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5 de Maio de 2024

Terceirização e redução da maioridade penal são lados da mesma moeda

Publicado por Gustavo Maia
há 9 anos

Diz um adágio popular que uma desgraça raramente vem sozinha. Mas o saco de maldades recentemente aberto no Congresso tem muito pouco a ver com má sorte.

Terceirização e redução da maioridade penal estão mais próximas do que pode parecer à primeira vista. E são apenas entradas no cardápio que a aliança neoliberal-reacionária que se formou no Parlamento é capaz de oferecer.

O aumento dos prazos para a progressão criminal; o crime de terrorismo contra manifestações; uma plêiade de tipos hediondos; o fim do auxílio reclusão; a revogação do estatuto do desarmamento; a delegação da demarcação das terras indígenas, a independência do Banco Central e outras tantas propostas draconianas que dormitavam esquecidas no Congresso à espera de um vácuo de poder como esse. Só vêm a comprovar que o estágio atual do Brasil, no frenético caminho para o absolutismo penal e a precarização do trabalho, é de ser mesmo o país do passado.

Não há como isentar o próprio governo de sua parcela de contribuição no recrudescimento desse estado policial, pois ainda não compreendeu o quanto isso representa no esgarçamento do estado social que afirma defender. Várias leis do rigorismo penal foram e continuam sendo originárias do governo federal e é quase só disso que se trata nos propalados pacotes anti-corrupção.

Esquece-se, todavia, que as pessoas vão às ruas também por outras insatisfações, com o Bolsa Família, a PEC do Trabalho Doméstico ou cotas raciais. Quem quer avidamente prender adolescentes não pretende gastar mais dinheiro com as crianças pobres.

O estado mínimo, que diminui regulações, direitos sociais e tributos, exige um estado máximo que persiga, processe e prenda cada vez mais. Na figura de linguagem que ficou célebre pela pena de Loic Wacquant, em seu Punir os pobres, quanto mais enfraquece a mão esquerda, social do Estado, mais se fortalece a mão direita da punição.

A fragilidade do governo deu o sinal para o butim reacionário, da rebelião dos antigos aliados à ambição golpista dos opositores.

É certo que o grito de impeachment vem sendo entoado mesmo já antes da posse, eivado, assim, pela inconsistência jurídica, na ânsia de reverter uma eleição perdida.

Mas é evidente que serve como pressão para que a governabilidade se traduza em submissão, abandono de princípios e fisiologismo. Se a prática produzir uma inversão das urnas, como o vencedor aplicando o programa derrotado, o resultado não terá sido lá muito diferente da deposição.

Escancarar as portas ao estado policial, sepultando o precário estado social, é um preço caro demais a pagar. Não vale a pena lutar para salvar os anéis, se isso resultar em entregar os dedos.

Jonathan Simon em Governing Through Crime mostra como a Guerra contra a Pobreza, objetivo central do new deal foi substituída pela Guerra contra o Crime, a partir do final dos anos 60 do século XX, aprofundando-se fortemente nos 90. E como a vítima passou a ser a figura central da sociedade norte-americana –mais que o cidadão ou o contribuinte. É este modelo que vimos continuamente imitando, com o fortalecimento jurídico e político do Ministério Público, em especial com a ampliação dos espaços de barganha no processo penal, o recrudescimento legislativo e até a embrionária privatização penitenciária. Seguimos, ainda, na desastrada guerra às drogas e na desavergonhada seletividade que prende muito mais negros do que brancos.

Mas o que não é bom para os EUA também não é para o Brasil.

Foi-se o tempo em que o liberalismo tinha uma função de contração de um poder absoluto. A autodenominada pátria da liberdade tem dois milhões de almas encarceradas.

O Iluminismo nos legou a noção de direito penal como limite do poder punitivo, ideia que parece ter ficado para trás, entre suas pautas tão positivas quanto irrealizadas, como a humanidade das penas ou a intervenção mínima.

Os novos liberais, agora, não querem mais emancipar uma classe que o regime obstruía, mas, sobretudo, evitar a emancipação de outras. Por isso, se aproximam a regimes autoritários quando o assunto é direito penal. Não à toa, Estados Unidos e China disputam a liderança da população carcerária mundial.

Pesa aí também o apelo do marketing eleitoral e o apego à mídia que, de tradicional óbice a um estado policial, transformou-se em seu principal combustível.

E, de fato, poucas influências têm sido tão decisivas para o recrudescimento penal, seja no impacto sobre as legislações de pânico, seja a influência nas jurisprudências de emergência, do que os programas policialescos, o noticiário sensacionalista e os editoriais implacáveis que sugerem as respostas duras ao medo incessantemente estimulado.

Por mais que se prenda, e se prende muito, por mais que se prenda rápido (metade dos presos não foi definitivamente julgado e quase 40% destes serão soltos quando o forem), ainda assim sempre será insuficiente para aplacar a sensação fortemente incensada da impunidade.

Nada bastará, nem penas cada vez mais severas, nem encarceramento cada vez mais precoce.

O estado mínimo prossegue, paradoxalmente aos supostos princípios liberais, para um inevitável estado policial. Os caminhos de quem quebra direitos sociais e aumenta sanções penais se imbricam de forma inquebrantável. Nos modelos, nas soluções e nas crises.

Quando direitos sociais se fragilizam, quando os mercados expulsam o Estado das regulações, e as crises se abatem sobre as economias, as respostas de fundos e troikas é a de aprofundar os próprios mecanismos que geraram o colapso. É o mesmo que ocorre com o rigorismo penal, que mergulha o Estado em altos índices de violência (a Lei dos Crimes Hediondos foi o exemplo mais paradigmático) e é contraditoriamente chamado para resolver os próprios problemas que deu origem.

