Página 1568 da Judicial - 1ª Instância - Capital do Diário de Justiça do Estado de São Paulo (DJSP) de 1 de Setembro de 2014

destinada a danificar os dirigíveis construídos pelo vizinho.[39] Na França, portanto, uma série de práticas sociais consideradas reprováveis por decisões judiciais formaram a base de uma noção de abuso do direito ainda vaga, tendo a doutrina proposto soluções que podem ser agrupadas em diversas tendências.[40] Primeiramente, cabe citar aquelas correntes negativistas. Duguit, sendo coerente com sua concepção de negação do próprio direito subjetivo, não pode defender a existência do instituto, referindo também que a locução é contraditória em si. Planiol, em posição bastante difundida, entende a expressão como logomáquica, pois caso se use o direito, o ato é lícito, e, se é ilícito, ultrapassa o direito, pois o direito cessa onde começa o abuso. Tal argumento, em que pese parecer convincente em uma superficial análise, não se sustenta em verdade, porque o abuso do direito trata de não-licitudes irredutíveis à simples ilicitude, tendo por justificativa limites ao direito subjetivo que também não podem ser reconduzidos àqueles comuns de conteúdo.[41]Aquilo que abstratamente é direito, no exercício passa a ser abuso. Entre os que aceitam a noção de abuso do direito na França, importante citar, pela repercussão de seus diversos entendimentos quanto à fundamentação, Brethe, que ressalta a necessidade de respeitar os direitos alheios; Ripert, que sublinha a violação, pelo titular exercente, de normas éticas ou morais; Josserand, que salienta a não consideração, no exercício, do fim preconizado pela lei; e Mazeaud et Tunc, que introduzem o critério da ocorrência de falta, por parte do titular, a ensejar a reparação.[42]De especial importância, no estudo brasileiro, a posição de Saleilles, que identifica o abuso do direito no seu uso anormal, tendo influenciado o tratamento do tema no Código Civil pátrio de 1916.[43] Apesar do tratamento original do tema, as posições francesas, cuja evolução parou ainda no início do século XX, são ainda carentes de uma fundamentação mais consistente e de uma elaboração sistemática, sem mencionar que não cogitam da proteção à confiança, nem da boa-fé objetiva, cujo papel será decisivo para a nova configuração do instituto na atualidade.[44] Panorama completamente diverso será o da Alemanha, cuja trajetória no tocante à repressão ao exercício inadmissível de direitos está ainda que por via indireta na base do art. 187 do nosso novo Código Civil. A série de comportamentos socialmente reprováveis que, na França, originou as primeiras decisões judiciais sobre o tema e possibilitou a elaboração de um conceito geral, ainda que impreciso, de abuso do direito, recebeu, na Alemanha, tratamento através de soluções com base em figuras jurídicas típicas. [45] Inicialmente, tiveram alguma aplicação as figuras da exceptio doli e da proibição geral da chicana, consagrada no § 226 do BGB, cuja redação é a seguinte: O exercício de um direito é inadmissível quando ele só possa ter por escopo infringir um dano a outrem[46]. Tais alternativas, contudo, se revelaram insuficientes para confrontar o problema social da prática dos atos considerados abusivos, por se tratarem de medidas pontuais, de caráter tópico e âmbito estreito, com difícil conexão sistemática. Uma das poucas e certamente a mais célebre decisão fundada na proibição da chicana é aquela em que foi considerado abusivo o ato do pai que, motivado por desavenças, proibira a entrada do filho no interior de seu castelo, onde se localizava o sepulcro da mãe.[47] Tendo em vista esse fracasso, houve a tentativa de construir a noção de exercício inadmissível de direitos, ligando a proibição de chicana à cláusula geral de bons costumes, constante do § 826 do BGB. O recurso aos bons costumes, contudo, também não logrou tanto êxito, seja pela exigência do requisito do dolo na ação, a restringir seriamente sua aplicação, seja pela aproximação da noção de bons costumes à idéia de moral interior, o que não permitiu uma concretização científica do conceito.[48] Por fim, recorreu o direito alemão, para resolver os variados casos de exercício inadmissível de direitos, à boa-fé objetiva, buscada na cláusula geral do § 242 do BGB, esta sim capaz de trazer soluções satisfatórias, tendo em vista ser (i) ampla, para abranger as diversas espécies de conduta abusiva; (ii) objetiva, prescindindo da intenção do agente; (iii) positiva, por prescrever condutas e não se limitar a restringi-las, impondo como conseqüência simples indenização; e (iv) precisável, em que pese sua amplitude, por ter um conceito jurídico construído, e não completamente vago como a moral ou os bons costumes.