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3 de Maio de 2024

A Caça às Bruxas e a Ilusão de Civilidade

Publicado por Laíce Cardoso
há 6 anos

Em 1692, na cidade de Salem, estado do Massachusetts, nos EUA, ocorreu uma das mais notórias crueldades perpetradas pela humanidade. Após um conjunto de “maus presságios”, e acusações infundadas de algumas garotas adolescentes, foram executadas vinte pessoas, pelo motivo de serem bruxas.

Centenas de anos depois, o episódio é considerado como um caso de histeria em massa, com graves violações do devido processo legal, acusações falsas, tortura e extremismo religioso.

Porém, podemos ver casos como este durante toda a História, afinal, há sempre um denominador comum: o bode expiatório. O culpado pelos erros da comunidade, pela colheita ruim, pelo declínio da “moral e bons costumes”.

Tempos de crise normalmente trazem à tona a necessidade de apontar o dedo para alguém que a tenha causado. A nobreza que foi quase toda executada na Revolução Francesa, os supostos hereges na época da Inquisição, os negros, os pobres, as mulheres. São muitos os momentos em que a sociedade em massa escolheu um grupo e transferiu para ele a responsabilidade dos seus problemas.

Mas o que acontece quando já existe a tensão social e a tendência contra o grupo? O que acontece quando a crise eclode, quando os medos e paixões afloram por puro desespero? O que acontece quando se abandona a racionalidade para condenar?

O que acontece são mortes.

A civilidade, que o Ocidente se orgulha tanto em dizer que possui, se esvai no mínimo indício de que a ilusão está em perigo. A ameaça de uma guerra, ou uma crise econômica traz à tona os instintos mais primais de sobrevivência da raça humana, com saques a mercados, bancos, vandalismo, linchamentos.

E então, cai a cortina. O espetáculo da civilidade termina.

Tudo isto após dias, semanas, meses, anos, de influência sobre a psique coletiva, os rumores espalhados, os jornais, programas de televisão, a desconfiança generalizada, os clichês, preconceitos, etc.

Não demora muito até falarem: “É por isso que o Brasil está assim, agora todo mundo é viado”, “Tá vendo, favelado é tudo traficante”, “Por mim todos deviam ser executados, deixa a polícia fazer o que quiser”, “Se eles não existissem o país estaria melhor”.

A sentença de morte começa com as piadas. Vem o preconceito, o ódio, a perda de garantias, de direitos, de liberdade. E então, as execuções.

Não podemos ceder à histeria coletiva causada pelo medo e repetir tantos eventos históricos. Não podemos deixar que aconteça uma nova Inquisição, um novo Tribunal de Salem, um juízo de exceção.

A civilidade pode ser uma ilusão, mas devemos no mínimo fingir que a possuímos.

  • Sobre o autorAdvogada, Pós-graduada em Ciências Criminais
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  • Tipo do documentoArtigo
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Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-caca-as-bruxas-e-a-ilusao-de-civilidade/582635072

9 Comentários

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Nunca me esqueço da expressão usada para descrever o início da Alemanha Nazista em 1933:
"Rompeu-se o fino verniz civilizatório da República de Weimar."
A tal república foi enfiada ao povo alemão em consequência de perderem a 1ª guerra mundial de 1919, não havia um cultura civilizada alemã, mas eram obrigados a se comportar como se fossem, muitos dos que acreditavam civilizados ou superiores se embebedaram com a orgia sangrenta nazista.
Dizer que vivemos em uma democracia, uma república ou outras formas boazinhas de governo não nos torna melhores, apenas o amadurecimento das sociedades pode mudar isso e demora muito.
Por isso vemos tantas disrupturas no tecido social que achamos impossíveis de acontecer. Ter consciência disso não chega a nos tornar melhores, mas ajuda a nos frustrarmos menos.
Como diz o poeta:
"Assim caminha a humanidade, a passos de formiga e sem vontade."

