias processuais e que comprovam o acerto do imperativo categórico kantiano de que a violência contra uma pessoa em qualquer lugar da terra pode ser experimentada por todos.

Assim, essa é uma preocupação em termos de atuação da justiça em nível global pois, de fato, não se pode falar em acesso à justiça e em devido processo legal, sem que haja uma administração da justiça alinhada aos marcos normativos internacionais que impõem aos Estados o compromisso internacional de respeitar as garantias processuais. Para isso, o mínimo comum, é a garantia de que o poder judiciário seja independente e imparcial. Então, em inúmeros países o que deveria pautar o foco do debate dos juristas deveria estar relacionado com a pergunta sobre qual é o “estado do direito” ao invés de perguntar sobre o “Estado de direito”. Esse foi, aliás, o centro dos debates sobre “justiça eqüitativa” que ocorreu em Túnis no ano de 2014 e que reuniu juristas representantes de inúmeros Estados árabes.

Quando no Século XVII Shakespeare escreveu a obra “Medida por medida” – indiscutivelmente atemporal - o que pretendeu foi não apenas ironizar mas denunciar o quanto o exercício do poder de decidir pode distanciar-se das bases que lhes dão sustentáculo – a legitimidade e a autoridade -, quando tal exercício for fruto do arbítrio. Por isso, garantir efetivamente o acesso à justiça, em qualquer lugar, é um dos signos mais emblemáticos das democracias contemporâneas e que compõe o jus cogens, ou seja, independentemente de ter o Estado assumido compromissos formais internacionais em respeitá-lo, ele deve ser respeitado de qualquer modo!

Seguramente, há concordância sobre o fato de que o acesso à justiça e o devido processo legal são regras de direito internacional geral, aceitas e reconhecidas pela comunidade internacional e insuscetíveis de derrogação. Esse é o alcance material do jus cogens que nos permite realizar esse exercício hermenêutico para nele incluir aquelas duas garantias. No julgamento do conhecido – e que não deve ser esquecido – caso Almonacid Arellano y otos vs. Chile, o então juiz da Corte interamericana de direitos humanos, Cançado Trindade, reafirmou que “nenhum Estado pode acudir a artifícios para violar normas de jus cogens” e as ‘proibições’ deste último não dependem do consentimento dos Estados”.

As interrogações permanentes sobre o dever estatal de respeito a tais garantias do processo decorrem não apenas do fato indesmentível de que as mesmas continuam a ser desrespeitadas pelos estados, quanto da necessidade de realizar-se reflexões mais alargadas sobre o sentido da justiça. Levar a sério o debate sobre a efetiva possibilidade jurídica de exercício da “justiça universal” quando os estados, por serem frágeis, autoritários ou descomprometidos com a democracia não cumprem os compromissos internacionais de respeitar as garantias do processo, é, manter vivo o debate – e o embate - sobre o dever de respeito estatal ao acesso à justiça “qualificado”.

Jânia Saldanha é Doutora em direito. Realizou estudos de estágio sênior (2014-2015) no IHEJ – Institut des Hautes Études sur la justice, onde é pesquisadora associada. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSM. Diretora do Comitê Científico da Associação Mundial de Justiça Constitucional. Advogada.
REFERÊNCIAS [1] Disponível em: http://internacional.elpais.com/internacional/2015/10/08/actualidad/1444337616_930094.html [2] Em 21 de maio de 2013 a CIDH emitiu decisão no procedimento de supervisão do cumprimento da sentença, informando que o manteria, entre outros motivos, com relação á condução eficaz do processo penal. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/gonz%C3%A1lez_21_05_13.pdf. [3] Disponível em: https://www.fidh.org/en/issues/human-rights-defenders/ [4] O resultado do encontro está aqui: http://iedja.org/les-actes-de-colloque-de-la-quatrieme-conference-regionale-des-juristes-francophones/ [5] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/cf/Jurisprudencia2/busqueda_casos_contenciosos.cfm?lang=es
  • Sobre o autorMentes inquietas pensam Direito.
  • Publicações6576
  • Seguidores940
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações540
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/violacao-ao-direito-de-acesso-a-justica-e-preciso-falar-sobre-direitos-humanos/242112365

Informações relacionadas

OAB - Seccional São Paulo
Notíciashá 5 anos

A relevância da defesa dos direitos humanos

Canal Ciências Criminais, Estudante de Direito
Artigoshá 7 anos

Sistema prisional brasileiro e direitos humanos

0 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)