[49] Esclareça-se, no entanto, que a evolução acima referida apresenta-se didaticamente exposta, pois, como observa Menezes Cordeiro, em realidade, o abuso do direito, na Alemanha, não nasceu de um aprofundamento doutrinário em termos centrais relativamente ao próprio conceito de abuso, mas, ao contrário, foi construído pela sedimentação jurisprudencial e doutrinária de uma série de situações tipicamente abusivas, reconduzidas principalmente à boa-fé objetiva como princípio e critério jurídico distintivo e basilar para a configuração das hipóteses. Assim, torna-se mais preciso falar em exercício inadmissível de direitos, e não em abuso. No direito alemão, portanto, a tutela da confiança, como fundamento, e o princípio da boa-fé objetiva, como princípio jurídico, são a base e a gênese da proibição do exercício inadmissível de direitos, noção que será relevante para situar a atual compreensão desse conceito. [50] A ligação entre a figura do abuso e o princípio da boa-fé logra-se obter na Suiça, onde, ainda em 1907, o abuso do direito foi previsto, ao lado do inciso que trata da boa-fé, no artigo do Código Civil, da seguinte forma: O abuso manifesto do próprio direito não é protegido pela lei. A aplicação jurisprudencial, no entanto, apesar de uma suficiente elaboração legal e doutrinária, deixou a desejar, a demonstrar a importância e o papel da concretização judicial de institutos que se reportam a cláusulas gerais. Trata-se do que Menezes Cordeiro denominou de paradoxo suíço.[51] Relativamente à Itália, é suficiente, no âmbito do presente, esclarecer que, por razões diversas, o reconhecimento do exercício inadmissível de direitos sempre encontrou certa resistência por parte da doutrina e jurisprudência. Em algumas decisões judiciais isoladas, este fora reconhecido, de forma mais corajosa, em período anterior às guerras mundiais. No entanto, o Código Civil de 1942, em seu artigo 833, restringiu o campo do exercício inadmissível, ao consagrar que o proprietário não pode praticar atos que não tenham outro escopo do que o de prejudicar ou causar moléstia a outrem. A doutrina e a jurisprudência restaram cerceadas pela limitação apenas do exercício do direito de propriedade, sendo exigido pela lei, ainda o elemento subjetivo, qual seja, o escopo exclusivo de prejudicar outro, o que representa um retrocesso em termos de disciplina normativa e uma séria restrição de sua aplicabilidade. [52] Apesar disso, parte da doutrina ainda tenta reconduzir os casos de exercício inadmissível à boa-fé objetiva[53] e ao dever de correção nas relações.[54] O código grego de 1946 foi elaborado com ampla influência alemã, que se refletiu não só na utilização de preceitos do BGB, como na recepção da doutrina que se formara de 1896 até aquela data, com soluções novas. [55]Esse contexto de consagração da doutrina germânica, aliado à introdução do elemento do escopo social ou econômico do direito como limite ao exercício de direitos subjetivos[56], ensejou a criação de fórmula que ultrapassa os códigos que lhe antecederam, sendo esta a redação do art. 281: O exercício é proibido quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo escopo social ou econômico do direito. O desenvolvimento do trabalho até aqui empreendido permite verificar que a matriz germânica do estudo dos limites dos direitos subjetivos, traduzida na fórmula grega, serve de inspiração ao art. 334 do Código Civil Português de 1966, que assim dispõe: é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e econômico desse direito. Como veremos adiante, o art. 334 do Código Civil português de 1966 servirá de inspiração para o art. 187 do Código Civil brasileiro de 2002. Porém, sabendo-se que na elaboração do direito, a letra não é o mesmo que a norma tendo imensa importância o consenso já construído culturalmente - impõe-se verificar qual foi o consenso que foi construído pela civilistica brasileira na vigência do Código de 1916: ao assim proceder não estamos querendo repetir o já existente, mas, pelo contrário, evidenciar, pelo contraste, como poderá ser desenvolvida, para o futuro, toda a potencialidade encerrada no art. 187. C) O ABUSO DO DIREITO NO CÓDIGO DE 1916 O chamado Código de Bevilaqua [57] trata do tema no título referente aos atos ilícitos, que traz, como é sabido (i) uma cláusula geral[58] que, estabelecendo a previsão genérica das condutas ilícitas, de caráter subjetivo (pois exige dolo ou culpa), imputa desde já ao agente a obrigação de reparar o dano art. 159; (ii) uma cláusula

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