No capitalismo predatório e no estado policial que ele ajuda a criar nada merece tanto prestígio quanto as ideias que fracassam.

Que elas não tenham tanta força para nos recolocar na vanguarda do atraso.

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felipe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

POR MARCELO SEMER

fonte: http://justificando.com/

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12 Comentários

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Parabéns ao autor, eis que diferentemente dos rasos comentários abaixo, dos quais se extrai que seus comentarista não conseguem visualizar a questão da redução da maioridade penal em sua amplitude, o texto trata o tema com o alcance que merece, e, feliz foi o paralelo traçado entre terceirização e redução da maioridade penal, pois que, como muito bem formulado no título to texto, são lados de uma mesma moeda. continuar lendo

Quanto preconceito ideológico!

Caro autor, você não consegue observar que medidas como a redução de maioridade penal, projeto antigo que não caminhava na câmara passou a caminhar num momento de crise para dividir a população e está funcionando.

Vários instrumentos midiáticos vem rotulando os movimentos pró-impeachment e pró Juiz Moro como elitistas, conservadores, brancos, burgueses ... E agora entram em pauta estes Projetos Lei (PL) altamente polêmicos que aumentam a diferença entre as "classes". Assim, o pessoal parou um pouco de discutir os parlamentares para discutir as matérias, tanto que os protestos de 12 de abril foram menores que os de 15 de março. O do mês passado foi maior mesmo com menos divulgação e articulação.

Preste atenção que os Liberals dos EUA são os socialistas daquele país. Por causa desta apropriação do nome Liberal, os liberais de lá passaram a se denominar Libertarian (libertários). Então os liberals do reino unido são liberais de fato e os seus pares dos EUA são os libertários.

Outra coisa, favor não misture os protestos com assuntos não correlatos: não vi ninguém em Copacabana protestando contra bolsa-família (pode ter até um o outro, mas deve ter sido tão minoria que não consegui nem ver). Há muitos ex-petistas entre os manifestantes, muitos que se viram enganados pelo partido, eles continuam sendo socialistas, mas sabem que foram traídos. continuar lendo

Verdade, essas ideia dualista (subdivida) dos movimentos só enfraquecem os mesmo. Quem antes estava unido com um propósito (corrupção) se desuniu por conta de outros (maioridade penal, impeachment ...), transformando um grande grupo coeso em diversos grupos dissidentes contrários uns aos outros. Aliado a isso, adicionam correlações simplistas (coxinhas e petralhas) com identificações equivocadas (classe social e cor) para deixar as pessoas cada vez mais confusas. Essa nuvem só esconde o que de fato todos (os que possuem verdadeira conduta ilibada) querem: Fim da Corrupção! continuar lendo

Nada tem a ver uma matéria com a outra, porem ambas são necessárias e inadiáveis, aos ditos Adolescentes menores de 18 anos, são na verdade CRIMINOSOS Bandidos travestidos de menores, sabem muito bem o que fazem e devem pagar pelos seus mal feitos, porque lugar de Bandido é na cadeia ou no cemitério. Já a Terceirização da mão de obra, são milhares de empregados que estão completamente desamparado de uma regulamentação, e é a Justiça do Trabalho que vem fazendo este papel muitas vezes precariamente, outras não fazendo nada. continuar lendo

A redução da maioridade e terceirização são quadros completamente antagônicos, Neste tratamos de direitos dos trabalhadores e naquele direito que regulamenta a idade da responsabilização do menor infrator diante de seus atos. A verdade é que o texto em questão, se preocupa em falar em discriminação social e outros afins, sem deixar clara a ideia que defende. É evidente que o encarceramento não é a solução para os problemas dos menores infratores. Mas, é sem dúvida, necessidade que urge, para que se possa ao menos tentar reduzir a idade daqueles que sabem perfeitamente bem a diferença entre o certo e o errado, mas utilizam o subterfúgio da menoridade para poder livremente tolher o direito alheio, através da violência. A redução da menoridade penal não irá com certeza resolver os problemas sociais, mas irá diminuir o campo de ação daqueles que utilizam esta "força de trabalho" para incitar a violência na certeza da impunidade e da invisibilidade.
Já o tema da terceirização tem sido bastante polêmico. Temos aí um jogo de interesses que disputam a aprovação ou não da lei, dependendo dos seus interesses individuais. Pessoalmente acredito que não haverá grandes mudanças, principalmente negativas para o trabalhador. Fato é, no entanto, que é um trabalho que até hoje permanece sem uma regulamentação adequada, sendo que já é hora na hora de pormenorizar a questão.
O pensamento de que o governo está utilizando a aprovação destas leis como forma de direcionar o povo para um esquecimento temporário das questões políticas atuais, é o mesmo que dizer que não somos um povo pensante, com capacidade de crescimento intelectual e dotados de discernimento, que embora ainda não seja coeso, começa a se agregar na tentativa de fazer surgir do caos um país mais forte e justo. continuar lendo

Realmente não somos um povo pensante. Vide os resultados pífios no ridículo Enem, nosso desempenho na Prova Brasil e no SARESP.

Todos os anos somos brindados com pérolas das redações do Enem e de alguns vestibulares.

Isto sem contar a grande maioria que não termina nem o primeiro grau e aqueles que embora tenham estudo formal estão cegos pela doutrinação político-ideológica implantada já nos primeiros anos de escolarização.

Para muitos brasileiros partido é igual time de futebol. Matam por ele, morrem por causa dele, e não ganham nada em troca. Os torcedores apenas veem os jogadores e cartolas cada vez mais ricos, a despeito dos resultados pífios que os times/partidos apresentem nas legislaturas/campeonatos. continuar lendo