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2 de Maio de 2024

Mentalidade encarceradora e presos inocentes

A sociedade ficou mais complexa, mas o pensamento punitivo é o mesmo daquele vigente à época do Iluminismo

Publicado por Juciene Souza Ribeiro
há 10 anos

Casos recorrentes divulgados pela mídia informando sobre inocentes presos mostram a fragilidade de nosso sistema judicial e a mentalidade encarceradora como única resposta ao delito, além das falhas absurdas que permeiam o procedimento judicial penal, o qual supostamente busca a “verdade real”.

Entre os casos mais notórios está o dos Irmãos Naves, conhecido como um dos maiores erros judiciais da história do nosso País, e que foi um acontecimento policial e jurídico ocorrido na época do Estado Novo, em Araguari/MG, no ano de 1937. Dois irmãos – os Naves – foram presos e barbaramente torturados até confessarem sua suposta culpa em um crime de homicídio que não cometeram. Foram condenados e cumpriram pena inocentemente. Muitos anos depois, em 1952, o suposto morto reapareceu, em visita à casa dos pais. Assim, em meados de 1953, os irmãos Naves foram finalmente inocentados oficialmente de toda e qualquer acusação de crime.

Mentalidade encarceradora e presos inocentes

De lá para ca, infelizmente, ainda continua gravíssima a situação de pessoas inocentes que acabam condenadas e cumprem pena. Da mesma forma, o caso de pessoas que aguardam o julgamento presas e depois se comprova sua inocência, provocando a pergunta sobre onde estariam os indícios veementes que autorizaram a prisão, se posteriormente provas não são produzidas.

Outro aspecto relevante é os dos presos efetivamente condenados por motivo justo, porque praticaram o crime, mas já se venceram suas penas ou fazem direito à transferência de regime ou a outro meio de continuidade da pena sem cárcere. Merecem eles também permanecer presos?

Segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a população carcerária do Brasil chega a 500 mil presos e 30% deste número é composto de pessoas recolhidas indevidamente. Ou seja, há no sistema prisional cerca de 150 mil indivíduos que não deveriam estar encarcerados e estão. Estou cansado de ouvir a mesma toada constante e contínua, fruto de um discurso pronto, supostamente compreendido como fonte de inquietações sociais, de que o pobre fica preso e o rico fica livre. Este discurso é rico na sua pobreza. Ele foi verdadeiro num passado distante. Hoje o problema é bem mais complexo e está relacionado à pós-modernidade, à sociedade de consumo e a avanços tecnológicos principalmente na esfera das telecomunicações.

A sociedade hoje é diferente: a desigualdade não é entre rico e pobre no significado simples destas palavras, num modo de ver as coisas ao estilo do Professor Pangloss (lembram-se do Cândido de Voltaire?), num modo de lidar com problemas atuais numa leitura tacitamente teleológica ou ingenuamente linear, bastando para solucionar o problema injetar quantidades imensas (se é possível haver medida para isto) de direitos humanos por meio de estatutos normativos ou pela citadíssima alternativa da “educação”.

A sociedade hoje é complexa porque seus problemas são complexos e este truísmo infantil (mas verdadeiro) não se refere somente a aspectos econômicos ou de desigualdade social. Oo crime também se tornou complexo e isto leva reflexos ao sistema prisional.

Pensem, por exemplo, no crime organizado: ele é praticado por ricos ou por pobres? E o tráfico de entorpecentes? E a pedofilia cibernética? E a pirataria eletrônica? Há uma rede complexa, que abrange vários elementos relacionados entre si a compor o problema. Mas o discurso para combate à criminalidade é o mesmo do século XVIII herdado do Iluminismo, das luzes da razão, sintetizado numa palavra: cadeia.

Será que adianta “democratizar” a prisão, pondo ricos e pobres num mesmo plano de igualdade dentro do sistema carcerário? E se nós nos lembrarmos da existência de facções criminosas dentro do mesmo sistema carcerário, que movimentam milhões e têm organização aos moldes empresariais? Quem será que compõe tais facções, presos ricos ou pobres?

Só a cadeia não responde mais aos problemas da criminalidade em uma sociedade complexa. Oo modelo penal precisa ser reavaliado e tem de ser incluída a peculiar questão geográfica brasileira que provoca – apesar de a língua ser a mesma em todo território (não temos dialetos, o que é um milagre) –, cultura variada e regionalizada e este fator atinge e compõe as características do crime. Oo fenômeno cultural precisa ser levado em conta.

Se não for feita uma análise séria e profundamente crítica, permaneceremos rodeando a questão, falando das diferenças e desigualdades sociais na dimensão do direito penal entre ricos e pobres e nenhum fio de solução será alcançado.

João Ibaixe Jr. Advogado criminalista e escritor; pós-graduado em Filosofia e Mestre em Direito; ex-delegado de polícia e assessor jurídico da Febem, atual Fundação Casa; presidente do CEADJUS (Centro de Estudos Avançados em Direito e Justiça Criminal); autor do livro Diálogos Forenses e organizador do Plano de Legislação Criminal de Jean-Paul Marat.

Fonte:http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/75/mentalidade-encarceradorae...

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16 Comentários

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O Brasil tem uma sociedade com a mentalidade muito carcerária - ranço de uma sociedade escrava que, para os castigos de desobedecer o senhor do engenho, recebia porrada. Sem contar o prazer mórbido que a gente tem por punições severas - e por isto se investe e se prega mais as punições que as prevenções.

Além disto, fico com as palavras de um dos melhores advogados criminalistas do país, o baiano Gamil Föppel

"Hoje em dia tudo é crime; dificilmente você pega uma conduta minimamente lesiva que não seja criminosa. Haveria outras formas de tratar isso. Hoje, maltratar culposamente uma planta é crime. (...) Não estou dizendo com isso que é pra sairmos devastando todas as plantas, mas é necessário se aperceber de que é algo muito sério que lida com o bem mais importante das pessoas que é a liberdade. A banalização faz com que perca a eficácia. Então, já que tudo é crime, nada é punido” continuar lendo

Resquícios da casa grande que assola a senzala.
Ótimo comentário. continuar lendo

Como podemos falar em pena de morte, com um sistema carcerário tão precário quanto o nosso?!
Essas evidências e muitas outras, nos mostram que o Brasil precisa começar a tratar o problema pela raiz e não pelos ramos... continuar lendo

Esse percentual de 30% é muito grande. Isso deveria ser menor que 0,05%. continuar lendo

Interessante que o CNJ tem os dados em mãos, mas, mudar a situação que é bom nada né. continuar lendo

Aa pessoas de nossa sociedade, por ser ainda uma organização classista e preconceituosa, tende a querer PUNIR, em vez de RECUPERAR, porque acha que nunca estará no lugar dos condenados. Sente-se acima desses "criminosos", como se eles fossem feitos de outra matéria, que não a delas. continuar lendo

É que o dinheiro delas, assegura a impunidade de eventuais delitos praticados pela classe A e B (cifras douradas) que não são sequer investigados... imunidade?! continuar lendo