Não é um comentário agradável, vá se acostumando, a vida é assim... mas dá para ser bem vivida apesar de tudo. continuar lendo

@norbertomoritz Sobre o cenário que vc descreve, eu assisti um filme há uns dois anos pela Sky. Nem ouse perguntar que filme, não lembro. Filme alemão. Nunca consigo lembrar o nome dos filmes europeus que assisto (salvo raras exceções). Mas era exatamente sobre isso. Um professor de literatura, ou história, não lembro, decidiu fazer um laboratório com os alunos. Os alunos insistiam em dizer que o nazismo era uma insanidade impensável nos dias de hoje e que com a cultura moderna, jamais se repetiria. O professor tentava explicar que com algumas palavras de ordem e sentimento de pertença, se construiria novamente uma política nazista. Os alunos não acreditaram e sem que soubessem, o professor começou a incitá-los. Primeiramente, ordenou que todos usassem o uniforme da escola (que pela política da escola era opcional no filme). Depois os convenceu a todos a irem torcer pelo time da classe nos jogos internos. Tratava-se de prestigiar os colegas, afinal. E fizerem camisetas de torcida. Com gritos de guerra e palavras de ordem, que eram repetidos em uníssono. E assim foi indo. No final, a classe estava toda às ordens do professor. Por fim, ele ordenou um massacre contra um aluno de outra classe que houvera praticado bullying contra "um dos nossos". O bullying era verídico, mas a ordem não. Era um teste. E eles não passaram no teste. Estavam dispostos a "tudo". Até o professor intervir e provar sua tese. E os alunos foram obrigados a repensar suas crenças e aceitarem que o único remédio contra a histeria é vigiar sempre. Praticamente, orai e vigiai. Se não tivermos consciência de nossas fraquezas, estaremos à mercê de forças externas e ocultas. Um dos poucos filmes europeus que vi que teve um final coerente. Infelizmente esqueci completamente o nome. Mas trata disso que vc falou. continuar lendo

@christinam o nome do filme é a onda! continuar lendo

@christinam @laicealcantara

O filme descreve fato real, um professor testou a classe e o resultado foi esse.
Filmes, claro, mudam a realidade em favor da arte.

https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Onda_(filme)

A Onda (título original: Die Welle) é um filme alemão de 2008 dirigido por Dennis Gansel e estrelado por Jürgen Vogel, Frederick Lau, Jennifer Ulrich e Max Riemelt.
É inspirado no livro homônimo de 1981 do autor americano Todd Strasser e no experimento social da Terceira Onda, realizado pelo professor de história norte-americano Ron Jones.
Nota: Não confundir com A Onda (2015). continuar lendo

Que artigo ótimo! Embora não diga a que veio, é aplicável a tudo, portanto, dispensa apresentações. Vivemos momentos conturbados e isso já vale as reflexões que este texto nos propõe. Meu pai chamava o que você diz ser "histeria coletiva" de "comoção pública". E ele era avesso a isso. Não me lembro qual o fato, mas eu ainda era pré adolescente quando cheguei em casa inflamada com algum acontecimento notório que andava pela boca do povo e era assunto principal de notícias e comentários de professores "doutrinadores" em sala de aula. E me senti muito frustrada em ver que meu pai "nem se mexia". Instado por mim a se posicionar (como se eu tivesse esse direito. Adolescente é uma desgraça, kkkk), ele somente disse: "não sou dado a comoções públicas". E encerrou o assunto assim. Deixando a mim o resto da minha vida para digerir a frase. Que hoje entendo perfeitamente. E está explicadinho, tim tim por tim tim no seu texto. Parabéns. continuar lendo

Christina Morais o filme que você falou acredito ser "A Onda" é um filme alemão. Verdadeiramente é um filme muito interessante. continuar lendo

É esse filme mesmo!!!!!!!!!!!! Obaaaaaaaaa! Agora vou poder ver de novo. kkkkk Obrigada Renato Fonseca e Laíce. continuar lendo

e meu caro civilidade esta escasseando por aqui , juizes nas midias comentando processos,fazendo política e nao direito ,interpretacoes inventivas dos textos legais, violacoes a CF para compensar a ineficiencia do judiciario, a segurança juridica indo para o ostracismo, a nos povo cabe refletir sobre a republica e lamentar tudo isso. continuar lendo

@peterbona94 Muito bem colocado. Te convido a ler um texto meu onde eu comento sobre a obrigação do advogado em lutar pela interpretação das leis conforme sua finalidade social.

Caso se interesse, a página é essa: https://christinam.jusbrasil.com.br/artigos/577352103/o-advogadoaconsciencia-profissionalea-vontade-da-lei continuar lendo